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O Tuíste do Crescimento

Com o PAC o Brasil avança aceleradamente para devastar a Amazônia, que voltou a ser vista pelo governo como fronteira de expansão. De quebra pode realizar o sonho do século XIX.

24 de janeiro de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Essa coluna pode ser lida melhor ao som de Chubby Checker cantando “The Twist”:
We’re gonna twisty twisty twisty
‘Til we turn the house down

Que o PAC – O Programa de Aceleração do Crescimento seria um exercício duvidoso do ponto de vista fiscal era totalmente previsível. Temos uma carga tributária muito elevada, sobretudo considerando o estado calamitoso de todas as áreas que dependem de recursos públicos. Se o estado retirasse 40% da renda nacional, mas estivesse gerando qualidade de serviços e bem-estar proporcionalmente à sua pegada fiscal, eu não estaria entre os críticos da carga tributária. Que o governo não mostraria qualquer dose de sensibilidade ambiental no seu programa de crescimento, também estava pré-anunciado. Desde a campanha da reeleição, o presidente Lula vinha falando do meio ambiente como um entrave ao crescimento. Que o PAC nasceria velho também era de se esperar. O conceito de desenvolvimento do governo e do PT é anacrônico, mesmo quando descarnado de crenças superadas da velha esquerda.

O que surpreende, então? Que toda a discussão repercutindo a apresentação do PAC aceite que se trata, de fato, de um plano de crescimento adequado a um país como o Brasil, na entrada do século XXI. Não é a miopia do governo que me espanta. É a miopia e a complacência geral da maioria dos políticos e empresários que comentaram o plano. A cobertura da imprensa foi mista, mas compartilha a visão generalizada de que o Brasil, para crescer precisa mesmo desse tipo de obra, mais ou menos desse jeito. Uns acham que com mais participação privada; uns preferem com mais liberalidade ambiental, outros com menos. Mas, em geral, quase tudo o que o governo diz que cabe em um plano de crescimento é aceito pelo valor de face.

O Plano não tem consistência. Suas equações fecham porque todos os parâmetros são determinados pelo exercício de wishful thinking do governo. A consistência fiscal é assim: o governo vai abrir mão de receita, gastar mais e diminuir o déficit porque a economia vai obedecer às sua vontade e crescer 5% ao ano. Os juros vão cair e vai sobrar dinheiro para investir. Aí a arrecadação cresce, o governo pagas as novas contas e tapa o buraco das receitas a que renunciou e tudo dá certo porque o governo determinou por medida provisória que teria que dar certo. O desejo vira previsão. Não vai ser assim no país real.

Sonhando com o século errado

O que espanta e inquieta é que o Brasil está dominado por idéias ultrapassadas. Sonha um sonho de grandeza do passado, não o sonho de qualidade dos novos tempos que a humanidade vive. Quando as elites brasileiras, nela incluídas as elites políticas, Lula e o PT à frente, olham para o futuro, só vêem reflexo do passado. O futuro, para a maioria, é um espelho que reflete o passado e nele projetam o Brasil.

Ao ver a exposição dos ministros de Lula, principalmente da Primeira-dama do Gabinete, a ministra Dilma Roussef, me dei conta de que vamos perseguir o sonho de desenvolvimento que fazia sentido na plataforma de Artur Bernardes, na República Velha; de Getúlio Vargas, no Estado Novo; de Juscelino Kubitschek, nos anos 50 em 5, aí já para correr atrás do prejuízo, de atrasos que nos haviam deixado subdesenvolvidos: energia, rodovia e manufatura, no caso siderurgia.

Nos anos 20 e 30, construir fábricas e ferrovias era um plano futurístico para um país como o Brasil. Nos anos 50, as metas juscelinistas de construir hidrelétricas e rodovias, já constituíam um plano de desenvolvimento para um país que ficara para trás. Um sonho de país subdesenvolvido querendo se desenvolver. Mas tanto no canteiro das obras juscelinistas, quanto no lulista, falta escola, falta investir no que realmente tira um país do subdesenvolvimento: educação, ciência e tecnologia. Continuamos crentes de que manufatura é progresso. Por isso vivemos sempre uma industrialização a reboque da tecnologia, do design e do capital dos outros.

