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Onde tudo falta e a pobreza grassa, quem é o lobo mau?

A Etiópia ainda preserva paisagens deslumbrantes em suas terras altas, cada vez mais ocupadas pela população que se multiplica exponencialmente. Há caminhadas de tirar o fôlego.

11 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás
Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Desde que o cantor irlandês Bob Geldof comandou o concerto “Live Aid”, em 1984, a Etiópia passou a ser vista como um lugar árido, escaldante e povoado por massas de desnutridos. A descrição é acurada, mas não se refere ao país inteiro. Os 11 milhões de famélicos para quem o “Live Aid” levantou fundos constituem uma pequena parcela da população do país. Atualmente, assim como naquela época, menos de 20% dos 71 milhões de etíopes vivem em áreas desérticas e improdutivas. A grande maioria habita a parte alta do país, onde existe uma cultura tradicional e elaborada, que nos legou castelos medievais e igrejas milenares (a Etiópia, única parte da África a jamais se submeter a nenhuma potência colonizadora, foi o segundo país do mundo a adotar o Cristianismo como religião). Nas “highlands”, não há fome. Há muita pobreza e muita gente, é verdade, mas em meio a muito verde e muita agricultura. Há também algumas das mais bonitas trilhas de todo o mundo.

Oliveira Lima, o grande historiador do período joanino no Brasil, nos conta que em 1808 uma viagem do Rio a São Paulo “oferecia um espetáculo…tinha-se nas constantes subidas e descidas a repetição dos panoramas grandiosos em que rios de águas volumosas correm entre vales verdejantes ou massas de granitos e de quartzo, num anfiteatro de montanhas azuladas”. Poderia muito bem estar se referindo à Etiópia do século XXI. No trajeto aéreo de duas horas entre a capital atual, Adis Ababa, e Gonder, antiga capital cravejada por castelos milenares, o planalto se descortina em todo seu esplendor. O Fokker 50 voa baixo. Da janela abre-se uma paisagem ondulada e viçosa, com formosas cadeias de montanhas, vales profundos e imponentes cachoeiras. Com um mapa na mão, o aeronauta identifica o leito do Nilo Azul e as águas expansivas do Lago Tana. Não há, todavia, muitos outros pontos de referência. Durante toda a viagem o avião sobrevôa apenas uma rodovia. Quase não há cidades no caminho. Mas há gente, muita gente.

Cerca de 56 milhões de etíopes vivem no planalto, dos quais 90% moram em áreas rurais (no Brasil, ao contrário, cerca de 85% da população é urbana). A terra lá embaixo parece uma colcha de retalhos, esquartejada em infindáveis pequenos terrenos retangulares, todos cultivados. Com excessão dos íngremes penhascos, que aqui e ali marcam alguma falha geológica, não há espaço vazio. São pequenas plantações de café, feijão, cevada, trigo e tef, vegetal do qual é feita a njera, o pão etíope. Também é possível identificar sucessivas manadas de bois e cabras, o que não é de supreender já que a Etiópia tem o maior rebanho doméstico da África. O mosaico de pastos e mini-fundios cultivados é interligado por uma malha de trilhas cujo tráfico intenso de gente e burricos carregados com a produção agrícola chega mesmo a causar estapafúrdios engarrafamentos nesse sertão sem estradas.

O planalto etíope, apesar de densamente povoado, abriga uma das áreas ecologicamente mais sensíveis do planeta. As “highlands” são parte do “hotspot” Afromontano Oriental, que também inclui as montanhas do Quênia, Tanzânia, Ruanda e Uganda, entre outros países, e cujo destaque é o famoso Monte Kilimajaro com imponentes 5896 metros de altitude.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Para ser classificado como “hotspot” um ecossistema precisa abrigar no mínimo 1.500 espécies florísticas endêmicas, o que equivale a 0,5 % do total identificado no mundo. Nesse sentido, o “ponto quente” é muito rico. Ali são endêmicas 2.356 espécies vegetais, 617 peixes de água doce, 104 mamíferos, 106 pássaros e 93 anfíbios. Destas, estão ameaçadas de extinção, 48 espécies de mamíferos, 35 de pássaros e 30 de anfíbios. No contexto do “hotspot” Afromontano Oriental, o planalto etíope tem relevo especial, pois 30 dos 104 mamíferos endêmicos do “ponto quente” só existem ali. Três deles, a cabra selvagem Walia Ibex, o Babuíno Gelada e o Lobo da Etiópia estão seriamente ameaçados de extinção. Deste último, que é considerado o canídeo mais ameaçado do planeta, só sobraram 450 indivíduos.

