Análises

Sociedade enfezada

Em tempos de aquecimento global e desmatamento, cuidar da própria flora intestinal é uma atitude decisiva para proteger as florestas e outros biomas naturais brasileiros.

Fernanda Couzemenco ·
30 de janeiro de 2008 · 16 anos atrás

Enfezado é quem está cheio de fezes. Dito assim parece óbvio, mas não é essa a definição oficial do vocábulo. No dicionário, “enfezado” é o mesmo que “1. Raquítico, acanhado, pequeno. 2. Irritadiço; impertinente. 3. Aborrecido, amolado, irritado.” Um antigo ditado popular árabe já diz que “o intestino é o pai de toda a aflição”, mas essa versão, digamos, “mais literal” da palavra, eu mesma só fui conhecer recentemente, num livro sobre alimentação natural.

Mas o que mesmo a conservação das florestas tem a ver com o enfezamento da população? O raciocínio é simples: o consumo de carne é, de longe, a principal causa de desmatamentos da Amazônia. Cerca de 80% das áreas desmatadas na região são convertidas em pastagens e o avanço da pecuária é cada vez maior. “No mundo a população de bovinos cresce 5% ao ano, enquanto que a humana, a um ritmo de 2,1%”, compara João Meirelles Filho, diretor do Instituto Peabiru, no seu “Livro de Ouro da Amazônia”. Na obra, a ilusão da alta lucratividade da pecuária também é desmistificada: “No universo amazônico, uma área de 1 milhão de hectares de pecuária tradicional cria pouco mais de um emprego, enquanto a agricultura familiar é capaz de criar pelo menos 100 empregos diretos fixos. E um sistema intensivo de permacultura poderia gerar até 500 empregos na mesma área!”. A modesta caderneta de poupança, emenda Meirelles, é mais rentável que a pecuária na Amazônia.

O que vemos suceder na última grande floresta tropical do planeta até o momento, portanto, é a repetição de uma tragédia que quase extinguiu a Mata Atlântica, para quem a pecuária foi mais devastadora que a cana-de-açúcar ou o café. Há décadas, as pastagens formam a fitofisionomia predominante em boa parte dos Estados na área de influência do bioma, como no Espírito Santo, que tem até 39,5% do seu território (depende da fonte pesquisada) ocupado por estas famigeradas gramíneas exóticas. Substituí-las por Sistemas Agroflorestais (SAF´s) ou lavouras orgânicas são duas das alternativas mais incentivadas para a formação de corredores ecológicos. “Plantações orgânicas e SAFs permitem o trânsito de fauna”, argumenta a engenheira florestal Érica Munaro, do Projeto Corredores Ecológicos/ES.

Para os leitores de O Eco, esses dados não são nenhuma grande novidade. O que costuma surpreender ambientalistas e naturalistas é a leitura desses dados a partir de um exercício de inter-relação entre o microcosmo (organismo humano) e o macrocosmo (organismo planetário). Traduzindo: ainda é pouco difundida a percepção de que as nossas florestas internas e as florestas da Terra integram uma mesma sinfonia, que tem como regente comum o padrão alimentar humano. “Respeitar a vida interna é a mesma coisa que respeita-la externamente”, já diz o estatuto de uma ONG ambientalista capixaba voltada à conscientização alimentar, a Fundação do Espírito Santo, uma das poucas instituições que atuam a partir desta perspectiva. Delírio esotérico? De jeito nenhum.

Os bifinhos amazônicos (ou da Mata Atlântica, ou qualquer que seja o bioma pisoteado pelos ruminantes dos quais nos alimentamos) que devastam nossas florestas e savanas, são os mesmos que figuram no topo da lista de ameaças letais à flora intestinal. Isto é consenso na Medicina, mesmo entre os médicos alopatas que defendem a dieta carnívora. “Há vários estudos epidemiológicos que sugerem a associação de dieta rica em gordura, principalmente a saturada, encontrada na carne vermelha, com um maior risco de se desenvolver câncer de cólon e reto em regiões desenvolvidas, principalmente em países do Ocidente, onde o consumo de alimentos ricos em gordura é alto”, adverte a médica oncologista Edelweiss Soares.

Apesar da constatação, a maioria dos médicos alopatas acredita que a proteína animal é imprescindível para uma nutrição adequada, desde que ingerida com moderação, preferencialmente com pouca gordura e preparada cozida ou assada. Já a Medicina Natural estabelece que o primeiro hábito a ser extirpado para a adoção de uma dieta saudável é o consumo de cadáveres (sim, corpo morto de animais não-humanos também é cadáver – esta consta no dicionário). Segundo a linha naturalista, as proteínas e o ferro são encontrados de forma absolutamente satisfatória nos vegetais, e a vitamina B12 é produzida pelo próprio intestino humano, desde que esteja com sua flora conservada.

As duas vertentes médicas aceitam a máxima de Hipócrates, o pai da Medicina, (460–377 a.c.): “Somos o que comemos e o que pensamos; faz do teu alimento o teu remédio e do teu remédio o teu alimento”, mas as divergências sobre o que é ou não saudável não param por aí e invadem até a nossa intimidade. Os especialistas alopatas consideram normal um indivíduo evacuar duas a três vezes por semana, enquanto os naturalistas são radicais (“tudo o que é natural é radical”, bem dizia o saudoso naturalista capixaba Geraldo Oscar de Paula, autor do livro citado no início da matéria – “A vida, os seres humanos e os alimentos): “quem tem saúde é quem evacua duas a três vezes por dia”, surpreende o médico naturalista Marco Ortiz.