No Século XXI, um plano de rodovias – para encher de caminhões queimando diesel – de hidrelétricas – que podem ajudar a destruir a Amazônia – e indústrias é apenas nostálgica volta aos modelos do passado. Nada tem de futuro, muito menos de futurista.

Agenda global está cada vez mais centrada na questão do clima e do meio-ambiente. O presidente Lula falou, em seu discurso, em ambiente três vezes: “ambiente para mudar e avançar”, ao que tudo indica, sobre a Amazônia; “o ambiente interno do governo”, que não deve ser lá essas coisas; “a democracia é um ambiente mais saudável para o crescimento”. Frases feitas, desfeitas na conspícua ausência do meio-ambiente na noção oficial de progresso e na falta de consciência do passivo ambiental que Lula carrega, expresso na maior média de desmatamento no espaço de um mandato. Se emplacar a seção amazônica do PAC, ele corre o risco de bater seu próprio recorde. Parece que esse governo nunca ouviu falar de aquecimento global.

A excitação em torno do pacote dava a impressão de que seria algo revolucionário, uma resposta audaciosa ao país que permitiu a esse presidente realizar o sonho pessoal da mobilidade máxima de sair da base para chegar à chefia da Nação. Mas serviram apenas um mexido, reciclando projetos na gaveta, idéias tiradas do baú de receitas dos bisavós para tentar desenvolver um país de periferia em meados do século passado.

Futurista seria pensar um Brasil do conhecimento, buscando uma economia de baixo carbono, com ênfase na educação, na distribuição de renda, na ciência e na tecnologia. Sonhar com o futuro é pensar uma Amazônia preservada, capaz de prestar serviços de regulação do clima, das águas, e de prover biodiversidade. Cortá-la de estradas, entupi-la de hidrelétricas, usar seus rios para escoar produção obtida às custas da derrubada de suas matas é uma velharia sem senso ou sentido.

Obras de empreitada

Fiquei olhando a ministra Dilma Roussef apresentando uma colcha de velhos retalhos, relíquias de um projeto nacional que não se realizou completamente no passado, embora nos tenha custado duas ditaduras e um longo período de hiperinflação. Só duas coisas não eram repetecos do passado: o powerpoint meio desajeitado e o real, moeda estável, pelo menos as contas não eram em cruzeiros, nem cruzeiros novos, nem cruzados. A moeda nova vai financiar idéias vetustas, em parte responsáveis pela destruição das moedas que ela substituiu. Idéias deveriam ser novas. Velhos podem ser os ideais de progresso com justiça social, democracia plena, aos quais, há algumas décadas, somou-se o do equilíbrio ecológico.

Que sonho é esse do PAC? De fazer do país um “canteiro de obras”, para consumir muito cimento, muito aço, emitir muito carbono, empregar mão de obra de baixa qualificação. E construir o quê?

Moradias, tudo bem, porque os erros desse passado que não se quer exorcizar deixaram mesmo um déficit habitacional enorme. Mas com material de construção obsoleto, com subsídio para instalar chuveiros elétricos, quando poderia estar incentivando o uso da energia solar. Enfim, moradias velhas e de baixa qualidade.

Fábricas, rodovias, pontes, é dessa construção que se jactam as metas do novo pacote. Rodovias, para encher de caminhões e ônibus queimando óleo diesel e facilitar a entrada dos grileiros, sojeiros, carvoeiros, madeireiros e vaqueiros cada vez mais fundo na Amazônia. Fábricas, para abrigar máquinas. O orçamento de obras desonera hardware, mas não desonera cérebros. Ele constrói infra-estrutura física, mas não investe na infra-estrutura da inteligência: escolas, laboratórios, centros de excelência, pesquisa, redes de comunicação.

Chama de logística um orçamento de obras viárias. Logística não é isso. É inteligência, informação, é infra-estrutura de comunicação em rede, para que se possa, trocando informação, planejar o transporte das cargas, para economizar tempo, recursos, combustível. Programação de entrega. Organização da disposição da carga para facilitar o embarque e o desembarque. Aumentar a velocidade de carga e descarga. Integrar modais e planejar o uso de acordo com as distâncias e os destinos, para minimizar custos e maximizar benefícios, inclusive ambientais.

