“Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes… Na plenitude das secas são positivamente o deserto… Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores… Da extrema aridez à exuberância extrema…”, Euclides da Cunha (1866-1909), em “Os Sertões”, ao se referir aos contrastes da Caatinga nas estações seca e chuvosa.
Como reconhecido por Euclides da Cunha, na obra que alguns consideram um dos maiores clássicos da literatura brasileira, contraste parece ser a palavra-chave na Caatinga. Estes contrastes se manifestam de várias formas, tal quando comparamos a imagem que o brasileiro médio não morador deste ambiente tem da Caatinga e o que ela realmente é. No imaginário, um quase deserto, esturricado e pobre em todos os sentidos, inclusive em vida.
Na realidade, a Caatinga é um mosaico de ambientes que se mostram ricos e únicos. E é este plural que faz com que estes ambientes tenham a maior biodiversidade entre as florestas secas do planeta. Em fisionomias vegetais, que vão desde arbustos espinhosos até florestas sazonalmente secas, já foram registradas ao menos 932 espécies de plantas vasculares, 187 de abelhas, 240 de peixes, 167 de répteis e anfíbios, 62 famílias e 510 espécies de aves, e 148 espécies de mamíferos. Mesmo assim, a Caatinga é o bioma terrestre brasileiro menos conhecido, e seu número real de espécies é provavelmente muito maior, uma vez que cerca de 40% da região nunca foram investigados e 80% permanecem subamostrados. Ou seja, sob o ponto de vista científico, mais descobertas estão por vir.
Mas será que elas realmente virão? Isso depende de vários fatores ligados às políticas públicas que vão desde a valorização de seus recursos naturais até o envolvimento da massa crítica acadêmica.
Podemos discutir se descrever esta biodiversidade e desenvolver tecnologias para o seu aproveitamento sustentável vai sair caro ou barato, mas é fato que terá um custo financeiro. Infelizmente, ao contrário do que pode parecer, recursos para a pesquisa no país não são abundantes, e a disputa é cada vez mais acirrada. O Nordeste brasileiro ainda paga o preço do atraso socioeconômico experimentado por décadas com consequências severas para a capacidade científica instalada na região. E dentro do Nordeste, a Caatinga ainda está no final da fila. Só recentemente foram abertas novas universidades públicas no sertão com alguma vocação para pesquisa, o que não tem sido suficiente para competir em igualdade de condições pelos escassos recursos para a pesquisa com grupos de pesquisadores já bem consolidados em outras regiões brasileiras.
Cadê a pesquisa?
De volta aos contrastes, no imaginário a Caatinga é um bolsão de vazios, um sertão no sentido pleno. Na realidade, é o quintal da casa de 20 milhões de brasileiros, que vivem, comem, consomem e que também querem ter as benesses do mundo moderno. A Caatinga passa por uma metamorfose rápida. É o salto direto do jegue para a moto japonesa “made in Manaus”, devidamente paga em 60 meses. É uma população que ainda depende da lenha como principal fonte energética e cria seu rebanho de algumas dezenas de milhões de bodes pastoreando livremente. E é este mix de práticas centenárias de seus habitantes e as novidades do “progresso” que colocam a Caatinga sob forte pressão humana. Alavancar a pesquisa na Caatinga exige um tratamento diferenciado por quem paga a pesquisa no país. Editais de pesquisa específicos para a Caatinga ainda são e serão necessários por algum tempo. Estratégias conjuntas entre os órgãos de fomento federais, como Capes e CNPq, e as fundações estaduais de amparo à pesquisa dos estados com caatinga são um caminho. Sem uma política específica a briga é e será desigual, e restarão à Caatinga as beiradas.
À surdina, sem alarde e sem causar nem um vigésimo da comoção causada pela devastação da Amazônia e da Mata Atlântica, a Caatinga já perdeu 47% de sua extensão original, sendo o terceiro bioma mais ameaçado do país. Motivos para a conservação e aproveitamento dos recursos naturais da Caatinga abundam. Desde compromissos morais com as gerações futuras, cuja cultura foi moldada na convivência com esse ecossistema, até a bioprospecção de moléculas úteis para a indústria farmacêutica. Mas é justamente aqui frente ao contraste entre o saber-que-tem-que-fazer e o nada-é-feito que a inércia cobra seu preço. Não há estimativa sobre o estado de degradação dos 53% restantes, mas encontrar hoje porções realmente intactas de Caatinga é tarefa difícil.
