No artigo da semana passada tangenciei o problema do recolhimento do lixo na Ilha Grande. Evidentemente que, dado ao fato de que expressei um ponto de vista pessoal, este pode estar – e certamente está – cheio de erros e defeitos. O que me parece fundamental na questão, de acordo com a minha forma de examinar o assunto, é que não podemos enfrentar as dificuldades inerentes aos diferentes usos da Ilha Grande com o velho discurso de que devemos, a todo custo, evitar a ocupação da Ilha e, com isto, mantê-la preservada. Há um erro básico na premissa. A Ilha já se encontra ocupada. Na verdade, os problemas que lá existem têm uma única causa: a ocupação humana. Assim sendo, qualquer solução que se busque dar para as dificuldades da Ilha deve passar por um exame criterioso da questão fundiária.
Saber quem é o dono do que na Ilha Grande é o primeiro passo a ser dado. É importante que se faça um cruzamento dos cadastros fundiários da União, do Estado do Rio de Janeiro e da Prefeitura de Angra dos Reis de forma a que se saiba quais áreas estão sendo ocupadas ilegalmente. Acredito que a conclusão não será surpresa para ninguém. Não seria exagerado que se fizesse uma análise dos diversos processos de usucapião e outras ações reais referentes às terras da região, que se verificassem os registros de imóveis, etc. É provável que muitas “novidades” surgissem de tais pesquisas e, finalmente, descobríssemos que a grilagem de terras públicas na área é um fenômeno tão fluminense quanto amazônico. O tema é relevante, pois qualquer que seja o modelo de desenvolvimento que se pretenda dar à Ilha Grande, ele terá que necessariamente passar pelo uso e ocupação do solo.
No caso da Baía da Ilha Grande, assim como para a Ilha Grande, o problema fundiário diz respeito, fundamentalmente, à ocupação da área de praias. Não é exagero lembrar o que consta do artigo 20 da Constituição Brasileira: “Art. 20. São bens da União: .IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e à unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II.” Assim, dura lex sed lex (no cabelo só Gumex), no Brasil não existem praias particulares e, portanto, a sua utilização pelos particulares somente pode ser feita na forma da lei e, sobretudo, atendendo ao interesse público. No entanto, o que se vê no país inteiro é, exatamente, o contrário. Há um processo célere de privatização das praias sem qualquer previsão legal e que, na maioria das vezes, não gera nenhuma contribuição significativa para a sociedade.
Praia é um bem público
Um dos aspectos que ainda não foram muito bem assimilados pela sociedade brasileira é o regime jurídico aplicável às praias. De acordo com a lei brasileira, a praia é um bem público de uso comum do povo e, portanto, de livre acesso para qualquer cidadão. Entretanto, a realidade que se observa é a de “praias particulares”, o que não existe em nosso Direito Administrativo, muito embora seja uma realidade de fato. Aos 28 de agosto de 2004, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério do Planejamento lançaram o Projeto Orla, visando garantir o livre acesso às praias. No que deu, ninguém sabe. O nível de “privatização” chegou a tal ponto que, na Ilha Grande chegou-se a registrar banhos de mar “em pelo” de altas autoridades de nossa República. Como diria o jornalista Hélio Fernandes: que república! Veja o leitor que a questão do regime jurídico das praias não é meramente opinativa. Ela é legal. No Brasil as praias são públicas, repita-se. Logo, em tese, estaria sendo cometido um atentado ao pudor por parte de tão ilustres autoridades. É possível que até não seja o melhor sistema, mas é o vigente. Lembre-se, a propósito, que o atual tratamento constitucional do tema é fruto de uma emenda constitucional recente (Emenda Constitucional 46 de 2005), o que denota a existência de um consenso mínimo sobre a questão em nossa sociedade.