É um pacote centrado no hardware, que foi o eixo central da revolução industrial do século XIX e da industrialização do século XX. A revolução que vivemos no Século XXI está centrada no software, no conhecimento, no fluxo do conhecimento para promover a inovação, aumentar a eficiência e a produtividade no uso de todos os fatores, inclusive os recursos naturais e energéticos.

Fronteira do atraso

No Brasil, pelo que disse a ministra Dilma, estamos, ainda na era dos almoxarifados e das fronteiras de expansão: “No que se refere à área estritamente de logística, os objetivos são: o aumento da eficiência produtiva em áreas consolidadas, a indução ao desenvolvimento em áreas de expansão de fronteira agrícola e mineral, a redução de desigualdades regionais em áreas deprimidas e a integração regional Sul-Americana”.

Ela não está falando de logística. Está falando de malha viária. Com a mesma idéia que levou JK a criar Brasília e a Belém-Brasília. Para fazer avançar a fronteira e ligá-la ao centro. Quando as estradas são indutoras de desenvolvimento em áreas de expansão de fronteira agrícola e mineral e essa fronteira é a Amazônia, estamos falando de desmatamento incentivado. Estrada não reduz desigualdades regionais, muito menos em áreas deprimidas. Traz os que têm recursos para explorar seu entorno, atrai trabalhadores de outras regiões e os pobres locais ficam, na sua maioria, pegando xepa na sua beira.

Estradas não integram. Elas ligam. Integração é um processo político, diplomático, econômico e cultural, que exige disposição coletiva para o acordo, interesses comuns mais fortes que os conflitos, disposição de transpor os obstáculos de língua, valores culturais e preconceitos historicamente consolidados, para o que de nada servem caminhos, pontes e túneis.

A lógica da fronteira é a lógica do “desbravamento”. Desbravar significa: tirar a braveza, amansar, domar; arrotear; preparar terrenos para a cultura. Foi isso que fizeram com a Mata Atlântica, o cerrado e parte da Amazônia: amansar os silvícolas; desmatar; fazer as primeiras cavas para a cultura. É isso que o programa de “logística” do governo promete para a Amazônia. A floresta não vai agüentar.

Quando Dilma Roussef falou em “fronteira de mineração” me lembrei imediatamente das belas e terríveis fotos de Sebastião Salgado em Serra Pelada. Tem um novo garimpo, Juma, se formando na Amazônia agora, em Novo Aripuanã e de Apuí, a 453 quilômetros de Manaus. Aquilo não é fronteira mineral. É desespero asselvajado de populações largadas na pobreza, na ignorância e amansadas com programas assistenciais, que um dia alucinam com o sonho impossível do Eldorado Amazônico. A ministra está pensando, claro, nos grandes projetos minerais. Eu estou falando de um modelo de desenvolvimento na Amazônia, que zere o desmatamento e, ao mesmo tempo, elimine as fontes desse desespero asselvajado que ao primeiro brilho de um falso brilhante rasga a mata, abre uma cratera e produz uma avassaladora migração rumo à pobreza. O único Eldorado que existe na Amazônia é o Eldorado de Carajás. O bem-estar está no desenvolvimento de qualidade da região e a qualidade está em duas coisas essenciais: na preservação e valorização da mata e na educação e valorização de seus recursos humanos.

A noção de fronteira já não fazia muito sentido no período dos generais presidentes. Mas ainda éramos um país de 70 milhões, a Amazônia não havia perdido nem 10% de sua cobertura. Hoje, é tão insólito e subdesenvolvido como o Rolls Royce que serve os presidentes no dia da posse. Só pode significar expandir sobre áreas inexploradas, quando o objetivo, hoje, deveria ser o contrário: a retração das atividades das áreas em que chegaram recentemente e que ainda podem ser recuperadas. A “expansão” agrícola tem que ser desviada para áreas há muito desmatadas e que se encontram hoje abandonadas.

Plano não é isso que o PAC é. Pelo menos não é isso um plano na época que vivemos. Plano inteligente calcula os custos totais das ações – econômico-financeiros, sociais e ambientais – para ver se elas têm mesmo benefício líquido. Examina interações estratégicas, no tempo e no espaço, para maximizar objetivos de qualidade. O PAC quer maximizar crescimento quantitativo, independentemente de seu conteúdo, de sua qualidade, de seus retornos em qualidade de vida. É basicamente uma soma de orçamentos escritos com os olhos firmemente fixados no retrovisor. Não é um sonho, nem visa o futuro. Faz crescer, se fizer, para trás.

