Instigado pelo leitor Ivan Salzo e por duas histórias vivenciadas por pessoas próximas, volto ao tema.
Bósnia
A primeira história é curtinha, mas vale à pena. Foi contada por meu irmão. Em 1996, ele passou um ano na Bósnia trabalhando com a ONG Médicos Sem Fronteira, logo após o término da guerra civil que devastou o país. Uma das cidades que conheceu foi Zenica, localizada em uma importante região industrial da antiga Iugoslávia. Lá, os locais gostavam de repetir que a guerra teve um único benefício, limpar os invernos. Quando as velhas e poluentes siderúrgicas, fábricas de cimento e termoelétricas funcionavam, a neve era marrom. A paralisação causada pelo conflito permitiu que voltasse a ser branca, resultando num trágico e imprevisto programa de melhoria da qualidade do ar.
Cuba
A outra história é recente. Tenho um amigo que há algum tempo passa parte do ano velejando com a mulher e o filho no Caribe. Em abril último, chegou a Cuba. Ele não é exatamente um liberal. Ao contrário, sua formação é fortemente calcada em idéias socialistas. Meses antes, convidei-me a fazer parte da tripulação na passagem pela ilha de Fidel. Provoquei-o, dizendo que, quando aportássemos, gostaria de fazer uma reportagem sobre dissidentes. Ele não gostou. Disse em tom de brincadeira, “se for para falar mal, não no meu barco”. Por várias razões, deixei de ir. Bem, quem voltou com péssima impressão foi ele.
Seu barco ficou ancorado na Marina de Punta Gorda, em Santiago de Cuba, segunda cidade do país. De lá, ele alugou um carro e rodou a ilha por duas semanas. Mal sabia que, enquanto isso, diariamente, as emissões ácidas de uma fábrica de cimento vizinha corroíam as catracas e outros metais do barco, além de produzir bolotas amarelas no convés, conseqüência da reação química com a fibra de vidro. Ambos os problemas causaram estragos e foram duros de conter e limpar.
O pesadelo não acabou aí. Piorou. Num dos dias em que dormiu no barco, ele e a família acordaram cobertos de resíduo de óleo. A causa foi a limpeza de uma termoelétrica movida a petróleo, também nas imediações (veja o mapa, onde a marina e as duas indústrias estão marcadas). Ocorre que normalmente o vento sopra do mar no sentido da cidade de Santiago. Quando alterna a direção, ou seja, vira para o mar, os funcionários da termoelétrica aproveitam e fazem essa manutenção. Se chove, como foi o caso, a sujeira se precipita.
Nesse dia, a marina estava cheia de barcos estrangeiros, que aportaram ao fim de uma regata Martinica-Cuba. Assim, duas dúzias de veleiros foram tingidos de preto. Com muito esforço, os velejadores limparam a fibra, mas as lonas de convés se perderam. Um senhor prejuízo. Oito funcionários do órgão ambiental cubano deram expediente. Tiraram fotos e garantiram, junto com o administrador da marina, que isso jamais havia acontecido antes. Ficaram por aí.
À boca pequena, meu amigo soube que o fenômeno é regular. Em ambos os casos, os problemas foram causados por indústrias mal mantidas, paradas no tempo desde a revolução, que está às vésperas de completar 60 anos. Os donos dos barcos ainda tentaram contratar cubanos para ajudar na limpeza, mas isso é proibido. Além dos funcionários, nenhum local pode sequer entrar na marina. Medo de fugas.
Não existem estatísticas confiáveis sobre Cuba. As do governo são chapa-branca. E observadores de fora têm sua ação restrita e/ou fazem parte de grupos de cubanos exilados interessados na troca do regime. Levando em conta essas considerações, recomendo a leitura do artigo Environmental concerns for a Cuba in transition, de Eudel Eduardo Cepero, cubano, professor de geografia e exilado desde 1999. O trabalho é parte do Cuba Transition Project realizado pelo Institute for Cuban and Cuban-American Studies da Universidade de Miami.
Não imaginava que Cuba tivesse problemas ambientais tão sérios. Existem vários paraísos intocados espalhados pelo país. Existem poucos carros e a economia é concentrada na agricultura. No entanto, Cepero descreve um cenário de degradação. O sistema de esgoto de Havana foi construído há cem anos com capacidade para 400 mil pessoas. Hoje, a capital tem dois milhões. Ela e a maioria das cidades da ilha despeja grande quantidade de esgoto in natura no mar e nos rios. As baías de Havana e Santiago de Cuba estão entre as mais poluídas do mundo. O lixo residencial é misturado com o hospitalar e, como no Brasil, acaba em lixões. No campo, a situação não é melhor. Boa parte da terra agricultável tem problemas de erosão ou excesso de salinidade decorrentes de mau uso. A erosão já criou áreas desérticas, como nas províncias de Pinar del Río e Guantánamo.
Capitalismo x Socialismo
Por que cidades, terras agrícolas e florestas estão em situação ambiental melhor nos países ditos capitalistas do que nos socialistas?
Primeiro, troquemos as palavras para diminuir a carga emocional e ideológica do assunto. Vou chamar capitalismo de economia de mercado, e socialismo de planejamento central. No primeiro sistema, os meios de produção são privados e, no segundo, pertencem ao Estado.
