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Lula e as savanas africanas

O presidente contribui para a campanha de combate à fome no mundo. Mas sua proposta feita na reunião da FAO, em Roma, de exportar as tecnologias do cerrado para a África é atropelo do bom senso.

24 de novembro de 2009 · 15 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Em recente fala a onze chefes de Estado da África presentes na Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar na sede da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em Roma, o Presidente Lula ofereceu o apoio do Brasil para estabelecer uma “cooperação genuína, construída em conjunto, invertendo a lógica das soluções impostas e sempre acompanhadas de condicionalidades”. Mais especificamente, o Presidente se referia a trasladar a experiência brasileira no cerrado para as savanas africanas e tornar “os 25 países da região em importantes atores globais no mercado agrícola internacional”. Deixando de lado o fato que, por exemplo, a FAO já leva mais de meio século tentando brindar cooperação técnica à África sem soluções impostas nem condicionalidades, a idéia de trasladar o que foi feito no cerrado brasileiro para as savanas africanas requer um exame um pouco mais aprofundado. A questão pode ser vista desde vários ângulos que se resumem aqui em forma de perguntas: É verdade que as savanas africanas e o cerrado brasileiro são tão semelhantes a ponto de ser possível transferir experiências? É razoável sugerir que as savanas africanas possam transformar países africanos em exportadores de alimentos? É verdade que o modelo agropecuário predominante no cerrado é tão bom assim como para ser implementado na África? Onde se encaixa o tema dos biocombustíveis, também citado pelo Presidente Lula na sua proposta?

A origem longínqua das savanas e dos cerrados pode ter sido geologicamente a mesma. Mas a evolução de seus solos após sua separação tem sido bem diferente. Para não entrar neste contexto complexo e muito técnico, pode se assumir que, se existe água disponível e com as devidas correções, a maior parte dos tipos de solos das savanas pode ser condicionada para suportar uma agricultura mais intensiva. Porém devido ao fato de que os solos das savanas estão atualmente muito mais degradados ou depredados que os do cerrado quando há 30 anos se começou a explorá-los, deve se aceitar que os custos da sua reabilitação para a produção agrícola serão elevados.

Ocorre que grande parte das savanas está muito perto de enormes desertos que, ao menor descuido, nelas adentram. Amplas áreas das savanas sub-sahelianas foram exploradas para agricultura intensiva pelos colonizadores europeus, extirpando a vegetação arbórea ou arbustiva que as protegia do avanço do deserto. A pobreza subseqüente incrementou o nível de degradação ambiental que, como bem se sabe, avança rapidamente e, hoje, já é extremo. Por pior que tenha sido o maltrato do cerrado do Brasil, não há nem sequer nos locais mais pobres do nordeste deste país, situações ecológicas e sociais tão deterioradas como as que se observam nas savanas de hoje, fora da sua pequena fração contida nas unidades de conservação.

As médias de precipitação pluvial na maior parte das savanas são sensivelmente menores que as que predominam no cerrado e a água no subsolo é bem mais escassa. O uso do fogo tem sido mais intenso nas savanas que no cerrado e suas conseqüências são visíveis. O que tudo isso significa é que, embora aparentemente semelhantes, as condições das savanas e do cerrado não são realmente comparáveis significando que a transferência de tecnologias não poderá ser feita sem importantes adaptações técnicas que implicam muita pesquisa prévia. Assim, em todo caso, o custo de produzir intensiva e sustentavelmente nas savanas será muito mais elevado que no Brasil. E, isso, apesar de que os países africanos são muito, muito pobres e neles não existe nem pode se reproduzir o tipo de empreendedorismo nem de apoio estatal que desbravou o cerrado.

O segundo tema refere-se à realidade social africana que, obviamente, o entusiasta promotor da cooperação bilateral desconhece ao propor transformar esses países, em lapsos previsíveis, em “importantes atores globais do mercado agrícola internacional”. A estrutura de propriedade da terra na África é muito peculiar. A propriedade, em princípio, é tribal, mas grande parte da terra é mesmo propriedade de chefes que num estilo quase feudal permitem ou toleram seu uso desigual por membros da tribo, que alugam ou cedem voluntária ou involuntariamente a terceiros de outras tribos ou de outras localidades, freqüentemente migrantes. Os países novos, às vezes imitando os poderes coloniais ou como legado destes, também pretenderam estatizar grandes áreas de terra que, formalmente, pertencem ao governo, embora, na prática, nunca deixaram de ser tribais. Cada país e cada localidade têm características próprias nas que, numa medida ou outra, encaixam todas estas e outras situações de inacreditável complexidade. As decisões sobre o uso da terra dependem, pois, de chefes e de conselhos de anciãos, assim como de famílias e indivíduos e às vezes, do governo local, regional ou nacional, com direitos quase sempre superpostos e, que por isso, devem ser cuidadosamente concertadas ou negociadas.

