Análises

Trilha Hoerikwaggo: véspera da aventura

Na expedição ((o))eco - Terra Limpa os primeiros momentos da trilha de sete dias no Parque Nacional da Montanha da Mesa,  na África do Sul.

Pedro da Cunha e Menezes ·
14 de abril de 2011 · 14 anos atrás

O Parque Nacional da Montanha da Mesa é uma unidade de conservação jovem. Nasceu em 1998, como um presente do novo Governo democrático à nação. Partes dele já eram protegidas desde muito antes, como a região do Cabo da Boa Esperança, cujos 7.750 hectares foram transformados em reserva natural em 1939. Mais ao norte, as montanhas da Mesa e de Sivermine ganharam estatutos de área protegida, respectivamente em 1963 e 1965. Na década de 1970 outras áreas foram virando unidades de conservação com diferentes níveis de proteção até que, ao fim e ao Cabo (com trocadilho), em 1990 havia 14 instituições diferentes administrando 28 pedaços de terra com algum valor para a conservação da biodiversidade na Península do Cabo. Esses órgãos incluíam o Serviço de Parques Nacionais, o Serviço de Parques Provinciais, o Jardim Botânico, dois municípios, o Exército e a Marinha, entre outros.

Em 1995, um ano após a eleição de Nelson Mandela, o Parlamento da República e a Assembléia Provincial do Cabo passaram leis aprovando a criação de um só Parque na península. Ainda foram necessários quatro anos de negociações para amalgamar os diferentes nacos de terra e integrar seus antigos funcionários, oriundos de culturas institucionais díspares, em só corpo técnico e guarda-parque, com um único paradigma de manejo.

Quando de sua criação, o Parque ainda era bastante fragmentado, uma vez que havia lotes de terras privadas entre algumas de suas porções. Inicialmente, o próprio nome servia de estampa à dificuldade do processo negociador que deu origem à sua criação Ao invés de ser batizado como Parque Nacional da Montanha da Mesa, o ícone inegável do conjunto, ganhou a alcunha de Parque Nacional da Península do Cabo. Segundo depoimento do seu primeiro diretor, David Daitz; “esse foi o nome possível: “Havia então uma histeria entre os antigos administradores, sobretudo os das Reservas de Silvermine e do Cabo mas também outros, de que a Montanha da Mesa estava usurpando os outros parques e retirando-lhes a identidade. Por isso o nome acordado naquele momento foi o mais inclusivo possível. Um nome que representava as 28 áreas que deram gênese ao novo Parque”.

Transformar quase três dezenas de entidades em uma só é tarefa para Hércules. Em seus primeiros anos a diretoria do Parque se concentrou em unificar os planos de manejo, as normas operacionais, os uniformes e os logotipos. Logo, contudo, ficou patente que faltava ao Parque algo forte que lhe desse uma identidade especial e que ajudasse a campanha pela desapropriação de uma série de pequenos lotes privados que permitiriam ligar todas as frações da nova unidade de conservação, dando-lhe continuidade territorial. Foi aí que surgiu a idéia de criar uma trilha ligando o Cabo da Boa Esperança á Cidade do Cabo, a “Cape to Cape Trail”.

Foto: Pedro Cunha e Menezes

O Parque Nacional da Península do Cabo havia herdado de seus 28 progenitores uma malha de cerca de mil e cem quilômetros de trilhas sinalizadas. Essa rede de caminhos constituia-se de trilhas centenárias, muitas delas conectando-se umas às outras. Havia de tudo, trilhas históricas que eram remanescentes de caminhos coloniais, servidões abertas para a manutenção de represas, canos d´água e linhas d e transmissão , caminhos construídos para acessar fortalezas e radares de uso militar e picadas de excursionismo que levavam a pontos de interesse turístico.

O desafio era juntar as pontas de modo a obter como resultado uma trilha que não apenas ligasse o Parque de cabo a cabo, mas que, no processo, proporcionasse ao excursionista uma visão completa da fauna, flora, história e atrativos culturais e paisagísticos da nova unidade de conservação. O planejamento também tinha que levar em consideração a necessidade de estabelecer locais de pernoite ao longo da jornada. O mais importante, entretanto, era dar ao caminhante a noção do todo, transformando os “Amigos de Silvermine”, “Defensores da Montanha da Mesa” e quetais em fervorosos partidários da nova entidade, o Parque Nacional da Península do Cabo. O planejamento do traçado foi lento. Disputou tempo e recursos com batalhas mais prementes, como aquela travada nos tribunais contra alguns Municípios do entorno para a que a renda apurada nos portões de entrada do Parque deixassem de reverter para as administrações da Cidade do Cabo e cidades satélites e permanecesse nos cofres da unidade de conservação. Outras lutas do período incluíram uma pendenga para que a Marinha parasse de utilizar uma área de interesse do Parque como local de treinamento de tiro e uma disputa contra a autoridade de trânsito, demandando ao Parque o direito de cobrar pedágio em uma rodovia que rasga a área protegida. O tempo passou. David Daitz foi substituído. Em 2004, houve um rebatizado. Desde então o PARNA passou a ser conhecido como Montanha da Mesa.