Próximo a Gonder, no Parque Nacional das Montanhas de Siemens, ainda sobrevivem indivíduos das três espécies. Por isso, bem como pela extrema beleza cênica, em 1978 seus 232 km2 foram declarados Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Com o intuito de ver como esse precioso bem planetário está sendo protegido, a fotógrafa Ana Leonor e eu nos dirigimos para lá em meados de outubro último.

No caminho de Gonder para o Parque é necessário parar brevemente em Debark. Antigo reduto dos judeus Falasha até a emigração em massa para Israel, hoje é escala obrigatória para visitar as Montanhas de Siemens. É ali onde são pagas as taxas obrigatórias de entrada no Parque e são contratados o guia e as mulas em cujo lombo viajará a bagagem. Também é em Debark que embarcam o guarda-parque e seu fuzil, companhias obrigatórias a todos os montanhistas que se aventuram pelas Siemens.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

A partir de Debark, a viagem extrapola o espaço e entra no tempo. Voltamos à Idade Média. As Montanhas de Siemens são profundamente marcadas pelas casas de taipa com chão de barro e fogão à lenha; pelos arados de madeira puxados por juntas de bois; pelas crianças de pés no chão; pelas doenças erradicadas do mundo moderno que por ali ainda cegam, aleijam e matam, impondo aos etíopes uma expectativa de vida de ínfimos 42 anos; e pela religiosidade crédula e ferrenha que a Deus entrega a sorte e o destino. Fora ou dentro do Parque a situação é a mesma. 15 mil pessoas habitam a suposta área protegida e, em um perverso processo maltusiano, continuam a se multiplicar. A população das “highlands” decuplicou nos últimos 60 anos e, mantidas as taxas de crescimento vigentes, o número total de etíopes deve chegar aos 120 milhões em 2050.

Nesse contexto, o Parque só se justifica se enquadrado nas teorias socio-ambientalistas que pregam o direito às populações tradicionais de viverem dentro de unidades de conservação, explorando-as de forma sustentável. No caso das Montanhas de Siemens é fácil ver as populações tradicionais e mais fácil ainda entender a dificuldade e relutância do Governo etíope em removê-las dali, pois trata-se de empreitada politicamente complicada e financeiramente inviável para um dos países mais pobres do mundo.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Em nosso périplo, palmilhamos 46 quilômetros de trilhas. A caminhada em si é maravilhosa. A Etiópia tem 25 picos acima dos 4 mil metros de altitude, grande parte deles nas Montanhas Siemens, inclusive o quarto cume mais elevado da África, o Ras Dejen que está 4.533 metros acima do nível do mar. Todo o trajeto é percorrido acima dos 3.500 metros. A estação das chuvas, que vai de junho a setembro, recém terminou. O terreno encontra-se irrigado e viçoso. O chão brota em uma profusão verde, salpicada por inumeráveis espécies de flores que explodem em um arco-íris com tantas e tão variadas cores cuja vivacidade é impossível descrever com palavras. Os rios, secos em outras estações, agoram vertem borbotões de águas cristalinas, derrubando-se em cachoeiras mil pelos altaneiros penhascos das Siemens, algumas despencando-se em quinhentos metros de queda livre. Nesses mesmos penhascos, que avançam por mais de uma centena de quilômetros em marcado desnível com a terra lá de baixo, as vistas desimpedidas até o horizonte são de cair o queixo e tirar o fôlego.

Ao longo de todo o caminho, passamos por alguns bandos de babuínos gelada (theropitecus gelada), que se agregam em grupos de centenas de indivíduos e caracterizam-se pela pelagem hirsuta e o peito vermelho-rosado. As Siemens abrigam cerca de três mil geladas.

Logo no primeiro dia de cabritada, temos uma bela demonstração do conflito entre os usuários permanentes do Parque – nada sustentável por sinal. A estação que irriga o solo, enche os córregos e rios e propicia o germinar de tantas flores também é a melhor época do ano para iniciar o plantio comercial e de subsistência. Por todos os lados, juntas de boi aram o solo. Preparam os terrenos mais férteis, subtraindo ao Parque vegetação nativa e alimentação natural dos gelada, que de longe assestam o olho gordo na direção dos cultivos. São vigiados pela criançada, cuja escola é a da vida e a tarefa é manter os babuínos à distância à força de pedradas e golpes de vara.

