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A boa e velha malversação de hegemonia

A Amazônia é nossa. O problema é que às vezes parece tão nossa como era a escravidão no século 19. Ou tão nossa quanto foi a tortura promovida pela ditadura na década de 1970.

28 de maio de 2008 · 16 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Todo mundo sabe que as florestas tropicais são fabulosos tesouros de biodiversidade. E patati, patatá. E tende cada vez mais a saber que esses tesouros estão enterrados em países pobres e atrasados. Ou seja, dependem de verbas miseráveis, governos corruptos e Estados “seqüestrados por quadrilhas”, segundo o biólogo John Terborgh. E por isso têm tudo para desaparecer em 30 ou 40 anos, deixando de souvenir um rastro de parques nacionais falidos.

Terborgh é um cientista curtido no trabalho de campo. Foi o primeiro a botar no papel, com todas as letras, que a salvação das florestas tropicais terá que vir de fora, através de pressões internacionais. Ele nem faz de conta que é isento. Mas tem autoridade de sobra para dizer o que quiser sobre o assunto, conhecendo-o de perto por todos os lados, da última selva ainda fechada às capitais de repúblicas onde “os mendigos atacam os estrangeiros nas ruas do centro”.

Sueco suspeito

É pegar ou largar. Quem acha que, em nosso caso, Terborgh está muito longe da verdade atire a primeira pedra no milionário sueco Johan Eliasch, acusado pela Agência Brasileira de Inteligência de dizer que, por “apenas 50 bilhões de dólares”, compra-se a floresta amazônica. Elish se tornou suspeito de dizer o que diria qualquer madeireira, nacional ou estrangeira. Seu problema é fazer negócio com árvores de pé, não com as derrubadas, como é de praxe. Trafegando na contramão dos investimentos tradicionais na Amazônia, a Polícia Federal ameaça investigá-lo.

Nada mais fácil. Eliash dirige programas contra o desmatamento e a favor da energia limpa no gabinete do primeiro-ministro Gordon Brown. Na vida privada, preside a Head, gigante multinacional dos equipamentos esportivos. Tem um pé no Brasil, via Brasilinvest. E fundou na Europa a Cool Earth, uma ONG criada para remediar a desordem climática, recolhendo de 12 mil patrocinadores em sociedades ricas doações individuais equivalentes a 250 reais, para a quem ainda tem muita mata para devastar dentro de, no máximo, um ano e meio – como os brasileiros que vivem de motosserra na mão no Arco do Desmatamento. O programa tem o aval de Sir David Attenborough, a maior estrela do ambientalismo inglês, pelos programas que criou e dirige na BBC.

Trata-se de uma espécie de bolsa-floresta, bancada por dinheiro externo. Em princípio, o que Eliasch pretende comprar não é bem a Amazônia, nem mesmo a floresta, e sim o nosso interesse em mantê-la onde está. O Brasil merece esses créditos de carbono por dividir com a Indonésia a produção de dez por cento da fumaça mundial, só com sua liderança planetária em matéria de fogo no mato. Juntos, os dois países mandam para o ar anualmente cerca de seis bilhões de toneladas de CO2. Na estação das queimadas, emitem por dia a mesma quantidade de gases que oito milhões de passageiros largam na atmosfera, voando entre a Europa e os Estados Unidos. Com esses números, viraram bom negócio. São proprietários de uma das fontes de poluição mais baratas de evitar.

Isso não impede ninguém de aproveitar o projeto para lembrar, alto e bom som, que a Amazônia é nossa. Ela é. Ou será, enquanto existir. E o presidente Lula tem todo o direito de aproveitar a confusão para declarar que “a Amazônia tem dono”. Tem sim, até demais, privatizada como está por grilagens sem fim. Aliás, ela não tem governo exatamente porque tem muito dono. E a última tentativa de controlar o roubo de terras na região foi obra do ministro Raul Jungman no governo Fernando Henrique, lá se vão sete anos. Jungman flagrou na ocasião quase 50 milhões hectares grilados só nos cartórios do Amazonas. Eles cobriam um terço do estado.

Mas a Amazônia é nossa. E, como não foi avisada disso antes de chegarem por lá os tratados de limites, é também boliviana, peruana, equatoriana, colombiana, venezuelana, surinamesa e guianense. Portanto, tem vocação natural para sediar programas transnacionais de conservação, como faz o resto do mundo, da fronteira do Canadá com os Estados Unidos à divisa do Zimbábue com a África do Sul. Seria uma chance de emplacarmos alguma novidade na diplomacia continental, onde o governo Lula tem perdido todas. E de quebra, aprenderíamos alguma coisa com os vizinhos. O Peru, em seu modesto pedaço da Amazônia, tem parques melhores do que os nossos. E o presidente Hugo Chaves pode ser o exemplo mais caricato do populista fanfarrão na política latino-americana. Mas vive falando em plantar um milhão de árvores e o país mantém quase a metade de seu território em áreas protegidas.

Enquanto isso, a Amazônia é nossa. Pena que, nessas horas, pareça tão nossa como era a escravidão em meados do século 19, quando o império brasileiro brandiu o tacape da soberania nacional contra a pressão da Inglaterra sobre o tráfico negreiro, ao mesmo tempo em que o abolicionista Joaquim Nabuco mandava cartas à British and Foreign Anti-Slavery Society, em Brigthon, traindo segredos patrióticos em favor do direito universal. Era nossa também a tortura na década de 1970, quando o presidente Ernesto Geisel encarou a campanha do governo Jimmy Carter em defesa dos direitos humanos. Seria melhor se a Amazônia fosse nossa de outro modo. Porque, no velho estilo hegemônico, os brasileiros já viram onde ela vai parar.

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