Pouco a pouco as vitórias foram se acumulando e o novo Parque se consolidando. Em seu primeiro modelo, aprovado durante a gestão de Howard Langley, a trilha projetada aproveitaria somente caminhos já existentes e utilizaria pensões e hotéis dos bairros vizinhos como locais de pernoite. Quase foi implementada assim. O substituto de Langley e terceiro diretor da UC, Brett Myrdall, um antigo coronel da ala militar do Congresso Nacional Africano, aperfeiçoou a idéia. Aproveitou uma das pernas da Trilha Circular da antiga Reserva do Cabo da Boa Esperança como o dia inicial da trilha. Com isso ganhou pronto o primeiro abrigo, um galpão construído durante a Segunda Guerra Mundial para o pernoite dos soldados encarregados de operar o radar que existia para monitorar aquela que, até hoje, é uma das rotas marítimas mais importantes do mundo. Para os outros pernoites Brett conseguiu doações. Contratou arquitetos paisagistas e os erigiu em áreas previamente degradadas. O resultado saiu melhor que a encomenda. Não conheço abrigos tão bonitos ou tão confortáveis no Brasil ou algures. Na trilha propriamente dita, as intervenções de drenagem e desobstrução foram intensificadas com a utilização de grupos oriundos de frentes de trabalho, pagas por um fundo do Governo sul-africano para o combate ao desemprego.

Brett também capitaneou um processo de africanização do nome da trilha que rebatizou com o nome nativo de Hoerkwaggo, cuja tradução é “montanhas no mar”. Logo após, em meados de 2010, conseguir desapropriar de uma vinícola um estreito corredor que deu ao Parque (e à trilha) continuidade territorial, Brett resolveu que era hora de inaugurar a trilha. Sinalização era desnessária pois a ideia era que o caminho fosse feito com a companhia obrigatória de um guia. Só faltava o último dos sete abrigos, em Red Hill, próximo a antigas instalações da Armada (justamente as que davam suporte ao campo de tiro). Não sucedeu assim. Antes do fim daquele ano Brett foi exonerado. Em seu lugar entrou Paddy Gordon. A concepção geral da trilha mudou. O abrigo de Red Hill deixou de ser uma prioridade, mas há alternativa possível nos hotéis e pensões no bairro histórico de Simonstown. A obrigatoriedade do Guia caiu. Com isso, dentro dos próximos meses a trilha será toda sinalizada, permitindo ao excursionista caminhar desacompanhado. Não é necessário esperar. Com auxílio de um bom mapa (e eles não faltam na África do Sul) já é possível percorrer hoje toda a Horikwaggo. Foi o que a Expedição Terra Limpa/((o))eco fez no começo de 2011.

Chegamos ao abrigo de Cape Point no fim da tarde de uma sexta feira ensolarada. Deixamos ali nossas bagagens e nos apressamos a percorrer os dois quilômetros que nos separavam do Cabo da Boa Esperança. A caminhada, a passos rápidos, já nos deu a noção do que nos esperava nos próximos sete dias. O Oceano Atlântico a oeste e o Índico a leste ficando vermelhos com o sol poente, as montanhas intermináveis nos chamando: “vem, vem, vem..”, as praias de areia muito fina convidando ao banho, a fauna de antílopes e avestruzes pastando tranquilos enquanto posavam para nossa contemplação estupefata… No Cabo propriamente dito ficamos impressionados com a infraestrutura de restaurantes e a com a qualidade do manejo. As passarelas de madeira ligando os dois quilômetros que separam o farol do Cabo da Boa Esperança, o acesso para cadeirantes e o processo de retirada do esgoto e dos dejetos humanos da parte alta do Parque, utilizando um bondinho, foram as coisas que mais chamaram atenção. Depois disso, nos marcou uma placa em forma de seta apontando para o Rio de Janeiro. Pensei na minha amada Floresta da Tijuca apartada dali por 6.055 quilômetros. Me deu até uma ponta de tristeza. Realmente é muito grande a distância que nos separa do Parque Nacional da Montanha da Mesa…. Na próxima coluna começamos a caminhar.

*Contribuíram Sandra e Ivan Amaral Leia também 1a parte – De Cabo a Cabo em uma semana

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.