Quem não apura a mira na macacada exerce o ofício de pastor. Passa o dia subindo e descendo as encostas inclinadas, tocando cabras e bois. No processo, zela pelos pastos e garante o sucesso dos rebanhos contra as Walia Ibex, em uma competição cada vez mais desigual. A Walia Ibex, uma cabra selvagem de grande porte, é a espécie de cabra montanhesa que vive mais ao sul do planeta. Endêmica das Siemens, está ameaçada de extinção. Segundo um senso de 2002, só sobraram cerca de 520 delas e não há muito como aumentar essa população, visto que seu habitat está reduzido às encostas mais íngremes, inacessíveis a outros quadrúpedes, mas onde suas habilidades escaladoras possibilitam a busca de alimento.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

O segundo dia de caminhada, nos leva por 13 quilômetros de sobe e desce. Logo no início, o guia nos aponta com orgulho uma gigantesca e florida moita de erica (erica arborea). Costumava ser abundante no Parque, mas seu uso excessivo como combustível para cozinhar e prover calor tornou-a uma visão rara. Não que isso chegue a atrapalhar o componente estético do passeio. À medida que subimos e a fertilidade do solo vai ficando mais pobre, somos brindados por florestas de lobélias gigantes e revoadas de pássaros endêmicos, dentre os quais algumas aves de rapina se sobrassaem como o lammergeyer, a águia rapax e o corvo de bico grosso.

Ao acamparmos, fica patente o esforço da administração em manejar um pouco o Parque. Ordenou-se a área para armar as barracas, construiu-se banheiros com fossas sépticas, edificou-se uma série de mirantes, estimulando a contemplação dos magníficos belvederes ao mesmo tempo em que as beiras de penhascos com vegetação mais frágil foram protegidas. Faltou cuidar do povo. Quando anoitece, o acampamento é inundado por aldeões vendendo lenha para fogueira, gorros de lã e artesanato. Outros simplesmente exibem seus membros mutilados pela lepra ou seus olhos apagados por glaucoma e catarata, de forma a enternecer o montanhista e induzí-lo a dar uns poucos trocados de esmola.

No terceiro dia subimos mais e mais e mais e mais. São 20 quilômetros de pura ralação. No caminho, passamos pela vista panorâmica de quase 360º do Imet Gogo e alcançamos os 4.070 metros do Inatye. Em cada ascenção o ar rarefeito nos fatiga e desanima (e como há subidas!), na descida correspondente os joelhos se liquefazem (e como há descidas!). No topo do Inatye, fomos surpreendidos por uma enregelante nevasca, que nos obrigou a apertar o passo e a desistir da parada para o almoço. Ainda assim as vistas deslumbrantes, agora já corriqueiras, fazem o passeio valer a pena.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

No quarto e último dia subimos o Ras Bwahit. Fomos bem alto, embora não tenhamos alcançado o topo dos seus 4.430 metros. Não estávamos atrás da conquista, buscávamos visualizar um Lobo da Etiópia (Canis Simensis Simensis). Não fomos bem sucedidos. Hoje as Siemens abrigam apenas 42 deles, que andam ameaçadíssimos pela hibridização com os cachorros domésticos pertencentes às populações tradicionais, pelas cinomoses transmitidas por esses mesmos animais e pelo envenenamento e caça; represálias que sofrem cada vez que abatem um boi ou uma cabra de algum morador do Parque. O que perdemos em lobos, ganhamos em imagens. Próximo ao cume, olhando para baixo, podemos ver ao longe o início das “lowlands” verdejantes, sulcadas por rios profundos e cortadas por um zigue-zague interminável de trilhas. Menos protegidas ainda que o Parque, estão quase integralmente retalhadas por pequeninas fazendas. O guia informa que é possível descer e caminhar de volta a Debark por ali, em percurso de dez dias. Com ou sem estatuto de unidade de conservação, há de ser um dos “trekkings” mais bonitos do planeta. Infelizmente faltou tempo, mas sobraram olhos compridos.

Ao encerrar a trilha voltamos a Debark de carro por uma estrada recém aberta no interior do Parque Nacional. Em um país sem rodovias, a estrada das Siemens é uma dádiva para seus habitantes. Irriga o comércio, aproxima a população de escolas e hospitais, alivia as agruras das longas jornadas para ver e rever parentes e amigos. Por outro lado, ao fixar o morador na terra, facilita sua vida e dificulta qualquer projeto de remoção que vise dar maior proteção ao ecossistema das Siemens. Tendo em vista as condições de vida da região, onde há comida mas falta todo o resto, é difícil tomar uma posição estritamente conservacionista e propugnar pela expulsão dos moradores do Parque, que provavelmente não terão para onde ir. Por outro lado, o endemismo das Siemens é uma jóia do mundo natural como poucas no mundo. Manter as coisas como estão é favorecer a fome e a vontade de comer de uma população pauperizada. No longo prazo, contudo, essa opção de manejo, ainda que tomada por falta de outras alternativas pragmáticas, vai acabar matando a galinha dos ovos de ouro de um ecossistema único e incomparavelmente belo.

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