Mirando o futuro

Sonho futurista seria de um Brasil cheio de escolas de qualidade, ensinando bem, a todos os jovens do país, transmitindo o conhecimento que permitiria se tornassem cidadãos qualificados moral, cívica e culturalmente. Um plano orientado por esse sonho daria preferência a investimento que valoriza o capital intelectual e social do país. Seria um plano para o futuro e de futuro, que desoneraria o capital humano, protegeria o capital natural e incentivaria o capital intelectual. Hoje, contratar cientistas e engenheiros custa caro por causa da carga tributária que incide sobre o capital humano. E o governo, que se diz de esquerda, esbanja impostos para subsidiar capitalistas, compra de máquinas e construção de prédios.

Investimento de qualidade não se atrai com subsídios, gasto público e flexibilidade nos licenciamentos. Esse é o investimento velho, com noções contemporâneas às que inspiraram o PAC. O bom investimento de futuro, se atrai com boas regras, claras, estáveis, seguras; agências regulatórias independentes, com recursos operacionais e humanos de qualidade; capital humano de qualidade; pesquisa básica de ponta, que sirva de base para pesquisa e desenvolvimento por empresas de alta tecnologia.

Um plano ousado, feito com grandeza, falaria muito de educação, ciência e tecnologia. Criaria estímulos para que as cidades implantassem redes sem fio abertas, para que seus cidadãos se conectem com menos custo e maior facilidade e busquem formas de usar a rede para se integrar a sistemas de conhecimento, serviços, nichos culturais e, de quebra, se comunicar com familiares, amigos, colegas distantes, ampliando suas referências quase infinitamente no plano da rede global, enquanto mantêm, recuperam e reforçam suas referências pessoais. Seria um plano de futuro se aplicasse todos os esforços e recursos necessários para manter a Amazônia em pé, confinando pecuaristas e sojicultores a áreas já ocupadas legalmente e pondo na cadeia carvoeiros e grileiros.

Visionária e ousada seria a aspiração de uma Amazônia íntegra, rodeada de escolas para a população local, laboratórios para estudar sua biodiversidade, incubadoras de empresas voltadas para o desenvolvimento de produtos baseados na sintetização de princípios ativos da biodiversidade, terapêuticos e nutricionais, gerando empregos de qualidade em toda a cadeia bioindustrial. Seria um plano voltado para assegurar as populações jovens da região a possibilidade da mobilidade social. Para que possam almejar ser técnicos de laboratório, professores qualificados, cientistas, empreendedores, poetas, filósofos. Todas profissões essenciais pertinentes ao século XXI. Todas ligadas à indústria da conservação e à bioindústria de transformação.

A busca de desenvolvimento de cada uma das regiões do Brasil, nessa visão do passado, está focada nos mesmos alvos. Fala-se de “vocações regionais” apenas como um qualitativo habitual, mas a receita é sempre a mesma: obras viárias, indústrias, subsídios ao hardware. Se examinássemos, as verdadeiras vocações regionais, com os binóculos do século XXI, treinados para dar foco primeiramente à economia da informação e do conhecimento, descobriríamos um novo Brasil, o único que tem realmente potencial para se tornar um país desenvolvido e civilizado.

O governo não me surpreendeu. O presidente me decepcionou mais um pouco. Mostrou que não sabe sonhar grande para os outros. Fiquei espantado foi com a recepção do plano: a complacência com suas óbvias falhas, conceituais, estratégicas, fiscais e ambientais. Receberam como novo algo que se pode encontrar nos sebos que vendem projetos desenvolvimento de décadas passadas. Foi o óbvio parentesco, com menos qualidade técnica, com os PNDs da ditadura. Foi a perda de visão crítica, o domesticado oportunismo das elites econômicas, a falta generalizada de medida de qualidade, que me deixou suspeitando que Lula nada mais está fazendo que representar o espírito da Nação, expressando o sentimento profundo de um país que não quer entrar no século XXI, a não ser como visitante do passado.

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