A pior coisa que pode acontecer com a gestão ambiental pública é cair vítima dos fanatismos ideológicos como predeterminantes das políticas de atuação. Isso infelizmente vem acontecendo de forma cada vez mais frequente, relegando o conhecimento técnico-científico, que deveria embasar as ações de gestão, a um plano inferior.
Talvez a pior e mais daninha faceta dessa ideologização seja a opção cada vez mais explícita dos governantes pelo mito do Bom Selvagem de Rousseau, traduzido no linguajar contemporâneo como “gestão tradicional dos recursos naturais”. Na prática, significa uma licença ampla para que “comunidades tradicionais”, definidas conforme a conveniência política, possam delinquir impunemente contra o patrimônio natural comum.
Os reflexos dessa demagogia já alcançamas políticas internacionais, como ficou tristemente lavrado aqui na CITES com a rejeição da proposta dos Estados Unidos de se proibir o comércio internacional de produtos de urso polar, uma espécie criticamente ameaçada pelas mudanças climáticas, mas sobre a qual o tráfico de peles e troféus exerce uma pressão adicional tremenda.
Não foi adotada sequer a proposta mais moderada da União Européia, de que os países exportadores estabelecessem cotas pré-determinadas para a exportação de produtos de ursos polares. Os principais oponentes das propostas, Canadá e Dinamarca, trouxeram para a reunião seus “esquimós”, que fizeram ar de pobrezinhos injustiçados e alegaram sua “cultura tradicional” para continuar atuando como fornecedores do tráfico internacional de peles para mansões de ricaços excêntricos e de troféus para caçadores bem branquinhos e abastados.
No ambientalismo como na vida, nem tudo é o que parece.
Subsidiados pelo governo canadense, os pobres povos tradicionais montaram aqui em Bangkok um enorme e bem abastecido stand de propaganda, onde até pen drives como seus arrazoados eram distribuídos gratuitamente.
Balela de “esquimós”
Não por coincidência, pelo lado da Dinamarca, representou os “pobres povos tradicionais da Groenlândia”, a mesma senhora sinistra que vai à Comissão Internacional da Baleia defender a matança “tradicional” de centenas de baleias do Atlântico Norte, inclusive as jubartes que se reproduzem na República Dominicana e são essenciais ao turismo de observação naquele país.
A carne das baleias abatidas “tradicionalmente”, está provado, acaba em supermercados na Dinamarca, mas a farsa continua sendo tolerada, assim como aceito aqui o argumento canhestro do “comércio internacional tradicional” dos últimos ursos polares pelos esquimós de araque.
Essa politicagem toda não é nova na CITES, e a grande culpa disso deve-se atribuir também ao lobby feito pelas BINGOs (Big International NGOs) para vender o peixe do “manejo tradicional” do comércio internacional de fauna como panacéia de conservação. Fizeram isso, como mencionei no texto anterior neste Blog, com os elefantes africanos nos anos 90, e agora a CITES está encurralada por um aumento bestial no contrabando e comércio de marfim, que ninguém parece saber como conter. Houvesse pulso em reuniões anteriores para impedir que exceções legais fossem abertas e o tráfico de marfim teria acabado, e os elefantes estariam em muito melhor situação.
Avanços apesar do fogo amigo
A boa surpresa por enquanto ficou por conta da aprovação unânime da proibição do comércio do manati africano, espécie criticamente em perigo. O curioso, entretanto, foi que apesar do apoio integral dos países africanos a proposta, a IUCN (União Mundial para a Conservação) circulou uma posição contrária a proteção da espécie, apesar de cientistas especialistas em sirênios ligados aos grupos técnicos da própria entidade reconhecerem o seu estado crítico.
A IUCN e seus satélites WWF e TRAFFIC, uma rede de monitoramento do tráfico de fauna e flora, volta e meia surgem por aqui com posições favoráveis ao tráfico, entendíveis somente como uma tentativa de criar dificuldades para vender facilidades. No caso, fazendo lobby contra a proteção dos manatis alegando a “falta de dados” suficientes, talvez para depois aparecerem lépidos e faceiros oferecendo seu “apoio técnico” aos países africanos, para desenvolver estudos mais aprofundados.
No ambientalismo como na vida, nem tudo é o que parece.
Um par de eventos paralelos realizados esta semana buscou ampliar o apoio dos países às propostas de restrição do comércio de tubarões e raias-manta, com a presença de pesquisadores respeitados de vários países e, pela primeira vez, uma presença forte de mergulhadores interessados no uso não-letal dessas espécies. Este é um argumento raramente ouvido nesta Convenção, que mais promove do que restringe o tráfico de espécies selvagens.
O Brasil segue tendo atuação diplomática discreta demais na defesa das propostas, ainda que tenha se escutado que o Ministério do Meio Ambiente vai tentar vitaminar as conversas bilaterais com os países contrários, preenchendo o gritante vazio de atuação do Itamaraty a partir de Brasília. Esperamos que funcione, porque no final será o empenho da ainda claudicante diplomacia de países como o nosso que determinará a sorte dos animais marinhos ora ameaçados pelo crescente tráfico internacional.
*Esse texto foi editado em 05/05/2024 para repaginação
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