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A Autofagia do Movimento Ambientalista

A grita sobre a passagem de corridas de aventura em parques é desproporcional ao tamanho do problema. Atletas, assim como montanhistas, podem se tornar aliados na preservação.

23 de novembro de 2007 · 16 anos atrás

Quando entrei para a universidade, no princípio da década de 1980, era um calouro cheio de ideais e, como não podia deixar de ser, tinha orientação política de esquerda. Acabara de ler O Capital de Karl Marx e acreditava piamente nos benefícios de uma revolução proletária. Com dois períodos de faculdade, contudo, comecei a me desiludir com meus parceiros ideológicos. Quanto mais alargava minha rede de contatos no meio estudantil mais descobria que “esquerda” era um conceito amplo com várias interpretações que, embora não fossem essencialmente divergentes, muitas vezes tinham suas diferenças exacerbadas até tornarem-se antagônicas. Nunca entendi direito (nem esquerdo para ser mais preciso) por que as ditas esquerdas não conseguiam construir uma agenda comum sobre os amplamente majoritários pontos ideológicos em que concordavam, preferindo criar rivalidades e inimizades em torno dos cerca de 5% a 10% dos temas nos quais estavam em desacordo.

Com a idade e a maturidade, sobretudo a segunda, aprendi que essa é uma atitude normal em todas as pessoas que acreditam com paixão em alguma causa. A luta pelo que se crê enseja um sentimento de posse pela causa e, com ele, a certeza de deter a verdade. Assim é que quem acredita piamente em uma causa acaba por abrir mão de analisá-la com os olhos do outro e corre o risco de perder capacidade de julgamento equilibrado. Quanto mais nos apaixonamos por um tema, mais o julgamos com o coração e menos com a razão. Se não tomarmos cuidado, acabamos por ver a todos que pensam diferentemente de nós como inimigos.

Creio que, guardadas as devidas proporções, isso é o que está acontecendo com o episódio que envolve a passagem de uma corrida de aventura pelo Parque Nacional de Serra dos Órgãos e pelo Parque Estadual de Três Picos. A meu ver criou-se uma grita desproporcional ao tamanho do problema.

Uma corrida de aventura causa impacto em um parque? Certamente que sim. Mas como disse um dos dirigentes envolvidos na celeuma, “não chega a ser muito maior do aquele provocado por um dia de visitação intensa”. Para mitigar ou mesmo eliminar esse tipo de impacto existe uma ferramenta, melhor do que a chamada compensação ambiental. Trata-se do manejo, aquela palavrinha que adoramos colocar em belos “Planos” encadernados, mas que raramente vemos sair do papel para o terreno dos Parques brasileiros.

Impactos sobre trilhas- mesmo aqueles causados por “mountain bikes” ou por competições do tipo “corridas de aventuras” podem ser manejados com canais de escoamento de água, desenho adeqüado das trilhas e escolha correta do percurso da competição. O que faz o impacto é menos a quantidade de pessoas que usa uma trilha do que seu traçado e drenagem. Assim, uma trilha usada por uma “mountain bike” pode ser menos impactada do que outra usada por um escalador. Por exemplo, uma trilha plana, bem drenada e com solo compactado pode ser pedalada por cem bicicletas com menos impacto do que algumas trilhas usadas por montanhistas e escaladores, como a que leva ao paredão do Corcovado a partir do Jardim Botânico. No segundo caso, trata-se de uma picada perpendicular ao solo e extremanente íngreme, que com o uso e o passar do tempo virou escoador natural de águas pluviais e degenerou em uma voçoroca.

Processos semelhantes de erosão podem ser vistos no Morro da Urca e na Pedra da Gávea. Também era esse o caso da trilha que leva ao Pico da Tijuca antes do trabalho de recuperação, replantio, sinalização e fechamento dos atalhos que ali foi feito em 1999. Naquela época era comum ver grupos de montanhistas caminhando para o Pico utilizando atalhos e, com isso, provocando enorme impacto. Falou-se mesmo em fechar a trilha, opção que teria sido um desserviço aos cidadãos e usuários do parque. Não se interditou a caminhada. Optou-se por manejar a trilha. O resultado foi maior utilização com menor impacto.

Competições do calibre de uma corrida de aventura são comuns em parques sérios com MANEJO sério. Os exemplos são incontáveis, vão de corridas de aventura no Parque Nacional do Monte Kinabalu, que é um dos patrimônios mundiais da Malásia, ao Grande Raid da ilha francesa de Reunião, que corta o Parque Nacional des Hauts Reunnionais, passando por competições no Parque Nacional de Acadia, nos Estados Unidos, e pela famosa corrida OXFAM que, em 24 hs de caminhada, atravessa 100 km de dois Parques Nacionais da Nova Gales do Sul, na Austrália.