Se é apenas um “jogo para torcida”, o problema é outro. De certa forma, o Departamento de Patrimônio da União, encarregado pela gestão dos bens públicos no Brasil, é um pouco responsável pela situação, visto que se limita a conceder os aforamentos e cobrar o laudêmio (taxa de ocupação) sem exercer qualquer fiscalização sobre os bens aforados. O arcaico e quase medieval sistema de aforamento de bens na orla é única e exclusivamente uma forma de arrecadação que, diga-se a bem da verdade, vem crescendo violentamente, com valores cada vez maiores. O sistema é uma repartição do regime de propriedade em domínio útil e domínio pleno. O titular do domínio pleno, União, limita-se a cobrar uma taxa para que o titular do domínio útil (particular) possa exercer os direitos como se proprietário alodial fosse. É uma reminiscência da época em que a nobreza falida tinha necessidade de recursos financeiros para sustentar suas extravagâncias e não tinha grana. As classes emergentes não tinham terra, porém tinham grana. Assim criou-se um sistema rentista que transferia renda das dinâmicas para a nobreza. Tal mecanismo se perpetua neste país por anos e anos. É algo como acontece em Petrópolis, onde trabalhamos, aplicamos na aquisição de imóveis e sustentamos Suas Altezas Reais. É o que faz com que muitos membros da família Real, por exemplo, não tenham a menor idéia do que seja trabalhar.
A Baía da Ilha Grande era, originariamente, uma região de pescadores (caiçaras) que simplesmente tinham posses sobre as áreas públicas, visto que o bem público é imprescritível e, portanto, não é sujeito aos efeitos do usucapião; tais posses foram sendo negociadas das formas as mais diversas, seja por mecanismos consensuais, seja pela pressão econômica, física ou política. Tudo isto sob as vistas dos poderes públicos, em quaisquer umas de suas esferas. Assim, em espaço de pouco mais de 30 (trinta) anos, o perfil sócio econômico dos posseiros foi sendo modificado, os antigos pescadores foram sendo substituídos por abastados cidadãos que, ante o beneplácito do DPU (antigo Serviço de Patrimônio da União), se beneficiaram de forma bastante significativa da transferência de um bem público, ainda que não tenha havido a transferência de propriedade. É importante notar que os reais sobre bens alheios podem ser transferidos para terceiros.
O velho Decreto-Lei nº 9.760, de 15 de setembro de 1946 é, seguramente, uma das leis mais descumpridas deste país, embora isto não cause nenhum escândalo neste país no qual não existem escândalos. Lembremos algumas normas do velho decreto-lei:
Art. 1º – Incluem-se entre os bens imóveis da União: a) os terrenos de marinha e seus acrescidos;………..c) os terrenos marginais de rios e as ilhas nestes situadas, na faixa da fronteira do território nacional e nas zonas onde se faça sentir a influência das marés; d) as ilhas situadas nos mares territoriais ou não, se por qualquer título legítimo não pertencerem aos Estados, Municípios ou particulares;………….f) as terras devolutas situadas nos Territórios Federais;…………h) os terrenos dos extintos aldeamentos de índios e das colônias militares que não tenham passado, legalmente, para o domínio dos Estados, Municípios ou particulares;………….j) os que foram do domínio da Coroa;
Outro ponto importante na questão é o referente aos terrenos de marinha. Por favor, não é terreno da Marinha, como alguns equivocadamente pensam. Determina o Decreto-lei:
Art. 2º – São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio de 1831:
a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façam sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pela menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.
Art. 3º – São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.
O aforamento para ser concedido deve preencher requisitos legais, conforme disposto no mencionado Decreto-Lei, vejamos:
Art. 64 – Os bens imóveis da União não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos.
§ 2º – O aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública.
No caso das praias, não se pode aliená-las, salvo se reforma constitucional assim o autorizar. A idéia do aforamento, como se pode ver, tem por objetivo fixar o indivíduo ao solo – como no caso dos pescadores da Baía da Ilha Grande – e manter o regime jurídico dos bens públicos. Em princípio o aforamento que não cumpra o determinado em lei não possui validade jurídica.
Em 1977, o Decreto-lei nº 1561, de 13 de julho estabeleceu o seguinte:
Art. 4º Observadas as disposições do Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, poderá ser concedido o aforamento, mediante o pagamento do preço correspondente ao valor do domínio útil, aos ocupantes de terrenos da União que, à data deste Decreto-lei, tenham exercido posse contínua.
