Outubro, pelo menos no Paraná, foi um mês cheio para o ambientalismo brasileiro. Além do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação em Curitiba, no dia 15 as autoridades do Mercosul reuniram-se em Foz do Iguaçu para discutir a gestão do Aqüífero Guarani. Resultado: a Carta de Foz do Iguaçu Sobre o Aqüífero Guarani. O que isso quer dizer? Ainda não se sabe.
O encontro reuniu autoridades e pesquisadores dos quatro países sob os quais se estende o imenso lago subterrâneo. Participaram membros da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, representantes governamentais e populares, além de membros de diversas ONGs que tratam da questão ambiental da água.
Não era para menos. Localizado sob o solo de quatro países – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – o Aqüífero Guarani mostra-se, cada vez mais, como um bem de elevadíssimo valor estratégico. Trata-se da maior reserva subterrânea de água doce do mundo. Com mais de um milhão de quilômetros quadrados de área, o reservatório tem capacidade para abastecer toda a atual população brasileira por dois mil e quinhentos anos, de acordo com estudos realizados pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Ambiental e Agropecuária.
Aproximadamente 71% das águas do Aqüífero estão no subsolo brasileiro, mais precisamente sob os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A Argentina tem cerca de 19%. O Paraguai, uns 6% e o Uruguai, 4%. Segundo os termos da Carta, essas águas deverão ser declaradas bem público do povo de cada Estado soberano no qual a reserva se localiza.
Isso, no entanto, traz mais deveres e preocupações do que direitos para esses países. A Carta de Foz do Iguaçu estabelece uma série de medidas a serem adotadas por cada um deles, a fim de assegurar a sustentabilidade do uso das águas do Aqüífero. Os países comprometeram-se, por exemplo, a adotar imediatamente uma política de proteção ambiental com enfoque central no reservatório e a aumentar a participação dos poderes legislativos federais e estaduais, além da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul e dos movimentos sociais na elaboração das políticas relativas a ele.
Os Estados reconheceram, ainda, que a água proveniente do Aqüífero, por sua qualidade e importância, não será explorada comercialmente. Ao menos por enquanto. Segundo os termos da Carta, o uso sustentável da água do reservatório deverá ser feito através de serviço público, prioritariamente para o abastecimento das populações dos países signatários e para o consumo de animais.
A efetiva aplicação das determinações de Foz do Iguaçu, no entanto, ainda parece distante da realidade. Fala-se muito em controle e fiscalização, em evitar a degradação e divulgar a importância do manancial. Traçando um paralelo com o mundo vegetal, podemos dizer que o Aqüífero Guarani seria a versão aquática da Amazônia. Ambos possuem uma indiscutível importância ambiental e ocupam grandes áreas, atravessando as fronteiras de diversos países. Ambos figuram entre as maiores reservas de água doce do mundo. E agora ambos mereceram tratados internacionais de cooperação para preservá-los.
Na Amazônia, a situação é reconhecidamente lamentável. Todos sabem que no Norte do Brasil, a Zona Franca se estende muito além de Manaus, pelo menos no sentido figurado. O Brasil, cheio das melhores intenções, até que tenta cumprir sua parte. Mas, com recursos humanos e materiais que chegam a ser risíveis, dada a proporção do problema, não consegue sequer arranhar sua superfície. E para o Aqüífero Guarani é difícil imaginar um futuro diferente. Picotada por 50 mil quilômetros de estradas feitas clandestinamente pelos madeireiros, segundo a mais recente estimativa do Imazon, a região está secando aos poucos. E nada garante que o Aqüífero Guarani não terá a mesma sorte.
No caso do manancial, é necessário impedir sua poluição, sua exploração comercial – que, por sinal, embora vetada pela carta, já ocorre -, a depredação de suas fontes de recarga e sua utilização acima dos limites nos quais ele consegue repor seu volume, garantindo, assim, seu uso sustentável. A tarefa não é fácil.
Como fica, por exemplo, a exigibilidade do cumprimento das metas estabelecidas pela carta? O Estado que deixar de cumpri-las estará prejudicando os demais, mas os quatro países signatários fizeram questão de reafirmar, reciprocamente, suas soberanias sobre a porção que lhes cabe do Aqüífero.
Só para falar do lado brasileiro, falta conhecimento sobre o reservatório, gente para fiscalizar a sua exploração e vontade política de fazê-lo. Por outro lado, sobram razões para que olhos do mundo inteiro voltem-se para o reservatório. A água potável, como se sabe, tende a se tornar, junto com a biodiversidade, uma das maiores riquezas da segunda metade deste século. Montado nesses tesouros naturais, mais uma vez o Brasil se candidata a “país do futuro”.
Para a carta funcionar, o primeiro passo seria internalizar os seus termos, como se faz com tratados e convenções internacionais, para que adquira força de lei dentro de nosso território. Isso vai acontecer? Provavelmente não. O Brasil possui uma vasta e técnica legislação sobre águas que esbarra, como praticamente todas as leis brasileiras, no problema da aplicabilidade.
O que o Brasil precisa, portanto, não é de mais uma declaração de princípios, mas adquirir o hábito de colocar em prática suas belas intenções sobre os recursos naturais. Precisa aprender a dar eficácia à sua excelente e avançadíssima legislação ambiental. E, tendo provado que é capaz de cuidar deles, lidar com as pressões internacionais que rondam esses bens tão valiosos.
Leia também
Poluição química de plásticos alcançou os mais antigos animais da Terra
Estudos identificaram que proteínas geradas nas próprias esponjas marinhas eliminam essas substâncias prejudiciais →
2024 é o primeiro ano em que a temperatura média da Terra deve ultrapassar 1,5ºC
Acordo de Paris não está perdido, diz serviço climatológico europeu. Confira a galeria de imagens com os principais eventos extremos de 2024 →
Obra milionária ameaça sítio arqueológico e o Parna da Chapada dos Guimarães, no MT
Pesquisadores, moradores e empresários descrevem em documentário os prejuízos da intervenção no Portão do Inferno →