Mas o problema aqui não é só de manejo. É maior que isso. É preciso levar em conta que, no mundo moderno, a opinião vigente, os costumes e a moda, bem como as grandes tendências políticas são irradiadas a partir dos grandes centros urbanos. Assim, é preciso educar os muitos milhões de habitantes das cidades a conviver harmoniosamente com um parque, e não brigar com ele, aprendendo a conservá-lo e orgulhando-se dele. Essa mesmo população vai se tornar instrumento de pressão para a preservação das demais áreas de conservação no país. É como se dizer que a luta pela preservação da Amazônia será ganha não na mata equatorial, mas no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte, de onde sai a maioria dos corredores de aventura, bem como dos montanhistas. Em outras palavras: se não conseguimos conservar sequer a Mata Atlântica localizada nas franjas das grandes cidades não seremos capazes de preservar a Amazônia.

Em um regime democrático, nenhum tema vira prioridade nacional sem o apoio da opinião pública. Nesse sentido, a missão prioritária das áreas de conservação próximas a áreas urbanas deve necessariamente ser a educação ambiental e a formação de um grupo de pressão em torno da agenda verde. Caso contrário, continuaremos sempre a ser uns poucos indignados a gritar no vazio.

Com manejo adequado e fiscalização aos competidores, em geral deve haver solução de traçado passível de ser utilizado por corredores de aventura em um Parque Nacional, assim como também deve ser permitido a montanhistas que caminhem sem a obrigatoriedade de serem acompanhados por um guia ou condutor de visitantes, como lhes é imposto no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

A maioria dos montanhistas é composta de pessoas ambientalmente responsáveis. Nem sempre, contudo, foi assim. Lembro-me do tempo em que madeira era cortada para fazer fogueiras e da época em que os dejetos sequer eram enterrados. Também recordo-me da montanha de lixo que diversas expedições de montanhistas deixaram nos pés do Himalaia. Muito uso, muita conversa, muita educação ambiental mudaram comportamentos. Hoje a comunidade montanhista ainda é um fator de impacto, mas a sua contribuição em favor da causa preservacionista em muito supera a degradação que suas caminhadas e escaladas provocam.

Assim, mesmo, sabendo que um ex-presidente da Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro foi flagrado escalando em área proibida e que um dinossauro do movimento montanhista levava sua filha a dormir no morro do Archer, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, apesar de ter ciência da interdição de pernoitar no Parque, não diria que o montanhismo deveria ser proibido, ou sequer monitorado por condutores de visitantes. Montanhistas, com pouquíssimas excessões, são aliados da preservação.

Analogamente, corredores de aventura, se talvez ainda não sejam parceiros de fé das áreas preservadas, têm grande potencial para sê-lo. Além de fiscalizar e manejar, cabe aos administradores dos Parques incluir palestras de educação ambiental nos eventos, exigir premiação para as equipes menos impactantes e multas e perda de pontos para aquelas que pegarem atalhos ou tiverem atitudes danosas à natureza. Com o tempo o “impacto” que hoje se teme, tal qual no caso dos montanhistas, será negligível quando comparado ao benefício causado pelo interesse dos corredores na preservação ambiental.

Enquanto isso o manejo para a rusga entre montanhistas e corredores pode ser facilmente aprendido com a leitura do Manual “Conflicts on Multiple-Use Trails” compilado pela National Trails Advisory Committe dos Estados Unidos. Uma leitura rápida ensinará que “nem sempre a objeção de um determinado grupo ao uso de uma trilha por outro grupo de usuários justifica-se pelo impacto real causado pelos últimos, mas pela importância que cada grupo atribui à “conquista” do meio ambiente. Nesse caso o conflito está associado à importância atribuída à autonomia, controle, e a tomada de riscos. Também é muito comum que haja ressentimento dos usuários tradicionais contra novos usos das trilhas. Bom manejo, diálogo entre as partes e educação ambiental de todas os usuários envolvidos pode minimizar ou eliminar completamente o problema”. Isso é Ecologia, O resto é histericologia.

É fundamental resolver a rusga entre montanhistas e corredores de aventura de modo a acomodar os interesses dos dois grupos de usuários. Afinal todos têm direito a usar os parques, e as áreas protegidas têm interesse em que todos seus freqüentadores tornem-se defensores da preservação. Literatura sobre o assunto e soluções de manejo para o problema existem às pencas. Ao invés de dizer não, é preciso que os administradores de Parques arregacem as mangas e evitem que o conjunto de ambientalistas que também são amantes dos esportes de natureza virem novos personagens daquela triste piada sobre as esquerdas segundo a qual “três comunistas no Brasil formam dois partidos e uma dissidência”. Afinal, também na causa em prol da natureza valem as máximas a “união faz a força” e “ambientalistas unidos jamais serão vencidos”.

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