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O sertão vai virar mar

A transposição do rio São Francisco é vítima de preconceito, por desinformação ou má-fé. O projeto representa um golpe para a indústria da seca no semi-árido.

30 de novembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Uma das características mais marcantes das questões ambientais é que, em grande parte das vezes, determinados empreendimentos ou projetos ficam marcados de uma tal forma pela opinião pública que, independentemente de suas virtudes ou defeitos, eles passam a ostentar a condição de ícones. Trata-se, evidentemente, de circunstância que não guarda qualquer relação com a racionalidade. Ao contrário, em geral, elas são a expressão de uma postura preconceituosa e, como tal, pouco inteligente.

Um dos grandes ícones do mal que atualmente povoam o imaginário nacional é o projeto de transposição de águas do rio São Francisco que foi anunciado recentemente como uma das prioridades do governo Lula. Curiosamente, o governo está sendo acusado de tentar viabilizar o projeto, a partir de 2005, com finalidades eleitorais.

Em primeiro lugar é necessário que se esclareça o termo transposição. Transposição é uma simples transferência de águas de uma determinada bacia hidrográfica para outra. É injusto acusar o governo Lula de eleitoreiro pelo fato de querer dar início ao projeto em 2005. Eleições existem – felizmente – a cada dois anos; logo, qualquer projeto de envergadura sempre atravessará um ou mais períodos eleitorais. Fato é que a transposição das águas do rio São Francisco é um projeto que existe há mais de 100 anos. O imperador D. Pedro II já havia mandado estudar o assunto. Dificuldades técnicas e econômicas impediam que, na época do Império, a empreitada pudesse ser realizada. De lá para cá, vários têm sido os projetos, com maior ou menor impacto, sobre a utilização das águas do rio São Francisco. Aliás, é importante ressaltar que os homens do Conselheiro tinham muito claro a necessidade de irrigação do semi-árido, pois como diziam o sertão iria virar mar, refletindo uma aspiração profunda do sertanejo.

O chamado rio da integração nacional é fortemente utilizado para geração elétrica, navegação e pesca. Infelizmente, ao longo dos anos as condições hidrológicas foram se deteriorando em função de descaso, caracterizado principalmente pela destruição da mata ciliar e do assoreamento, frutos de uma utilização excessiva e pouco criteriosa dos recursos hídricos. Esse quadro poderia recomendar a não inclusão de um novo uso das águas do rio São Francisco. Criou-se, em função da desinformação e até mesmo da má-fé, uma contraposição entre transposição das águas e revitalização do rio. Nesta altura é importante frisar que tanto um como outro projeto são inteiramente desconhecidos do respeitável público.

O governo Fernando Henrique Cardoso deu passos concretos para a implantação do projeto, encaminhando-o para licenciamento ambiental pelo Ibama, que chegou a realizar diversas audiências públicas para auscultar a opinião das comunidades. Entretanto, uma das audiências – realizada na Bahia – foi suspensa por uma liminar judicial e, na prática, matou o projeto. A proposta então em discussão limitava-se a admitir que cerca de 5% das águas do rio fossem desviados para o semi-árido sempre que houvesse uma seca aguda. Não haveria uma retirada constante de águas do rio São Francisco. Entretanto, a porcentagem insignificante de águas a serem transpostas submergiu à força da desinformação e a imagem que ficou é a de que o rio São Francisco seria drenado para atender ao semi-árido de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Alguns chegaram a dizer que o Ceará tem água demais.

É evidente que a implementação do projeto da transposição, necessariamente, deve contemplar mecanismos que possam assegurar de forma mais garantida a perenidade do rio, enfrentando os problemas de assoreamento, reflorestando as margens, protegendo as nascentes etc.

A transposição não será a solução de todos os problemas de seca do Nordeste, pois outras medidas de caráter estrutural podem e devem ser tomadas pelos administradores públicos. O Ceará, por exemplo, tem dado provas de que a questão pode ser enfrentada com seriedade e continuidade administrativa. É importante observar que, caso o projeto venha a ser realmente implementado, seguramente estaremos diante do maior golpe já sofrido pela indústria da seca, pois o custo do projeto é ridículo se comparado com as fortunas que anualmente são gastas para enfrentar a seca. A experiência internacional acumulada em obras semelhantes à projetada é bastante grande e, certamente, servirá de roteiro para que se evitem os erros que foram cometidos em outros lugares.

Vamos esperar que o presidente Lula consiga vencer as pressões antagônicas e dê luz verde ao projeto de transposição das águas, de forma que, brevemente, a seca possa ser amenizada em algumas regiões do semi-árido nordestino.

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