A biodiversidade teria o potencial para se tornar uma base econômica potente para a conservação de florestas brasileiras? Segundo dados do Katoomba Group, o valor econômico da biodiversidade global seria da ordem de trilhões de dólares, e o valor comercial de todos os materiais genéticos estaria entre US$ 500 e 800 bilhões por ano.
No entanto, a mesma fonte indica que serviços de biodiversidade ainda são um mercado nascente. Os principais compradores são fundações e instituições multilaterais, e os mercados mais sofisticados estão surgindo nos países desenvolvidos. Isso acontece, segundo eles, porque esses países têm direitos de propriedade melhor estabelecidos, assim como políticas públicas e regulamentações fortes. O que traz maior segurança para o investidor.
O potencial desse mercado no Brasil é muito grande, pela simples razão de termos a maior biodiversidade do mundo – 20% do número total de espécies do planeta, segundo estimativas. O potencial é ainda maior do que esse número indica, pois esse patrimônio genético ainda se encontra relativamente inexplorado, quando comparado ao dos países desenvolvidos.
Uma das pontas por onde o Brasil começa a explorar esse potencial é a criação de novos medicamentos. O processo é recente, por duas razões. Em primeiro lugar, o crescimento do interesse dos pesquisadores pelos produtos de origem natural não é tão antigo.
Além disso, a indústria farmacêutica brasileira cresceu em um ambiente onde não havia incentivos para a pesquisa básica, já que as patentes de medicamentos estrangeiros não eram respeitadas e os laboratórios nacionais podiam copiá-los à vontade. Com a entrada em vigor da nova lei de patentes em 1996, os nossos laboratórios começaram a buscar caminhos para a sua sustentabilidade econômica através do desenvolvimento de produtos próprios.
O foco nos fitomedicamentos foi natural. Temos uma outra vantagem importante, além do patrimônio genético, na busca de medicamentos derivados da biodiversidade: a variedade de culturas e tradições. A pesquisa em fitomedicamentos parte do conhecimento tradicional, e quanto mais variadas forem as receitas de chás, garrafadas, e outras formas de medicina popular, mais matéria-prima existe para os pesquisadores. De resto, o desenvolvimento de fitomedicamentos é uma alternativa interessante porque mais barata do que a síntese de novos compostos em laboratório.
Segundo o farmacologista João Batista Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina, o custo de desenvolvimento de um fitomedicamento fica em torno de 2 a 3% do custo de um novo medicamento sintético – graças ao uso do conhecimento popular, aos processos mais simples de produção, e ao processo mais rápido de testes e registro. Ainda assim, os desafios são consideráveis.
Conhecimento tradicional é quase sempre correto, diz Calixto, mas muitas vezes impreciso: as receitas se referem a nomes populares que se aplicam a mais de uma espécie de planta. E o processo de descoberta é substancialmente diferente daquele que se aplica aos medicamentos sintetizados em laboratório, o que exige atitudes e competências diferentes dos pesquisadores.
Na prática, a falta de legislação específica e de tradição na proteção de propriedade intelectual no Brasil, aliadas à falta de recursos das empresas, impediram uma arrancada mais rápida das pesquisas. O estabelecimento pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em 2000, de normas para o registro e comercialização desses medicamentos, a capacitação do INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual), para examinar e registrar patentes, e a eleição do setor de fármacos como uma das prioridades da política industrial do ministro Furlan tem sido passos importantes no sentido de remover barreiras e tornar o estado parceiro das empresas e institutos de pesquisa. Um laboratório paulista recentemente anunciou que colocará no mercado em 2005 um antiinflamatório de origem vegetal, derivado de uma garrafada que um dos acionistas da empresa conheceu no litoral do estado.
Se ainda há muito espaço para melhorar as relações entre empresa e universidade, ainda prejudicadas pelo excesso de burocracia, não há muito tempo para fazê-lo. A FDA, órgão de registro de medicamentos do governo americano, ainda não reconhece fitoterápicos, classificando-os como aditivos alimentares. Fontes da indústria indicam que eles estariam apenas esperando que os laboratórios americanos acumulem massa crítica de conhecimento para então começar a conceder registros. Se não agirmos rápido, esse mercado também pode cair sob o domínio dos megalaboratórios transnacionais.
E o que tudo isso tem a ver com preservação ou manejo de florestas? Como um fitomedicamento não pode ser produzido em escala industrial a partir de produtos retirados da floresta, é necessário domesticar as plantas de origem para cultivá-las. O tal do manejo sustentável nem entra em questão, pois não há atividade extrativista. Por outro lado, os laboratórios certamente têm interesse na preservação do patrimônio genético das florestas. Falta avaliar qual o alcance desse interesse.
A propriedade intelectual do conhecimento tradicional pode vir a se tornar fonte de renda importante para as comunidades detentoras do conhecimento tradicional, em função de imperativos do mercado e não de legislação de proteção. Como a área é muito nova, os pioneiros procuram cercar-se de precauções. Uma delas é a busca da cooperação das comunidades, através de acordos de pagamento de royalties. Os laboratórios sabem que esses produtos têm seu maior mercado junto a consumidores conscientes, e portanto sabem que precisam preservar sua reputação de responsabilidade social e ambiental.
É uma oportunidade para criar um compromisso maior entre comunidade e meio ambiente. Pode estar aí a base para um modelo sustentável de exploração da biodiversidade, desde que se leve em conta que a sua base é a natureza, e que sem ela o conhecimento tradicional não tem valor nenhum.
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