Acordo muito cedo depois de uma noite de chuva intensa. Ao menos, agora, a chuva deu uma trégua. Abro a janela e a poucos metros abaixo encaro um sabiá (Turdus leucomelas) estático sobre o solo nu e barrento de uma única mancha sem grama no jardim, situada bem ao lado do meu quarto. É sem grama porque ali é o caminho das enxurradas que se formam quando chove. O sabiá dá um pequeno salto de poucos centímetros, balança sua cauda e volta a ficar parado sobre aquela lama. Continuo observando-o por alguns segundos e, quando decido desistir do meu posto de sentinela, algo inusitado acontece.
O sabiá dá um salto rápido, com a cabeça e bico voltados para a lama; como que em um passe de mágica e em uma fração de segundo, ele arranca uma minhoca do solo. É uma minhoca tão gorda quanto o dedo médio, o “pai-de-todos”, da mão de uma criança de cinco anos. Depois disso, o sabiá joga a cabeça para o alto, estica o pescoço, abre o bico e engole o anelídeo. Percebe meus olhos esbugalhados de admiração e foge num voo rasante, desaparecendo na relva, fora de alcance.
Troco de roupa e começo a me preparar para o batente de uma segunda-feira, mas antes de fechar a janela dou outra olhada pela fenestra e lá está ele novamente: o sabiá imóvel sobre a lama. Fico, então, o observando, também quieto, evitando qualquer movimento, até quase paro de respirar. Mais uma vez, todo o ritual mágico acontece. O sabiá dá um pequeno salto, fisga outra minhoca, agora do tamanho de um “mindinho”, a engole e voa, desaparecendo mais uma vez.
Como os sabiás as conseguem localizar as minhocas enterradas?
Intrigado, me dirijo à mancha de lama para procurar por outras minhocas inconsequentes. O que estas minhocas estariam fazendo na superfície a esta hora do dia? Talvez o solo estivesse tão saturado de água que elas viriam à tona para respirar, se tornando, deste modo, alvo fácil aos predadores. Procuro minuciosamente pelo chão de toda a mancha de lama e não percebo nem um sinal de minhocas. Como os sabiás as conseguem localizar? Estariam usando a visão, como eu, procurando por diminutos orifícios que presumivelmente despontariam na superfície da terra? Ou estariam usando a audição, o olfato, ou até mesmo sentindo vibrações do terreno provocadas pela movimentação desses invertebrados?
A grande maioria das aves procura e acha seu alimento usando a visão. Isto não é à toa, uma vez que os olhos das aves são grandes em relação ao tamanho da cabeça e do cérebro. Por exemplo, os olhos humanos compõem cerca de 1% da massa total da cabeça, enquanto olhos dos estorninhos, uma ave semelhante ao sabiá que ocorre na Europa, compõem cerca de 15% da massa de sua cabeça. Mesmo assim, muitas espécies de aves de uma gama diversificada de famílias (por exemplo, os maçaricos e narcejas, os guarás e curicacas, os estranhos kiwis da Nova Zelândia e, claro, os sabiás) se alimentam de invertebrados escondidos na areia, ou debaixo das folhas secas caídas sobre o chão, ou na lama e até mesmo dentro de buracos em pedras ou troncos. As entradas das tocas, trilhas e outras perturbações no substrato deixadas por invertebrados podem servir de pistas visuais e assim indicar suas localizações. Mas muitas vezes estas aves dependem de outros sistemas sensoriais, que não a visão, para localizar seu alimento.
Os maçaricos e narcejas (da família Scolopacidae) são espécies de aves que estão espalhadas por quase todo o mundo. Elas são aves pequenas, menores do que uma galinha, mas um pouco maiores do que um sabiá, e vivem em praias arenosas e lodosas, ou à beira de mangues e brejos. Passam o dia enfiando seus bicos longos na areia, lodo ou terra úmida procurando por invertebrados como minhocas e crustáceos. Os inconfundíveis guarás de plumagem vermelha preferem habitar as praias lodosas dos mangues, enquanto as curicacas, seus parentes próximos (ambos são da família Threskiornithidae), vivem em campos mais secos, mas ambos também procuram seu alimento como os maçaricos e as narcejas, e possuem o bico ainda mais longo e ligeiramente curvado. Estas aves, e principalmente as narcejas, têm sido o foco de muitos estudos que investigam as modalidades sensoriais utilizadas pelas aves para detectar presas enterradas.
O tato e o olfato nas aves
Os maçaricos usam um sistema sensorial especializado chamado ‘tato remoto’. O tato remoto é mediado por um órgão composto por inúmeras saliências no osso da ponta do bico que estão repletas de corpúsculos de Herbst. Através destes corpúsculos de Herbst, a ponta do bico detecta sinais da vibração emitida pelos invertebrados enterrados na terra ou na lama.
Os kiwis, aves que só existem na Nova Zelândia, são certamente as mais bem estudadas em relação ao comportamento de captura de alimento. Estas aves são do tamanho de uma galinha, com as penas marrons escuras e muito finas, assemelhando-se aos pelos dos mamíferos. Seus olhos são muito pequenos e seus braços são tão encurtados que mal conseguem formar uma asa, porém possuem pernas grossas e musculosas. Os kiwis formam uma família (Apterygidae) de cinco espécies de aves de hábitos noturnos e que não voam. Eles são encontrados nas densas, super úmidas e escuras florestas daquela remota ilha do Oceano Pacífico, sempre caminhando pelo solo, quase invisível aos nossos olhos, mas facilmente detectados porque costumam ‘fungar’ quando procuram por seu alimento. Os kiwis possuem um bico longo, ligeiramente curvo, que usam para extrair invertebrados escondidos no solo, principalmente minhocas e larvas de besouros.