Bom, seja qual for a freqüência ideal, é impossível negar que carregar um saco (na verdade vários, já que nosso intestino grosso é constituído por uma seqüência de pequenos sáculos) cheio de fezes no abdômen contribui e muito pra deixar qualquer um “aborrecido, amolado, irritado”, enfim: enfezado. E a situação está longe de mudar, já que o consumo de carne vermelha cresce a galopes no mundo inteiro.

O tamanho do efeito que essa fome de sangue tem sobre a incidência de câncer do intestino é mais um ponto de divergência. Segundo a Dra. Edelweiss, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica não reconhece que tenha havido aumento das neoplasias de cólon e reto, “e sim a sobrevida dos pacientes com estas doenças devido à evolução da quimioterapia”. Entre os que sustentam uma avaliação oposta da questão, está o médico ortomolecular Marcio Bontempo. No documentário “A Carne É Fraca”, do Instituto Nina Rosa, Bontempo afirma que “a incidência de câncer no intestino grosso duplicou de uma década pra cá. Isso é dado da Organização Mundial de Saúde”, alerta.

Estatísticas à parte, o fato é que hoje vivemos, literalmente, uma sociedade de enfezados. E o mais grave é que o mau-humor e a prisão de ventre são apenas os sintomas mais perceptíveis do “desmatamento” intestinal (a flora intestinal, na verdade, é o nome popular dado ao conjunto de centenas de espécies de bactérias que naturalmente habitam os intestinos) e de outros distúrbios do sistema digestivo.

No clássico “Medicina Natural ao Alcance de Todos”, o autor, Manuel Lezaeta Acharan, naturalmente, radicaliza: “Podemos afirmar que, salvo intoxicações com ar impuro, drogas ou injeções, os desarranjos digestivos originam e mantém a doença, qualquer que seja seu nome ou manifestação. A íris revela que da zona digestiva parte a ofensiva causadora da afecção de qualquer órgão”.

Marco Ortiz complementa: “o intestino é um órgão fundamental na produção de sangue e anticorpos, e é esgoto do corpo; se não funciona bem, acaba absorvendo o que teria que eliminar”. O resultado da absorção das toxinas que deveriam ser eliminadas é a intoxicação, generalizada, contínua e cumulativa. Numa analogia ao aquecimento global, que tem na recomposição florestal um dos principais remédios, Marco conta que a fermentação intestinal também provoca aumento da temperatura interna do corpo, facilitando o desenvolvimento de estados enfermos diversos.

O farmacêutico e bioquímico da Fundação do Espírito Santo, Felipe Guilherme, fala ainda numa espécie de embriaguez, leve e contínua, que a fermentação intestinal gera no cérebro. “Um dos produtos da fermentação é o álcool, que é levado, pelo sangue, do intestino a todos os órgãos do corpo, inclusive o cérebro. Por isso, depois de um almoço com carne e outros alimentos pesados, as pessoas sentem necessidade de ingerir estimulantes como o café”, explica. Provavelmente então, essa ressaca intestinal diária é um dos principais motivos do crescimento extraordinário do consumo do café no mundo, o que só aumenta a pressão sobre as florestas.

O café é a segunda cultura agrícola que mais devastou a Mata Atlântica. Um caso emblemático é o município de Santa Maria de Jetibá, na região serrana do Espírito Santo, onde a pecuária nunca foi forte devido ao relevo acidentado. Há trinta anos, a crise do café provocou um abandono em massa dos cafezais e os agricultores se voltaram mais intensamente aos hortigranjeiros. Hoje, a área de floresta triplicou, chegando a 42% do território. O município é o maior produtor estadual de alimentos orgânicos e um dos maiores do país (só de folhagens são 160 ton/mês). De quebra, abriga a segunda maior população conhecida do Muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), o maior primata da América e um dos mais ameaçados no mundo.

Se o leitor admitir uma pitada explícita de “misticismo” neste tempero, vale considerar a dimensão espiritual que permeia a relação do Homo sapiens com os mamíferos da família Bovinae. É claro que na Índia ela é mais explícita, mas mesmo aqui no Ocidente, vestígios de uma certa “devoção” aos irmãos ruminantes podem ser observados nas homenagens que lhes são prestadas em festas folclóricas como o Boi Pintadinho, Boi Bumbá, Bumba Meu Boi e tantas outras, e nas giras de Umbanda, onde o boiadeiro é uma das entidades que realizam curas espirituais, ao lado dos caboclos e pretos-velhos.

Objetivamente, conclui-se, portanto, que bois e vacas são seres de grande importância cultural e espiritual tanto no Ocidente quanto no Oriente, só que, por aqui, ocorre uma inversão do sagrado, uma escandalosa profanação desses animais. Assim, já que não parece haver meio termo entre humanos e bovinos (ou os amamos ou os escravizamos; ou os adoramos ou os comemos), melhor redefinirmos logo de que lado estamos; se não for por compaixão e amor desinteressado por todas as formas de vida, como ensinaram todos os grandes mestres espirituais e a moderna Ecologia Profunda, que seja pela manutenção de temperaturas amenas no micro e no macro cosmo, ou, em outras palavras, que seja em favor da conservação das florestas e da biodiversidade que ainda resistem dentro e fora de nós.

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