A delegação de expertos de alto nível contratados pela ONU para assessorar em questões de alimentação ao Governo Revolucionário das Forças Armadas liderado pelo General Velasco Alvarado, do Peru, já estava na sala de reuniões do Ministério da Agricultura. Todos se levantaram quando entrou o Ministro, o General Valdez Ângulo, no seu uniforme de verão onde apenas brilhavam os três soles que indicavam sua patente de divisionário. Após as convenções de estilo, o chefe da missão, um professor russo, foi convidado a fazer o relatório da sua missão e ele foi grosseiramente contundente: “Senhor Ministro, se os peruanos comessem toda a comida que eles jogam no lixo ninguém, no seu país, passaria fome”.
Naqueles dias dos anos 1970 tive minhas primeiras experiências brasileiras de comida. Começou no confim de Mato Grosso, com a turma suada e cansada chegando a um restaurante de estrada onde todos se sentaram e apenas se preocuparam em pedir cerveja. Eu, após um dia de estrada poeirenta, apreciei muito a “cerveja estupidamente gelada”, embora tivesse gostado que alguém lembrasse também da comida. Para minha surpresa, a comida chegou… chegou mais e …. chegou ainda mais. Não lembro quantas travessas tinha acima da mesa, mas eram muitas e pelo menos uns vinte pratos diferentes, muitos de carnes e peixes estavam juntos à nossa disposição. Eu, apesar da reprovação amargada do russo aos meus concidadãos, jamais tinha visto tanta comida para tão poucos e em conseqüência tanto desperdício. Claro é que, anos mais tarde, no meu longo processo de “brasileirização” vi muitos outros desperdícios, como nos rodízios onde carne de primeira é descartada apenas porque está morna e nos churrascos, porque a gente está bêbada demais para comer o que foi preparado. Também, freqüentando políticos, vi beber uísque velho de 25 anos (que eu nem sabia que existia) como se fosse água e derrubar os copos cheios apenas pela suspeita de que a temperatura do líquido teria superado a tolerância extravagante desses bebedores tão ricos como vulgares. Mas, e isso é pior, o desperdício de alimentos não se limita aos restaurantes de beira de estradas, aos rodízios ou a festins de políticos.
O desperdício está em todas as partes e, se o mesmo russo que foi ao Peru tivesse tido a oportunidade de visitar o Brasil, especialmente naquela época, ter-se-ia suicidado ou, se mais pragmático, ter-se-ia mudado para cá e trocado a vodka pela cachaça. Como o desperdício de alimentos tem seu início realmente no campo onde é produzido, nesta ocasião se falará unicamente do desperdício após a compra de comida num mercado ou locais comerciais semelhantes. Começam como é obvio, com as partes dos alimentos que não se come: cascas ou peles, folhas, pedaços de carne com ossos, nervos ou gorduras; frutas consideradas verdes ou muito maduras, etc. Não é pouco, especialmente num país que não come batata com casca, folhas de alho porro ou de aipo, que quase não recicla o pão seco e que gosta pouco de coração, fígado, tripas, cérebro, rim, testículos e outras delícias dos corpos animais. Já sei que muitos dirão, e é verdade, que o país está mudando e que hoje a gente come tudo isso e muito mais. O Brasil de hoje não é o de 30 anos atrás. Não obstante, o desperdício continua.
Jacques Brel, o famoso compositor e cantor belga que fez sucesso na França, com uma canção muito conhecida fazia dizer ao seu satirizado personagem alemão que “a grandeza das nações se mede pela espessura das cascas”. Irônica ou não (durante a guerra, os soldados alemães eram chamados de Doriphor, um inseto verde que come batatas) a frase contem uma verdade fundamental. O desperdício não faz grandes nações e, nas que já foram ou são grandes, como a Roma Imperial ou os EUA de hoje, ele é um indicador do começo do fim. Baixando a bola, lembro-me que o único atrito entre a minha mãe, um pouco peruana, mas essencialmente francesa e a minha esposa, bem brasileira, foi ocasionado pelo desperdício, segundo a primeira, de casca de cebola, quando ambas competiam por fazer o “melhor prato” na cozinha. Desse campeonato, esquecendo a cebola, ganhamos todos!
