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O pior caminho

A discussão sobre instalação das hidrelétricas do rio Madeira enveredou pelo pior caminho possível, o resultado pode comprometer a segurança ambiental e energética do país.

26 de abril de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A discussão sobre instalação de hidrelétricas no Brasil está indo pelo pior caminho possível e pode comprometer tanto a segurança ambiental, quanto a segurança energética do país. E quem está errado é o ministro Silas Rondeau, das Minas e Energia, que resolveu forçar a mão, ameaçar o país com carvão e energia nuclear, se a licença para as usinas do rio Madeira não sair na data que ele quer. Que o presidente Lula não trate o assunto com a profundidade que ele merece é uma coisa. Ele é político, foi eleito pelo voto direto, pode se dar certas liberalidades. Mas o ministro não deveria politizar o assunto e sim tratá-lo de forma séria e técnica.

Hora da palavra

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, já cedeu. O parecer do Ibama recomenda que não seja dada a licença prévia. O Ibama, por sua orientação vai, ao invés disso, pedir mais análise dos impactos ambientais que não estão corretamente tratados na avaliação que as empresas fizeram. O Meio Ambiente está examinando os estudos de técnicos contratados pelo ministério das Minas e Energia e pelas empresas do consórcio. Já o ministro das Minas e Energia disse, várias vezes, à imprensa que não sabe da existência do parecer dos técnicos do Ibama, como a busca no site do Ibama é um pouco demorada, ele pode ser encontrado aqui e o despacho do ex-presidente do Ibama, aqui. O ministro tinha a obrigação de saber da existência do parecer. É um documento oficial, o parecer está previsto em lei e levanta vários pontos importantes. Deveria chamar a atenção dos assessores que não o informaram sobre ele.

Eu li um dos estudos (Rolf Aalto et allii – “Episodic Sediment Accumulation on Amazonian Flood Plains influenced by El Niño/Southern Oscillation”) citados pelo parecer, sobre a formação de sedimentos na bacia Amazônica, especialmente na parte andina, mais alta, de onde os sedimentos descem e me convenci de que a situação lá não se compara com a dos rios na França e nos Estados Unidos usados como referência pelo técnico francês Sultan Alan, o Rhône e o Mississipi. E mais, eles mostram que o ENSO influencia o aumento dos sedimentos. O primeiro relatório do IPCC sobre mudança climática diz que esse fenômeno pode se tornar mais freqüente, agravando o problema de formação de sedimentos. Que, diga-se de passagem, compromete a produtividade e a rentabilidade do empreendimento.

O ministro deveria dar uma lidinha. Veria que não é conversa de pescador preocupado com o sumiço de um punhado de bagres. Poderia, também tornar públicos os relatórios dos técnicos estrangeiros, para que possam ser cotejados com o EIA e com o parecer do Ibama. Aí teríamos o início de um debate técnico sobre um assunto da maior importância.

O ministro Rondeau diz que se não sair logo a licença o governo vai fazer termoelétricas a carvão ou nuclear. Isso é ameaça, não é política pública. O ministro deveria estudar melhor as fontes alternativas de energia e cortar o carvão da matriz energética brasileira. Ele poderia colaborar para fazer com que a nossa energia hidrelétrica seja verdadeiramente uma alternativa ambientalmente sustentável, coisa que ela pode ser, mas não é. Terceiro, não lutamos pela democracia no país, para que uma pessoa possa decidir que energia o país vai usar.

Ou seja, continua faltando seriedade política e técnica na gravíssima discussão sobre energia no Brasil. Nós precisamos de energia e precisamos de energia limpa. E para isso tem que haver diálogo sério, técnico e cooperativo.

Brasa da palavra

Mas ficou tudo ainda pior, com o anúncio das mudanças na estrutura do ministério e do Ibama, em particular. Em política, a versão vale tanto quanto o fato. E a versão dominante é que a mudança é resultado da pressão do presidente e do ministro, para que os projetos do rio Madeira sejam liberados logo. Pode não ser isso, o ministério do Meio Ambiente pode estar planejando a mudança há mais tempo. Mas o fato de ter anunciado no calor da pressão – liderada pelo presidente da República – fortalece a versão de capitulação à pressão e enfraquece a autoridade regulatória do Ibama.

Embora o IBAMA tenha muitos problemas graves – da corrupção a deficiências técnicas – conhecidos de longa data, o caminho não é desautorizá-lo ou esvaziá-lo. Além disso, apenas retirar partes dele não faz muito sentido. Faz todo sentido criar uma agência para cuidar das unidades de conservação. É coisa que, realmente, deveria ter sido feita há muito tempo. Uma velha demanda agora atendida. O que não faz sentido é deixar o Ibama como sempre foi, sem algumas partes. Ele deveria ser radicalmente transformado, para atuar como uma agência regulatória ambiental com autonomia e recursos técnicos e financeiros suficientes para garantir a segurança ambiental do país. Sua especialização evitaria uma postura excessivamente conservacionista, de resto ultrapassada. Está claro que o Ibama precisa de uma reforma estrutural profunda.