O bico dos kiwis é tão longo que sua ponta fica fora do seu campo visual, e por isso é improvável que usem a visão para guiar seu bico em direção ao alimento. Dentro do bico dos kiwis existe uma câmara olfativa amplamente desenvolvida e seus bulbos olfativos cerebrais estão entre os maiores de todas as aves. Além disso, a ponta do bico dos kiwis também apresenta as saliências na sua ponta, com os mesmos corpúsculos de Herbst encontrados nos maçaricos. Todas as evidências anatômicas e experimentais indicam que os kiwis detectam as minhocas e outras presas que vivem enterradas usando uma combinação do olfato com o ‘tato remoto‘.
A audição dos sabiás e as minhocas barulhentas
Mas volto ao meu jardim e lá está o sabiá, caçando minhocas na mesma mancha de lama. As minhocas representam mais de 40% dos itens alimentares levados aos seus filhotes esperando no ninho. Como elas encontram essas minhocas enterradas?
O sabiá americano (Turdus migratorius) é uma ave muito comum na América do Norte que também depende das minhocas enterradas, uma vez que elas representam 20% da sua dieta. O seu comportamento de captura de minhocas é muito semelhante ao do sabiá do meu jardim.
Em uma série de experimentos controlados dentro de um aviário, foi observado que os sabiás americanos encontraram larvas de besouros e minhocas enterradas na ausência de pistas visuais, olfativas e até na ausência de vibração, o que sugere que eles poderiam usar sinais auditivos para localizar a presa. Eles tiveram baixo sucesso de captura de presas quando pistas auditivas foram diminuídas por ruído branco. O ruído branco é um tipo de ruído produzido pela combinação simultânea de sons de todas as frequências. No primeiro experimento, os pesquisadores ofereciam larvas de besouros, vivas e mortas, enterradas no aviário de uma maneira aleatória. Os sabiás procuravam e capturavam apenas as vivas. Se o olfato fosse útil para localizar essas larvas, não deveria haver diferença na capacidade das aves em localizá-las vivas ou mortas. Em um segundo experimento, verificou-se a possibilidade dos sabiás estarem sentindo vibrações no terreno. Assim foi colocada uma grade a poucos milímetros acima do terreno de modo que as aves não tinham contato com o solo, mas ainda assim podiam procurar pelas larvas enterradas. Mesmo assim os sabiás conseguiam encontrar as larvas enterradas. Em um terceiro experimento os pesquisadores eliminaram as pistas visuais enterrando as larvas a mais de dois centímetros de profundidade e colocando uma carta de papelão sobre elas. Assim eventuais pistas visuais, como orifícios ou perturbação local da terra devido aos movimentos das larvas, foram eliminadas. Mais uma vez os sabiás descobriram exatamente onde estavam suas presas. No último experimento, os pesquisadores colocaram um alto-falante de dentro de um saco de algodão enterrado a uma profundidade de três centímetros no centro do aviário. Foi tocado ‘ruído branco’ continuamente enquanto os sabiás procuravam por suas larvas escondidas. A taxa de captura das larvas foi muito menor, mostrando que os sabiás necessitam de pistas auditivas para encontrar presas enterradas. Essa descoberta gera outra pergunta: o que o sabiá tenta escutar enquanto procura por uma minhoca?
As minhocas se locomovem por canais subterrâneos construídos por meio de ondas de contrações musculares que alternadamente encurtam e alongam o corpo. A parte mais curta é ancorada ao solo circundante por pequenas garras situadas em uma das suas extremidades. O processo de enterramento todo é auxiliado pela secreção de um muco lubrificante. Assim, as minhocas podem fazer ruídos subterrâneos quando perturbadas, como resultado do seu movimento através de seus túneis lubrificados. Bingo! Que capacidade auditiva a dos sabiás, não é mesmo?
Talvez não devêssemos nos surpreender tanto. Na realidade as aves, principalmente as aves canoras (entre elas o sabiá, o coleirinha, o trinca-ferro, o canário, entre outras chamadas de Passeriformes), têm o sistema auditivo bem desenvolvido, pois evoluíram estilos de vida em que a localização do som desempenha um papel crucial em suas vidas. Estas aves canoras empregam várias vocalizações na defesa territorial, atração de parceiros sexuais e interações sociais, para as quais a localização destes sons é uma parte integrante da mensagem.
Volto ao jardim para procurar pelo sabiá, mas já é quase hora do crepúsculo. Apenas o escuto cantando timidamente nesta época do ano, final de janeiro, sem mais aquela aquarela de sons que lhe é peculiar em setembro. É o final da estação reprodutiva e os machos diminuem drasticamente a frequência do seu canto nupcial. Um longo caminho os espera até a próxima primavera. Agora só lhes resta se manterem vivos e fortes, ao custo de muitas minhocas barulhentas e desavisadas do perigo sobre elas.
Guia
As aves da Mata Atlântica
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