Um hábito latino-americano sempre chocante é observar o que a gente deixa no prato. Sem falar de meninos que têm os olhos maiores que a barriga, uma grande porcentagem dos adultos faz o mesmo. Raro é ver um prato limpo após uma comida. Os mais pobres aparentemente acham que deixar “algo” no prato é um sinal de bom comportamento ou de elegância na mesa. Lembro-me de ocasiões em que comendo ao lado do Duque de Edimburgo, meu então colega na União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), vi Sua Alteza pegar o pão e passá-lo com os dedos no prato até eliminar a última molécula do molho. Ele, por anos, foi considerado um modelo de distinção. Mas, nunca vi gente verdadeiramente educada deixar comida no prato, salvo, evidentemente, se estiver estragada. Isso é outra coisa: a pior experiência à mesa da minha vida foi ser convidado a comer um surubim podre e ter que tragá-lo para não ofender o anfitrião.
Os restos no prato vão ao lixo ou aos cachorros, mas os muito mais abundantes restos nas panelas são, em geral, guardados e esquecidos no refrigerador até que, redescobertos com a chegada de novas provisões, já só servem para o lixão. Na Europa, onde a população aprendeu a sobreviver à fome provocada pelas guerras e pela natureza, quem prepara comida desenha os pratos diários a partir das sobras do dia anterior. Isso é quase uma regra e assim nasceram tantos pratos como arroz ou o macarrão ao forno, famosos patês e pães de carne, bolinhos de arroz ou de purê de batata, pudim de pão e, claro, muitas sopas e saladas. No Brasil, eles equivalem ao bem conhecido “arroz carreteiro”, mas, a reciclagem não vai muito além, salvo em famílias onde as tradições italianas ou germânicas ainda estão presentes. No Peru, onde a comida é bem mais escassa que no Brasil, o único prato reciclado comum é o “tacu-tacu”, que frita feijão com arroz do dia anterior. Claro que tendo nascido na França, no começo da última guerra mundial, o tema do valor da comida sempre dominou meu entorno. Curiosamente, o argumento dos meus pais para que nenhum prato ficasse com comida era esse bem conhecido “pensa nos milhões de meninos chineses que não têm nada para comer” é ainda integramente válido, embora agora deva se referir mais à África e menos à Ásia.
Com as bebidas acontece o mesmo. A mania da cerveja gelada provoca que inúmeras garrafas e latas desses líquidos arrebentem nos congeladores das casas e que litros sejam desperdiçados apenas porque a temperatura nos copos ou nas latas passou do limite aceitável. Os verdadeiros grandes bebedores de cerveja, na Alemanha, Bélgica ou Inglaterra, a bebem fresca, ou seja, a pouco menos que a temperatura ambiente. A meninada da classe média e das classes mais privilegiadas, com a inaceitável tolerância dos pais, é campeã no desperdício de refrigerantes em copos ou latas e outros recipientes, para alegria dos fabricantes e vendedores. Enfim, esbanjamento puro. A moda de gringo, agora espalhada pelo planeta, de beber só água em garrafas de plástico é outra fonte enorme de desperdício. Diversos estudos demonstraram que muitas vezes ela é de pior qualidade que a água da torneira e que após aberta, se contamina rapidamente.
Outra faceta do desperdício é a moda atual de comprar comida sintética para cachorros e gatos no lugar de reciclar, ou seja, cozinhar restos de alimentos. Isso pode ser incômodo num apartamento, mas, hoje até nas fazendas e sítios se alimenta cachorros e gatos com ração industrial que, provavelmente, é muito menos salutar para os bichinhos, além de seu custo exagerado. A gente acredita demais na propaganda dos fabricantes que apregoam que cachorro vive mais feliz com as tripas atoladas pelas monótonas pílulas que deve tragar a diário. Eles, como nós, gostam da comida diversificada.