Já a desqualificação do licenciamento, pelo presidente e seu ministro das Minas e Energia, aumenta os riscos ambientais do país e o risco regulatório para os investidores, além de criar também ameaça externa, por alimentar pressões adversas e retaliações por causa de uma atitude ambiental fora do padrão global.

É preciso considerar que o consenso científico e as evidências sobre a mudança climática global redefiniram radicalmente a questão ambiental e tornaram boa parte do ambientalismo “verde” tradicional superado. Por causa do clima, a variável ambiental se transformou em um fator central nas decisões econômicas e políticas. Ele está redefinindo as bases do capitalismo no século XXI e redesenhando o mapa geopolítico global. Nos próximos poucos anos se verá como esse fator criará restrições severas ao crescimento chinês no padrão atual, novas forças nas relações internacionais e novos padrões de governança corporativa.

Nesse contexto global, o Brasil tem hoje dois caminhos: seguir a tendência com atraso e sob pressão; ou aproveitar a tendência, que cria para nós algumas vantagens competitivas relevantes, e aproveitar as oportunidades de sair na frente.

Na raiz, o mal

Está claro, ainda, que na raiz do impasse ambiental brasileiro não está em um ambientalismo anti-desenvolvimentista, mas em dois graves problemas que afetam a economia e a sociedade brasileiras como um todo: baixíssimo índice de obediência à lei e desgovernança regulatória. Sobre isso, o Brasil silencia, toda vez que esquece o último episódio.

O desregramento explica, em grande parte, o descrédito dos EIA-RIMA, na sua maioria fraudulentos ou tecnicamente ineptos, todos realizados na última hora, apenas para cumprir formalidades. Explica, também, a destruição da Amazônia, onde 90% do desmatamento é ilegal. Como explica a corrupção sistêmica, o aumento da violência, a pirataria, o trabalho escravo e a sonegação.

A suspeita justificada sobre os EIA-RIMA fortalece os vetos e chama atenção do Ministério Público para os projetos denunciados.

A desordem regulatória cria uma situação de insegurança de contratos e de regras que inibe investimentos, por submetê-los a riscos elevados de discricionariedade das decisões regulatórias e mudança de regras e contratos ao sabor das conjunturas e das conveniências. Sem um marco regulatório claro e sujeitos à interferência política e governamental nas agências, os reguladores também ficam sem parâmetro e sem controle institucional, muitos acabam adotando comportamentos discricionários, que ora podem favorecer o setor privado, ora desfavorecer, sem base técnica suficiente para uma coisa ou outra. O marco regulatório serve também para proteger e regular os reguladores. Portanto, sem “law enforcement” e um marco regulatório seguro, transparente, estável e eficaz para gerar segurança à sociedade e aos investidores, qualquer discussão substantiva sobre regulação temática ou setorial fica meio ociosa.

Governança

Mas, imaginando que se estabeleça o primado da lei e se dê ao país um marco regulatório confiável – que atenda à sociedade e ao mercado – no âmbito ambiental é clara e evidente a necessidade de uma agência regulatória independente, aos moldes daquelas criadas na Europa na última década, que dê segurança ambiental e crie regras e parâmetros para o investimento em energia, compatíveis com a necessidade de reduzir o índice de carbono das economias.

Por outro lado, as empresas terão que mudar seus padrões de governança corporativa e os investidores os padrões de formulação de projetos. A avaliação de impacto ambiental deveria ser feita junto com a análise de viabilidade econômico-financeira e tecnológica do empreendimento e não no final do processo, para cumprir formalidades. Deveria ser uma avaliação real, competente e de credibilidade. Isso tiraria do mercado, hoje, a quase totalidade das empresas que se dedicam a EIA-RIMA no Brasil.

O Brasil tem grandes vantagens energéticas em um mundo que caminha para uma economia de baixo-carbono, mas precisa explorá-las dentro dos novos padrões ambientais. Por exemplo, a energia hídrica é uma vantagem, porém se for feita tão limpa quanto pode ser. Isso implica novos custos: na escolha de tecnologia e na redução do impacto ambiental. O mundo está caminhando para energia mais cara em geral e isso é bom para a economia de energia. No caso das hidrelétricas, será também preciso investir na redução das emissões de metano. Já existe tecnologia para capturar metano nos reservatórios e na boca das turbinas. Não há dúvida de que, daqui para a frente, projetos hidrelétricos controvertidos sofrerão o pleno impacto do risco regulatório.

Não existe mais caminho livre para decisões com grande impacto ambiental. Ou se investe na mitigação do risco – e se abandona os projetos em que o custo ambiental supere o benefício econômico – ou os investidores correrão riscos múltiplos e convergentes, que terminarão por inviabilizar os empreendimentos.

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