De fato, contrariamente ao cerrado onde a terra é propriedade privada, com áreas em geral muito grandes ou grandes, mas sempre enormes se comparados à estrutura da propriedade na África, nas savanas se superpõem grandes e variados direitos sobre minifúndios extremos, agravados pela escassez de água. À pobreza se soma a falta de créditos, as deficiências de infra-estrutura e a ausência de capacidade governamental para dar um apoio técnico mínimo para esse tipo de iniciativas. Por isso, com o risco de contradizer o generoso e entusiasta presidente Lula, pelo momento apenas é razoável pretender que as savanas africanas produzam mais alimentos para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes e, isso, claro é possível e desejável. A mera menção de usar as savanas para produzir biocombustíveis, como ele propôs, é um atropelo ao bom senso.

Também cabe duvidar muito das virtudes de exportar o “modelo exitoso” do cerrado para as savanas africanas. As consequências da agricultura intensiva no cerrado têm sido amplamente documentadas e, na verdade, ela não oferece muito de que se orgulhar exceto, quiçá, a sua elevada produtividade que se faz à custa de subsídios mal dissimulados e da destruição irrestrita do ecossistema original, da contaminação de solo, água e ar por uso abusivo de agrotóxicos; de perdas colossais de solo por efeito de erosão hídrica e eólica, do desperdiço de recursos biológicos valiosos e, acima de tudo, com uma demonstrada ineficiência energética que contribui a agravar o efeito estufa. Tudo indica que, no caso das savanas, deva se pensar numa alternativa bem diferente, baseada na agricultura em pequena escala ou familiar, nas soluções locais e muito diversificadas e, em geral, começando pela restauração do ecossistema, replantando as árvores que foram arrancadas e promovendo a agro-silvicultura. Ou seja, em tudo o que nunca foi feito no cerrado brasileiro. Num artigo recente, este autor descreveu o que acontece no Quênia onde as lideranças dos Masai permitiram que extensas áreas de savana fossem substituídas por plantações semi-industriais de trigo e de outros cultivos mecanizados, empurrando a população local sobre áreas já totalmente desertificadas. O desastre anunciado já é visível com inúmeros mini-ciclones elevando e transportando milhões de toneladas de terra seca, exatamente como se observa nos cerrados de Goiás e do Mato Grosso na estação seca.

Neste caso, o discurso do Presidente Lula foi como sói acontecer com os seus discursos, bastante contraditório. Ele não percebeu, provavelmente, que ele mesmo deu razão aos comentários prévios quando, seguramente seus assessores da Embrapa, colocaram o seguinte texto, explicando o que essa empresa está fazendo na África: “São projetos voltados para a segurança alimentar e nutricional; desenvolvimento da agricultura sustentável e familiar; pesquisa e extensão rural; introdução de variedades agrícolas mais resistentes; diversificação da produção agrícola; implantação de unidades de demonstração e validação de tecnologias agrícolas (fazendas-modelo); merenda escolar; bem como o apoio à aqüicultura e à pesca”. Isso está muito bem! É isso mesmo o que a savana africana precisa agora! Muito razoavelmente a Embrapa, pelo visto, não fala de transformar a savana africana em uma potência exportadora de alimentos. Nem, tampouco, pretende eliminar o pouco que resta da natureza desse continente para produzir bicombustíveis, como o mandatário mencionou insistentemente no seu discurso. Ademais de insensato, propor usar a pouca terra fértil disponível para produzir bicombustíveis num continente assolado pela fome é literalmente indecente.

De uma parte o Presidente Lula ofereceu sua contribuição pessoal, mesmo após deixar seu cargo, à campanha de combate à fome no mundo. Mas, ao mesmo tempo, insistiu em que o grandioso projeto de cooperação brasileira para África depende da ajuda que espera receber dos países desenvolvidos. Ou seja, dos mesmos países ricos aos que ele acusa de impor soluções e de estabelecer condições…… Pode?

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