Também chama a atenção o fato de que algumas plantas sul-americanas, como a mandioca, sejam tão pouco aproveitadas no seu lugar de origem quando, em outras partes do mundo onde foram introduzidas, se usa de forma integral. Encabeça o exemplo a mandioca da que, praticamente ninguém, nem a maior parte dos índios, comem as folhas, que na África são um importante ingrediente da dieta popular, ricas em proteínas e minerais, tudo o que a raiz dessa planta não tem.
Como em outros assuntos, a educação tem um rol determinante para reduzir o desperdício de comida. Quando no Peru se começou a vender carne de vicunha proveniente de áreas de manejo pertencentes a comunidades camponesas andinas, o esquerdismo dominante orientou sua comercialização aos habitantes pobres com preços extremamente baixos. Mas, os pobres nunca compraram essa carne “de segunda” que, pelo contrário, enchiam os pontos de venda de Mercedes Benz de diplomatas e Cadillacs de ricos. O mesmo aconteceu com a carne de baleia, prevista para os pobres e não para os ricos, nem para a classe média. Vicunha e baleia têm carnes de primeiríssima qualidade. Como se diz que Parmentier o fez na França com a batata que é de origem andina, a estratégia para sobrelevar a ignorância e popularizar essas carnes, foi vendê-la aos ricos a um preço elevado. Só assim os pobres começaram a se interessar por elas e, hoje, a carne de alpaca, similar à de vicunha, é apreciada por todos. Baleia não se vende mais no Peru e a produção legal de carne de vicunha é mínima.
Complementando a educação pode se usar o impacto sobre o bolso. Anos atrás, num rodízio popular de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, os comensais fomos surpreendidos pelo anúncio, no cardápio, que os restos não consumidos da carne seriam pesados e cobrados separadamente. Não pedimos o que não queríamos e não deixamos quase nada. Nestes dias li que os donos dos restaurantes de Hong Kong, também preocupados pelo desperdício, decidiram impor uma multa aos comensais que não comem eficientemente. O impacto no bolso do consumidor faz milagres! Obviamente as famílias desperdiçam muito mais em casa que nos restaurantes. Mas, não sabem medir o seu custo.
Nestes dias em que tudo o que se fala sobre meio ambiente é reduzido a “consumo de energia” vale muito a pena traduzir o tema da alimentação em termos de consumo e mal gasto de energia. Os alimentos consumiram muita energia no campo para ser produzidos e coletados (combustíveis, adubos, pesticidas); para ser processados (lavado, empacotado, refrigerado) e transportados (às vezes sobre milhares de quilômetros); vendidos (passando pelo varejo e pela venda ao atacado, com gastos de energia em refrigeração, iluminação, manuseio, propaganda) e finalmente, para ser transportados e armazenados no domicílio do consumidor final. Esse último, também, gasta energia (eletricidade, gás de cozinha) ao armazenar, preparar ou cozinhar esses produtos. Nem sei se alguém calculou o que tudo isso significa em termos de energia quando se leva em conta os milhares de milhões de toneladas de alimentos desperdiçados a cada ano, por exemplo, apenas na América do Sul. Mas, possivelmente, esse gasto representa muito mais energia que os danos ocasionados por pragas e pestes nos cultivos e criações.
Então, para concluir: Uma política séria com relação ao efeito estufa não pode pretender reduzir seus impactos unicamente mediante a produção de “energia limpa”, como os governos propugnam. Uma verdadeira política para frear as conseqüências da mudança climática deve ser integral e considerar, inclusive, o desperdício alimentar no nível familiar, propondo medidas para reduzi-lo.
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