Clima também castigará Caatinga
Frente às mudanças climáticas previstas há a necessidade de estabelecer e ampliar sistemas de monitoramento para entendermos como a biodiversidade da caatinga responderá a essas pressões. Jogar luz sobre estas incertezas será útil para reduzir os potenciais efeitos negativos sobre seus 20 milhões de habitantes. Neste tipo de pesquisa precisamos pensar em sítios de monitoramento em longo prazo e serão necessárias áreas protegidas em estado original para que funcionem como controle. Talvez nada hoje seja mais urgente e instigante do que entender a relação entre clima e meio ambiente e, novamente, os contrastes nos perseguem na Caatinga. A região acaba de sair de umas das maiores secas dos últimos 50-60 anos e não por acaso estudos do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas indicam que a Caatinga pode experimentar tendências de elevação da temperatura do ar e de diminuição de chuva maiores que o esperado para a média global. Enquanto todos os olhos estão voltados para a Amazônia, os modelos climáticos apontam aumento de 0,5º a 1ºC na temperatura do ar e decréscimo entre 10% e 20% na chuva na caatinga até 2040, com aumento gradual de temperatura para 1,5º a 2,5ºC e diminuição entre 25% e 35% nos padrões de chuva até 2070. As consequências dessas transformações vão desde perda de solos agricultáveis até migrações em massa dentro e para fora da região semiárida. Ainda bem que a moto japonesa “made in” Manaus não precisa beber água. Já o mesmo não se pode dizer do vaqueiro sentado sobre ela e de seu gado. Estes sim terão problemas.
Sem proteção
No ano passado, pesquisadores contemplados por um edital específico do CNPq e do ICMBio para a pesquisa em UCs da caatinga (uma raridade!) estiveram reunidos na capital do Rio Grande do Norte e elaboraram a “Carta de Natal pelas Unidades de Conservação da Caatinga” (veja PDF). Nela, dezenas de pesquisadores mostravam a sua preocupação com o mau estado das Unidades de Conservação visitadas por eles. Sete das nove UCs contempladas pelo edital tinham apenas um ou nenhum analista ambiental lotado. Vários destes gestores não puderam comparecer ao encontro, pois se o fizessem teriam que fechar a UC por falta de quem os substituísse durante o evento. E, novamente eles, os contrastes. É no quesito “áreas protegidas” que a Caatinga escorrega feio e cai de joelhos. Além de poucas, as Unidades de Conservação do bioma estão na UTI. Com dinheiro à míngua, elas contam atualmente com quadros técnicos extremamente reduzidos, frequentemente incompatíveis com a área destas unidades, com as demandas administrativas e com as pressões experimentadas. A Caatinga ainda é o ecossistema menos protegido do Brasil e mesmo oferecendo emprestada à Copa 2014 no Brasil um de seus habitantes mais especiais como mascote, o tatu-bola, praticamente nenhum gol foi marcado em sua homenagem. A exceção é a intensão declarada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do Estado de Pernambuco, que no último dia 29/08 aprovou a criação de um Refúgio de Vida Silvestre com 110 mil hectares dedicado à proteção dessa espécie. Falta a canetada final do governador do estado e até que ela se concretize o suspense permanece.
Falta ligação com as universidades
Este quadro ruim das UC da caatinga compromete o potencial de colaboração existente com as universidades. Daí, voltamos a alguns parágrafos acima, quando discutimos a pesquisa. Estes sítios de monitoramento de longo prazo poderiam alavancar algumas das UC que estão na UTI. Apesar de todos os pesares, o caminho mais curto e barato (comparando o investimento por hectare por ano), tanto para a proteção in situ do que resta de caatinga quanto para as pesquisas de longa duração, passa pelas unidades de conservação. No papel é um cenário ganha-ganha e racionalmente este deveria ser o caminho a ser seguido: estreitar o relacionamento entre as UC da caatinga e a pesquisa de longa duração. Não temos expectativas que o(a) próximo(a) presidente(a) mude rapidamente a situação da Caatinga. Mas a situação poderia ficar melhor se ele(a) perceber que, assim como já constatado por Euclides da Cunha, a Caatinga pode ir da extrema aridez à exuberância extrema.
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Ótimo texto!!
Eu sou apaixonada por esse bioma e fico triste em saber das dificuldades presentes e no futuro preocupante. Realmente suas diferentes fisionomias e paisagens, deslumbrantes plantas e animais, que "ressurgem" ao mero pingar de chuva, merecem mais atenção, pesquisa e conservação!