Tal norma foi revogada pela Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998 que é a que, atualmente, rege a matéria. A lei em questão tem por objetivo dispor sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nºs 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dar outras providencias. A lei ora mencionada buscou modernizar a questão e, inclusive, determinou um cadastramento de todos os ocupantes de terras públicas e estabeleceu algumas condições bastante importantes para que a ocupação pudesse permanecer, vejamos:
Art. 9° É vedada a inscrição de ocupações que:
I – ocorrerem após 15 de fevereiro de 1997;
II – estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade das áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental, das necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, das reservas indígenas, das ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, das vias federais de comunicação, das reservadas para construção de hidrelétricas, ou congêneres, ressalvados os casos especiais autorizados na forma da lei.
Art. 10. Constatada a existência de posses ou ocupações em desacordo com o disposto nesta Lei, a União deverá imitir-se sumariamente na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições eventualmente realizadas.
Parágrafo único. Até a efetiva desocupação, será devida à União indenização pela posse ou ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano em que a União tenha ficado privada da posse ou ocupação do imóvel, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.
Solução legal
Ora, grande parte dos problemas causados em praias, portanto, tem solução legal. E o que é pior, a própria administração poderia agir de oficio para resolvê-los. Entretanto, as administrações preferem se omitir quanto à utilização do poder de polícia e transferir a bola para o Poder Judiciário ou para o Ministério Público que, passivamente, aceitam o encargo. Uma das importantes prerrogativas do Executivo é poder agir de ofício, logo, sem recurso ao Judiciário. No que se refere ao exercício do poder de polícia a norma não poderia ser mais clara:
Art. 11. Caberá à SPU a incumbência de fiscalizar e zelar para que sejam mantidas a destinação e o interesse público, o uso e a integridade física dos imóveis pertencentes ao patrimônio da União, podendo, para tanto, por intermédio de seus técnicos credenciados, embargar serviços e obras, aplicar multas e demais sanções previstas em lei e, ainda, requisitar força policial federal e solicitar o necessário auxílio de força pública estadual.
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, quando necessário, a SPU poderá, na forma do regulamento, solicitar a cooperação de força militar federal.
§ 2º A incumbência de que trata o presente artigo não implicará prejuízo para:
I – as obrigações e responsabilidades previstas nos arts. 70 e 79, § 2º, do Decreto-Lei nº 9.760,de 1946;
II – as atribuições dos demais órgãos federais, com área de atuação direta ou indiretamente relacionada, nos termos da legislação vigente, com o patrimônio da União.
§ 3º As obrigações e prerrogativas previstas neste artigo poderão ser repassadas, no que couber, às entidades conveniadas ou contratadas na forma dos arts. 1º e 4º.
§ 4º Constitui obrigação do Poder Público federal, estadual e municipal, observada a legislação específica vigente, zelar pela manutenção das áreas de preservação ambiental, das necessárias à proteção dos ecossistemas naturais e de uso comum do povo, independentemente da celebração de convênio para esse fim.
Ultimamente temos visto alguns movimentos “em defesa da Ilha Grande” que são capitaneados por “proprietários” de casas, pousadas, hotéis e diversos outros empreendimentos na região. Não se pode deixar de constatar que se trata, evidentemente, de uma “grita” daqueles que não querem que “outros” venham atrapalhar o paraíso particular que lá construíram. A primeira questão a ser colocada é seguinte: estarão eles legitimamente na Ilha Grande? Somente a análise dos registros fundiários poderá dizer. Se aforamentos existirem: estarão dentro dos permissivos legais? Certamente, um recibo de compra e venda de posse, por valores ridículos existirão. É este o objetivo da legislação?
Na verdade, qualquer empreendimento sério que se pretenda realizar na Ilha Grande se depara com o grupo de “proprietários” que buscando preservar a ocupação privada que fazem de bens públicos, impedem que a Ilha Grande possa desempenhar um papel relevante na industria turística do Estado do Rio de Janeiro. Isto para não falarmos no fato de que uma industria turística bem estruturada significa observância da legislação trabalhista, circulação de informação e toda uma série de outras questões que impedirão a existência de prestação de trabalho sem qualquer garantia para os empregados, etc.
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