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A Cézar o que não é de Cézar

Brincar para os fotógrafos com uma onça acorrentada, na terra do tráfico de animais silvestres, é mau exemplo. Ao relançar o Projeto Rondon, Lula deseducou.

20 de janeiro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Não é fácil estrear um avião de US$ 56,7 milhões sem atrair a atenção de olhos implicantes. Mas, feitos todos os descontos, o presidente Lula sem dúvida faria melhor negócio se tivesse desviado de Tabatinga, nos confins da Amazônia, para São Paulo, onde foi enterrado naquela quarta-feira seu meio-irmão Odair José de Góes, o vôo inaugural do Airbus Corporate Jetliner.

Entender sua ausência no funeral é fácil. Seu pai teve muitos filhos, em casas diferentes. E a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto esclareceu no mesmo dia que ele nunca teve “muito contato com Odair”. Difícil é deduzir o que ele foi fazer em Tabatinga, vendo as fotos que apareceram nos jornais do dia seguinte. Lá estava o presidente às gargalhadas, segurando a sucuri que o 8° Batalhão de Infantaria de Selva mantém em cativeiro, junto com uma onça pintada que se chama Cézar, um filhote de jaguatirica e sabe-se lá que outros exemplares da fauna brasileira em risco de extinção.

Lula viajou em missão educacional. Foi ressuscitar o Projeto Rondon, relíquia do regime militar, mais ou menos da mesma época em que a Aeronáutica comprou seus últimos caças F-5. Lá, assistiu a uma festa oficial, em que o presidente da UNE Gustavo Petta denunciou a exploração ilegal dos recursos da floresta amazônica. Como o cupuaçu, cuja fórmula genética acaba de ser patenteada por estrangeiros.

E o que tinha a sucuri a ver com isso? Ou a onça chamada Cézar? O Exército pode ter lá seus motivos para criar zoológicos em seus quartéis da Amazônia. Eles são registrados no Ibama, como criatórios de animais silvestres “categoria A” – quer dizer, públicos – e originalmente serviam para pôr os alunos dos cursos de operações na selva em contato com a fauna da região. Só em Manaus, 320 animais de 56 espécies estão sob sua guarda. O Centro de Instrução de Guerra na Selva recebe, por causa deles, quatro mil turistas por mês. Bichos capturados no comércio ilegal de animais silvestres passam por suas jaulas, a caminho da devolução para a floresta.

Ou seja, prender animal silvestre pode ser coisa séria. Segundo o Exército, o centro “presta serviços gratuitos à comunidade”, como “aulas teóricas e práticas de preservação do meio ambiente”, ajudando a criar “uma consciência ecológica” entre os visitantes. Mas não foi isso que se viu no programa de Lula em Tabatinga. Ao presidente, em vez de mostrar um zoológico, apresentou-se uma espécie circo.

Cenas como essas da viagem presidencial podem parecer inócuas. Mas não custa lembrar que existe uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela Unesco há 28 anos. No artigo 4, ela condena a “privação da liberdade” dos animais silvestres, “ainda que para fins educativos”. E no artigo 10 afirma que “nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem”. E diz que “a exibição dos animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal”.

Uma declaração da Unesco não vale no Brasil? Tudo bem. Nesse caso, vamos melhor economizar dólares- ou, pior, euros – trazendo de volta os funcionários que representam o país na organização em Paris. Gosto não se discute? Pode ser. Mas a imprensa fez muito bem em discutir, graças a uma blitz da Polícia Federal, as brigas de galo do publicitário Duda Mendonça. Se os brasileiros querem manter as rinhas, têm que abolir primeiro a lei que as proíbe. Mantendo a lei, o jeito é proibir as rinhas. O que não dá é achar que ela só vale para as outras pessoas.

Numa terra onde os aeroportos recepcionam turistas com cartazes sobre o tráfico de animais silvestres, brincar diante dos fotógrafos com uma onça, acorrentada como fera de picadeiro, é um estímulo oficial ao desrespeito pela fauna brasileira. Se Lula pode tratam assim, em público, com o patrimônio natural dos brasileiros, quem levará a sério o fiscal do Ibama na hora de escolher, em particular, se deixa uma arara no mato ou bota no poleiro?

Francamente, mais valia ir ao enterro. Aliás, o jornalista William Safire descobriu nos anos 80 como Ronald Reagan tinha reinventado a presidência dos Estados Unidos, assumindo o cargo de “carpidor-mór” dos lutos americanos. O posto não era novo. A rigor, sempre existiu. Mas costuma ficar vago quando a vida-pública perde os vínculos afetivos com a vida propriamente dita. Para os americanos, antes do governo Reagan, o elo estava rompido, porque durante muitos anos cada novo caixão de soldado que chegava do Vietnã era menos uma perda a lamentar do que um constrangimento político a esconder. Ele remendou-o, tratando como obrigação do presidente sentir o que qualquer americano sentiria diante das más notícias.

Lula não precisava ir ao sepultamento de Odair, se não gostava dele. Mas não custava nada dissimular a indiferença pela notícia, ao receber pelo telefone de bordo, um Siscom novinho em folha. Respondeu que tinha compromissos na Amazônia e foi se consolar com um show de Roberto Carlos no DVD da cabine.

Ele foi vítima de intoxicação eletrônica. Se o Airbus pusesse menos novidades à sua frente, talvez tivesse tempo de olhar para trás, para o lado ou para longe. Bastaria um pouco de reflexão para livrar a sucuri do aperto. Ela não participa do Projeto Rondon. Poderia muito bem ser dispensada de ouvir que “sair do lugar da gente às vezes incomoda, machuca, mas educa”. No caso da sucuri, deseducou.

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