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A Amazônia subterrânea

Do encontro sobre o Aqüífero Guarani, reunindo os quatro países que detêm porções do manancial, saiu uma carta de princípios que parece fadada à inoperância.

7 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

Outubro, pelo menos no Paraná, foi um mês cheio para o ambientalismo brasileiro. Além do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação em Curitiba, no dia 15 as autoridades do Mercosul reuniram-se em Foz do Iguaçu para discutir a gestão do Aqüífero Guarani. Resultado: a Carta de Foz do Iguaçu Sobre o Aqüífero Guarani. O que isso quer dizer? Ainda não se sabe.

O encontro reuniu autoridades e pesquisadores dos quatro países sob os quais se estende o imenso lago subterrâneo. Participaram membros da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, representantes governamentais e populares, além de membros de diversas ONGs que tratam da questão ambiental da água.

Não era para menos. Localizado sob o solo de quatro países – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – o Aqüífero Guarani mostra-se, cada vez mais, como um bem de elevadíssimo valor estratégico. Trata-se da maior reserva subterrânea de água doce do mundo. Com mais de um milhão de quilômetros quadrados de área, o reservatório tem capacidade para abastecer toda a atual população brasileira por dois mil e quinhentos anos, de acordo com estudos realizados pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Ambiental e Agropecuária.

Aproximadamente 71% das águas do Aqüífero estão no subsolo brasileiro, mais precisamente sob os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A Argentina tem cerca de 19%. O Paraguai, uns 6% e o Uruguai, 4%. Segundo os termos da Carta, essas águas deverão ser declaradas bem público do povo de cada Estado soberano no qual a reserva se localiza.

Isso, no entanto, traz mais deveres e preocupações do que direitos para esses países. A Carta de Foz do Iguaçu estabelece uma série de medidas a serem adotadas por cada um deles, a fim de assegurar a sustentabilidade do uso das águas do Aqüífero. Os países comprometeram-se, por exemplo, a adotar imediatamente uma política de proteção ambiental com enfoque central no reservatório e a aumentar a participação dos poderes legislativos federais e estaduais, além da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul e dos movimentos sociais na elaboração das políticas relativas a ele.

Os Estados reconheceram, ainda, que a água proveniente do Aqüífero, por sua qualidade e importância, não será explorada comercialmente. Ao menos por enquanto. Segundo os termos da Carta, o uso sustentável da água do reservatório deverá ser feito através de serviço público, prioritariamente para o abastecimento das populações dos países signatários e para o consumo de animais.

A efetiva aplicação das determinações de Foz do Iguaçu, no entanto, ainda parece distante da realidade. Fala-se muito em controle e fiscalização, em evitar a degradação e divulgar a importância do manancial. Traçando um paralelo com o mundo vegetal, podemos dizer que o Aqüífero Guarani seria a versão aquática da Amazônia. Ambos possuem uma indiscutível importância ambiental e ocupam grandes áreas, atravessando as fronteiras de diversos países. Ambos figuram entre as maiores reservas de água doce do mundo. E agora ambos mereceram tratados internacionais de cooperação para preservá-los.

Na Amazônia, a situação é reconhecidamente lamentável. Todos sabem que no Norte do Brasil, a Zona Franca se estende muito além de Manaus, pelo menos no sentido figurado. O Brasil, cheio das melhores intenções, até que tenta cumprir sua parte. Mas, com recursos humanos e materiais que chegam a ser risíveis, dada a proporção do problema, não consegue sequer arranhar sua superfície. E para o Aqüífero Guarani é difícil imaginar um futuro diferente. Picotada por 50 mil quilômetros de estradas feitas clandestinamente pelos madeireiros, segundo a mais recente estimativa do Imazon, a região está secando aos poucos. E nada garante que o Aqüífero Guarani não terá a mesma sorte.

No caso do manancial, é necessário impedir sua poluição, sua exploração comercial – que, por sinal, embora vetada pela carta, já ocorre -, a depredação de suas fontes de recarga e sua utilização acima dos limites nos quais ele consegue repor seu volume, garantindo, assim, seu uso sustentável. A tarefa não é fácil.

Como fica, por exemplo, a exigibilidade do cumprimento das metas estabelecidas pela carta? O Estado que deixar de cumpri-las estará prejudicando os demais, mas os quatro países signatários fizeram questão de reafirmar, reciprocamente, suas soberanias sobre a porção que lhes cabe do Aqüífero.

Só para falar do lado brasileiro, falta conhecimento sobre o reservatório, gente para fiscalizar a sua exploração e vontade política de fazê-lo. Por outro lado, sobram razões para que olhos do mundo inteiro voltem-se para o reservatório. A água potável, como se sabe, tende a se tornar, junto com a biodiversidade, uma das maiores riquezas da segunda metade deste século. Montado nesses tesouros naturais, mais uma vez o Brasil se candidata a “país do futuro”.

Para a carta funcionar, o primeiro passo seria internalizar os seus termos, como se faz com tratados e convenções internacionais, para que adquira força de lei dentro de nosso território. Isso vai acontecer? Provavelmente não. O Brasil possui uma vasta e técnica legislação sobre águas que esbarra, como praticamente todas as leis brasileiras, no problema da aplicabilidade.

O que o Brasil precisa, portanto, não é de mais uma declaração de princípios, mas adquirir o hábito de colocar em prática suas belas intenções sobre os recursos naturais. Precisa aprender a dar eficácia à sua excelente e avançadíssima legislação ambiental. E, tendo provado que é capaz de cuidar deles, lidar com as pressões internacionais que rondam esses bens tão valiosos.

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