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Batalha judicial num paraíso vertical

O Parque Nacional de Yosemite, paraíso dos escaladores de todo o mundo, transformou-se no palco de uma batalha judicial para apurar a morte de um deles.

15 de julho de 2005 · 19 anos atrás

No dia 10 de julho de 1996, em pleno verão do hemisfério norte, 80 mil toneladas de pedra desprenderam-se de uma montanha acima de Washburn Point, aterrissando em Happy Isles, uma das áreas turísticas do Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia. As pedras cobriram de poeira o lugar e derrubaram mais de cem árvores, arrancando-as pela raiz. O resultado foi a interdição da área até a primavera do ano seguinte, 14 pessoas feridas e uma morte – a de Emiliano Morales, um jovem de 20 anos que estava a mais de 400 metros do local.

Três anos depois, outro desmoronamento, em área bastante próxima à do acidente anterior, matou um escalador e feriu outros quatro. Dessa vez, um bloco de cerca de 525 toneladas soltou-se num ponto chamado Glacier Point Apron e, chocando-se contra a própria parede de rocha, partiu-se em pedaços do tamanho de carros. Um desses blocos atingiu Peter Terbush na cabeça, matando-o na hora. Terbursh morreu aos 21 anos, sem largar a corda com a qual dava segurança ao seu parceiro de escalada. Seus pais entraram na justiça contra o National Park Service, a agência do governo americano que cuida dos parques nacionais, pedindo uma indenização de US$ 10 milhões. O caso será julgado em fins de agosto.

“O processo”, segundo a Procuradora dos EUA Kristi Kapetan, em entrevista à revista Climbing deste mês,“pode ter implicações no futuro da escalada em Yosemite. Processar o Parque porque uma rocha caiu sobre um escalador pode limitar o acesso às escaladas”. Para que se tenha uma idéia do que isso representa, Yosemite é para os escaladores o que Meca é para os muçulmanos. Desde a década de 1970, é ponto de peregrinação quase obrigatório para os melhores escaladores do mundo. Não se trata, portanto, apenas de um local com uma concentração fora do comum de belezas naturais. Lá o esporte evoluiu, até mais do que na Europa — onde nasceu — para se tornar o que é hoje. Suas montanhas de faces verticais — como o El Capitan, o Half Dome e a Lover’s Leap, entre muitas outras — concentram até hoje algumas das mais clássicas vias de escalada do mundo. Limitar o acesso a elas, portanto, não está nem perto de ser algo simples.

Mas tem gente que, nem por isso, está disposto a deixar o caso passar em branco. Se até recentemente os estudos realizados apontavam para a falta de qualquer causa humana para os desmoronamentos, isso está prestes a mudar. O geólogo Skip Watts acredita que os desprendimentos de rochas podem ter sido causados pela infiltração do esgoto decorrente de uma nova área de recreação, instalada pelo parque logo acima do local. É o que noticia a Climbing, em uma matéria intitulada National Park Service faces Lawsuit over Glacier Point Apron rockfall (nº 241, julho de 2005).

A matéria conta que Watts começou a desconfiar das causas do desmoronamento de 1996 um ano depois, quando estudava o acidente. Ele e sua equipe foram surpreendidos por um cheiro fortíssimo de esgoto enquanto fixavam cordas justamente sobre Glacier Point, o local do segundo acidente. Hoje ele tem uma teoria própria para os dois casos: toneladas de água de esgoto provenientes de instalações do próprio parque, localizadas exatamente sobre Glacier Point, enfraqueceram as rochas, fazendo-as cair. Provar sua tese, contudo, pode não ser fácil. Segundo a reportagem, Gerry Wieczorek, especialista do United States Geological Survey, com mais de 30 anos de experiência, afirma que não há qualquer indício sobre o que pode ter desencadeado os desmoronamentos. Os dois se enfrentarão no tribunal, em agosto, como assistentes, respectivamente, da acusação e da defesa.

Para enfrentar a experiência de Wieczorek — e todo o aparato estatal que lhe dá apoio — Watts pretende se municiar de todas as provas que puder conseguir. E é justamente isso o que ele vem fazendo nos últimos oito anos. A suspeita sobre a água de esgoto baseia-se não apenas no olfato de Watts. Segundo a reportagem, os desmoronamentos começaram logo após o NPS ter iniciado obras de revitalização da área de Glacier Point, melhorando as instalações do local, inclusive com a expansão do estacionamento e dos banheiros. As reformas teriam trazido mais turistas, que usam mais os banheiros, aumentando o fluxo de água e o número de desmoronamentos. Ele ainda tentou comprovar as suas suspeitas através de um teste onde se coloca corante em uma fonte de água, com o objetivo de melhor precisar o seu curso. A autorização para esse experimento, no entanto, foi negada pelo NPS, sob o argumento de que a pesquisa não era válida.

Diversos desmoronamentos aconteceram entre os anos de 1998 e 1999 e, em novembro de 1999, Watts teria apresentado em uma conferência de geólogos um estudo apresentando sua teoria sobre a relação entre o esgoto e os desmoronamentos em Yosemite. O NPS, assim que soube do trabalho, conta a reportagem, tratou de atacar as descobertas de Watts, alegando que o encanamento da rede de esgotos mencionada por Watts havia sido desviada para outro lugar; e que, apesar de os novos banheiros terem sido instalados em 1997, os desmoronamentos de 1998 e 1999 haviam ocorrido num lugar diferente e numa época em que os banheiros estavam desativados.

Isso levou Watts a arquivar suas pesquisas até que o pai de Peter Terbush (o escalador morto no segundo acidente)o contatou e os dois começaram a buscar juntos uma explicação para o estranho aumento no número de desmoronamentos. Tiveram que tomar medidas legais para que lhes fosse liberado o acesso a documentos do NPS sobre o caso. De posse desses documentos, conta a matéria, Watts descobriu que, embora os banheiros estivessem desativados na época dos desmoronamentos de 1998 e 1999, a água continuava a ser bombeada para dentro do sistema à razão de 26 mil a 30 mil litros por dia. E mais, Watts teria descoberto que, no final da temporada de 1998, essa taxa havia aumentado para algo entre 37 e 56 mil litros diários. Wieczorek, de sua parte, teria se negado a comentar esses resultados.

Enquanto o julgamento não vem, o NPS informou à Climbing que tem monitorado de perto os locais onde potencialmente podem ocorrer desmoronamentos, informando os visitantes quando esse risco torna-se iminente. Mas, como a própria reportagem lembra, o NPS não pode prever todos esses desprendimentos. A reportagem termina dizendo que, em agosto, um juiz federal (como o caso tem como réus órgãos do governo e um parque nacional, o julgamento não é por júri) decidirá se houve negligência por parte do NPS ao não colocar avisos após o desmoronamento de 1996 e apontará “quem foi, em última instância, responsável pelos freqüentes desmoronamentos em Glacier Point desde 1996, o Governo Federal ou a Mãe Natureza.”

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