O complexo de vira-latas do brasileiro se estende também à fauna tupiniquim. A despeito do ufanismo que exalamos quando o assunto é nossa biodiversidade, não vamos nos enganar. O povão gosta mesmo é de leão, elefante, rinoceronte, hipopótamo e girafa.
Tamanduá-bandeira? Lobo-guará? Onça-pintada? Tatu-canastra? Anta? Veado-campeiro? Nada disso! Pergunte aos visitantes de qualquer zoológico, de qualquer cidade brasileira, quais animais eles buscam na visita e a resposta é a mesma: leão, elefante, rinoceronte, hipopótamo e girafa. E, é claro, dar pipoca aos macacos…
Palmas, capital do belíssimo estado do Tocantins, ainda não tem Zoológico. Ao contrário da amplitude eólica das paisagens naturais do Estado, Palmas parece tresfolegar no calor abrasivo do vale do Tocantins. O genial planejamento urbano de Palmas contribuiu muito para esta situação. A cidade foi inexplicavelmente alocada no fundo de uma depressão pouco arejada, onde foi formado um reservatório de hidrelétrica com 63 mil hectares de espelho de água e 2 metros de profundidade média, para margear a cidade. Esse reservatório não é um lago, é uma sopa, permanentemente aquecida pelo sol do Tocantins e agarrando esse calor.
Na face oposta da cidade, a Serra do Lajeado contribui para evitar a dissipação do calorzinho. Realmente um espetáculo. Mas além do calor de Palmas, outra coisa marcante naquelas paragens é o pendor do governo estadual em trair a riquíssima biodiversidade do Tocantins por quaisquer 20 moedas de prata.
Por causa disso, não me causa espanto que uma proposta tão desvairada quanto o chamado “Out of Africa Brasil” (OOAB) tenha sido levada a sério. Tão a sério que mereceu uma reportagem tragicômica no Estadão de 30 de Setembro. A única coisa séria é o tamanho do investimento: 350 milhões de reais.
“Nossa fauna é espetacular, rica e atraente (…) Apenas uma fatia anacrônica da sociedade brasileira é incapaz de perceber isso.”
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Trocando em miúdos, a proposta é trazer 400 animais, de diferentes espécies, entre presas e predadores, e simplesmente soltar a bicharada em uma área de 100 mil hectares. E é só isso. Segundo o ex-Secretário de Saúde do Estado e médico, Nicolau Esteves, o negócio é simples assim, pois os animais “são um pouco mais inteligentes que a gente. Eles não se auto exterminam igual à gente. Eles são muito educados, caçam só para se alimentar e não passa disso”. Com esse raciocínio brilhante, conclui que a fauna africana não irá impactar a fauna nativa.
Mas e daí se afetar a fauna nativa? Esse bando de bichos mirrados e sem graça? Bonito mesmo é o exótico, o estrangeiro, certo? Bons são os bichos africanos, que podem virar uma atração de verdade. Quem pagaria para ver um bicho esquálido como um lobo-guará, ou uma coisa tão esquisita como um tamanduá-bandeira? Esse tipo de argumentação apenas revela um profundo desconhecimento do valor da fauna sul americana, que é insubstituível; dos processos ecológicos e evolutivos que tornaram tanto a fauna do Cerrado quanto a fauna da África importantes e essenciais, cada uma em seus próprios ecossistemas.
O que precisamos é valorizar a nossa fauna, manejar as áreas naturais para que a fauna do Cerrado atinja os tamanhos populacionais que existiam antes de tanto fogo, tanta soja, tanta caça e tanta fragmentação.
Nossa fauna é espetacular, rica e atraente. Os elementos faunísticos do Cerrado são importantes, imponentes e muito populares em todo o mundo. Apenas uma fatia anacrônica da sociedade brasileira é incapaz de perceber isso. Vamos mostrar o nosso país para o mundo nos próximos anos. Queremos ser nós mesmos ou apenas mais um arremedo de nação, sem caráter, sem identidade, sem valores próprios e consistentes? Vamos criar parques para a nossa fauna. Devemos investir nos nossos valores naturais. Atrair turistas para ver o Brasil e os seus valores.
“Por outro lado, é reconfortante ver que a qualidade técnica e responsabilidade dos quadros do IBAMA. Para mim, essa qualidade é resultado da realização de concursos públicos e da menor ingerência negativa dos interesses políticos”
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Um dos principais argumentos do chamado “Out of Africa Brasil” é a grande similaridade entre o Cerrado e a Savana Africana. Afinal de contas, são apenas 60 milhões de anos de separação entre a América do Sul e a África. Caramba! Como ninguém percebeu isso antes? Consumir pequi é um hábito típico dos Masai e é comum encontrarmos antas e macacos-pregos embriagados pelo consumo de frutos fermentados da marula, muito comum em todo o Cerrado. É claro que leões irão viver em harmonia com lobos-guarás e os antílopes pastarão as gramíneas ricas em silicatos abrasivos do nosso Cerrado.
Esse empreendimento escabroso parece piada. No entanto, tem gente que trata o assunto como se fosse sério. É espantoso ler na matéria o comentário do Secretário Estadual do Meio Ambiente, afirmando não dispor de elementos para se posicionar a favor ou contra a proposta. Duas possibilidades, não mutuamente exclusivas, são prontamente sinalizadas. Ou o Secretário não consegue perceber o absurdo da proposta, ou o governo estadual está ofuscado pelo brilho de outro punhado de moedas de prata.
Por outro lado, é reconfortante ver que a qualidade técnica e responsabilidade dos quadros do IBAMA. Para mim, essa qualidade é resultado da realização de concursos públicos e da menor ingerência negativa dos interesses políticos, fatores que contribuem inegavelmente para a melhoria das instituições públicas.
O apoio do governo estadual à proposta é evidente na reportagem de Leilane Marinho publicada ontem em ((o))eco. Mas bastaria um leão fugitivo devorar um nelore da família Abreu para ocorrer uma reviravolta na posição do governo estadual.
Aparentemente essa proposta maluca serviu para atingir um dos objetivos do grupo que compõe o OOAB, que era chamar a atenção. Fica aí um conselho: se você não se preocupa em parecer ridículo e quer chamar a atenção a todo custo, em vez de pendurar uma melancia no pescoço, pendure um elefante.
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