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Propaganda enganosa

É louvável que haja campanhas na TV contra os incêndios florestais. Mas não se pode esconder a verdade: o pior fogo não é o acidental, e sim o intencional.

17 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Ver propagandas contra o fogo na televisão, em geral de governos, é comum. O que é um abuso é o fato de serem enganosas. Talvez nem seja por má-fé, mas sim por falta de conhecimento.

As propagandas, até na rede de televisão mais assistida do Brasil, centram suas baterias contra o cigarro, cacos de vidros e garrafas, como se só estes fatores provocassem grandes incêndios florestais. No entanto, já existem pesquisas científicas, conduzidas por um especialista do Cerrado, o professor doutor Bráulio Dias, e por seus orientandos, que demonstraram a baixíssima probabilidade estatística de se provocar incêndios na mata com tocos de cigarros acesos atirados ao léu. Vidros de garrafas quebradas podem sim iniciar um incêndio, assim como o fogo de churrascos feitos na natureza, ao ar livre, se não são corretamente apagados. O fogo pode, igualmente, começar com um raio, mas 95% dos grandes incêndios de que somos vítimas têm outra procedência, bem mais danosa e criminosa. É o fogo colocado.

A diferença do fogo proposital daquele proveniente de um fator natural, ou até mesmo daqueles provocados por desleixo, é que quem quer queimar o faz em vários pontos ou locais. Assim é muito mais difícil combatê-lo, pois vem de todas as partes, tem várias frentes. Já o fogo originado de um raio, ou um caco de vidro exposto ao sol, ou restos de churrasco, tem uma só origem, sendo, portanto, de mais fácil controle.

E esta propaganda enganosa vem de décadas, escamoteando o que realmente acontece, ou seja, incêndios em sua grande maioria ilegais e criminosos. Por que não é claramente informado ao público que os focos de incêndios pelo Brasil afora são resultantes de queimadas feitas por agricultores e pecuaristas para limparem, de forma primitiva, seus campos de cultivo? Ou também em florestas para o uso futuro da terra? Ou para se limpar as beiras das estradas, feitos por proprietários de terras ou departamentos de estradas de rodagem, ao longo das mesmas? Ou, ainda, por pessoas que querem afastar carrapatos ou cobras ou que, simplesmente, odeiam o mato? Ou, finalmente, por piromaníacos que amam o espetáculo do fogo acima de tudo?

A prática de queimar o mato, como bem se sabe, é extremamente perigosa para o entorno natural e, na verdade, não traz nenhum dos supostos benefícios que seus autores imaginam. Promove sucessões vegetais inadequadas, destrói a fauna, inclusive a que é útil sob o ponto de vista humano. Degrada os solos, desperdiça nutrientes e, em geral, foge do controle, invadindo locais que devem ser protegidos, como as áreas de preservação permanente e as unidades de conservação, bem como aquelas propriedades cujos donos não querem o fogo. Muitas vezes, com ventos propícios, o fogo fica incontrolável se arrastando por muito tempo. É muito triste o resultado. Árvores grandes ardendo por dias, cinza e desolação, tamanduás torrados apodrecendo e urubus e carcarás voando acima.

Quem não quer os incêndios gasta dinheiro e mão-de-obra para evitá-los ou apagá-los. Quem quer evitá-los tem de construir aceiros e torres de prevenção de incêndios, tem de comprar materiais para seu controle e ter gente, muita gente, que ajude no combate. Os bombeiros florestais, mal equipados e mal pagos, põem todo ano as suas vidas em risco por causas tão banais como as provocadas pelos incendiários, que as propagandas pudicamente escondem.

E hoje em dia já se sabe que o Brasil é o sexto país do mundo a colaborar com o efeito estufa, que todos nós já sentimos, não pela poluição de veículos automotores, mas pelas queimadas. Assim estamos participando fortemente das mudanças climáticas do planeta, por causa de nossos enormes incêndios florestais.

Por isso, fazer propaganda contra os incêndios é muito bom, ainda mais quando o meio utilizado é a televisão, com imagens de grande impacto. Poder-se-ia prestar um excelente serviço à conservação da natureza, contra esta maldição que é o fogo. Mas dar como causa principal destes desastres o cigarro é uma brincadeira de mau gosto. O cigarro tem seu malefício comprovado para a saúde humana, mas não para provocar incêndios florestais no Cerrado do Brasil. De outra forma, poupar a agricultura e a pecuária é um desvio de conduta sério.

Neste caso, como em outros, protestar é importante. Ficar calado não resolve nada. A boa idéia de prevenir incêndios florestais através da informação ao público está se convertendo num caso flagrante de desinformação. Em vez de se denunciar os culpados, cria-se a falsa idéia de que todos são responsáveis, de modo difuso, pelo dano à natureza. Este negócio de “deixar para lá” está acabando com a imagem deste país na política. Acordem, vamos ajudar a apagar o fogo começando com a verdade, cada vez mais rara nestes dias turbulentos e secos.

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