Qualquer economia tem parcelas dos dois elementos. Nenhum país chegou totalmente a um desses extremos. No ícone do sistema, os EUA, o governo gasta 30% do PIB. No caso dos exemplos da União Soviética, Cuba e China (até os anos 80), o Estado, de fato, tentou ser dono de tudo. Mas não foi capaz de impedir o surgimento de mercados negros e, muitas vezes, tolerou incentivos de mercado para aumentar a produção.
O ponto é: as economias com ênfase de mercado tiveram e têm uma performance ambiental superior.
Toda a produção consome recursos e polui. Nas economias (com ênfase) de mercado as empresas competem em preço, quantidade produzida e inovação. Por isso, essas economias são mais eficientes e produzem uma quantidade maior e mais variada de bens e serviços. Ponto para o planejamento central que produz menos.
Terminam por aí as vantagens teóricas das economias planificadas.
Guardadas duas condições importantes, a ênfase no mercado tem muitos ganhos. Essas cláusulas são direitos de propriedade bem definidos e um sistema legal que os proteja. O conjunto de direitos de propriedade também devem poder evoluir para acomodar novas situações. Quem quiser ler um texto clássico sobre o assunto, não deve perder Towards a theory of property rights, de Harold Demsetz.
Repare, existe uma enorme variação entre países na qualidade dessas instituições. Nos países mais ricos, a qualidade é alta. Quanto mais pobres, pior a definição dos direitos de propriedade e seu resguardo. Na Suíça são muito bem estabelecidos e protegidos, no Brasil, mediocremente e, na China, acabaram de ser reconhecidos. Veja que essa ordem dos três países é a mesma da renda per capita e da qualidade ambiental de cada um. Pode trocar a Suíça por qualquer país da Europa Ocidental, EUA ou Japão que o resultado será parecido.
Quando direitos de propriedade são bem definidos, a poluição tem dono. Se uma fábrica emite fumaça, a responsabilidade é dela. Se um sujeito joga o lixo no terreno do vizinho, quem responde é ele. Nesse caso, os prejudicados podem recorrer ao sistema legal para conter o poluidor e pedir indenizações. É uma maneira radical de capilarizar as decisões, o que as torna rápidas e eficientes. Ponto para o mercado.
Nas economias planificadas, as decisões nunca são tomadas a nível local. Os problemas sobem lentamente na hierarquia de poder até acabar mofando na agenda de alguém no topo da pirâmide. Desastres ocorrem sem que os atingidos possam agir diretamente.
Ao mesmo tempo, os recursos comuns costumam caminhar rápido para a exaustão. Na última coluna, citei o caso do mar Negro. Durante o regime soviético, a areia e o cascalho de suas margens foram retiradas até provocar erosão maciça. Sendo públicos, esses insumos pareciam estar ali para serem utilizados de graça. Seu valor não era contabilizado. Ao fim, casas e hotéis desabaram. Se fossem bens privados, os donos teriam reclamado da degradação e do prejuízo que sofriam antes desse desfecho. Os materiais retirados teriam seu valor reconhecido, porque seria necessário pagar por eles, mesmo que fosse ao município.
O mercado é contra desperdício. Ao longo da vida de um produto, os fabricantes sempre buscam reduzir a quantidade de insumos necessária a sua produção. Por exemplo, uma lata de cerveja hoje tem uma fração da espessura do que tinha há 30 anos; uma impressora inkjet tem muito menos peças e é feita de materiais mais leves do que nos primórdios da tecnologia; os fios de telefone de cobre estão sendo substituídos por fibra ótica, feita de um insumo mais abundante. Ponto para o mercado.
A renda per capita nas economias de mercado é mais alta. Pessoas mais ricas podem se dar ao luxo de ter preocupações nobres, como a preservação ambiental. A evidência mostra que após certo nível de renda os níveis de poluição caem. Na literatura, isso é chamado de curva de Kuznets ambiental. Ponto para o mercado. Populações pobres consomem rapidamente seus recursos sem pensar no futuro.
Em geral, nas economias de mercado a democracia prevaleceu. Dessa forma, a sociedade civil é separada do governo. Esse é escolhido dentro de um sistema político competitivo. Tanto os governantes eleitos quanto a burocracia do Estado podem ser pressionados a tomar medidas de proteção. As economias planificadas só têm um partido político. Na prática, degringolam em ditaduras com líderes que se perpetuam no poder e que não estão sujeitos a pressão popular. Novo ponto a favor.
Entretanto, é verdade que com frequência as empresas têm um poder de lobby em benefício próprio superior ao peso dos eleitores. As agências reguladoras, freqüentemente, são “capturadas” pelos negócios que deveriam regrar. Ponto contra o mercado.
Mas e se essas empresas fossem públicas? Seriam ainda mais difíceis de regular. Mesmo com problemas, quem atende o público melhor, a atual Telemar ou a antiga Telerj? Quem poluía mais, a CSN quando era estatal ou depois de privatizada? Duplo ponto contra o planejamento.
Sem levar em consideração os pontos negativos para ambos os lados, nas minhas contas o mercado ganhou de 4×1. E a evidência empírica só reforça o mesmo resultado.
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