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Sobre epidemias e sustentabilidade

O rápido espalhamento do Covid-19 nos remete a uma conversa óbvia, mas ainda obscura para muitos: a intrínseca relação entre sustentabilidade e o surgimento de doenças emergentes

29 de março de 2020 · 4 anos atrás
  • Rafael Loyola

    Diretor Executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade, professor na UFG e membro da Academia Brasileira de Ciências

Em Brasília, painéis luminosos exibem dicas aos motoristas para evitarem o coronavírus. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

A epidemia de Covid-19 e o rápido espalhamento do novo coronavírus nos remete a uma conversa óbvia, mas ainda obscura para muitos: a intrínseca relação entre sustentabilidade e o surgimento de doenças emergentes.

Mas vamos começar pelo final. Já relatei aqui com protestos de alguns leitores (que sequer imagino porque o sejam) – que alguns governos atuais têm se voltado para um tipo de nacionalismo obtuso que tem, entre outras coisas, um fetiche por diminuir, quando não ignorar, o que dizem os cientistas e a ciência em geral. Pois bem, agora, alguns desses mesmos governos (e nem todos, como era de se esperar) esperam da ciência uma resposta rápida para a crise epidêmica que vivemos. E é difícil que uma solução definitiva venha rapidamente pelo próprio modo como a ciência funciona, muito embora, a partir do conjunto de evidências acumuladas em outras epidemias e nesta própria, os cientistas tenham dito desde o início o que fazer para evitar o espalhamento do novo coronavírus. Então, coloco no início da coluna o que colocaria no final: sem dar crédito ao conhecimento científico, não vamos longe. Quem sabe agora, nossa sociedade e o governo se atentem para essa obviedade.

Voltando ao assunto da sustentabilidade, reparem que todas as epidemias recentes que tivemos – todas, eu disse – são zoonoses; isto é, tem origem animal. Isso acontece quando um vírus, por exemplo, que convive com animais selvagens (às vezes por milhares de anos), encontra um novo hospedeiro. Quando esse novo hospedeiro é humano e não tem defesas para esse vírus, isso cria uma nova doença, como no caso da Covid-19. Em um mundo hoje super conectado fisicamente, a disseminação do vírus é quase inevitável e ocorre de forma exponencial, como temos observado. Isso aconteceu com a Ebola (1969), Nipah (1999), SARS (2002), H1N1 (2009), MERS (2012) e Covid-19 (2019), para citar algumas.

Capa do filme Epidemia, de Wolfgang Petersen. Imagem: Reprodução.

Mas afinal, o que isso tem a ver com sustentabilidade? Quando a crise da Covid-19 começou eu fui rever um filme que gosto muito chamado “Epidemia” aquele com o Dustin Hoffman e outros bons atores, de 1995. Nesse filme, caso você não se lembre, uma nova epidemia surge no Zaire (África) e infecta soldados americanos. O governo “dá um jeito” na epidemia e muitos anos depois ela volta por meio de um hospedeiro intermediário: um macaco. Mais sobre o macaco, falarei no final do texto.

Se você prestar atenção ao filme e as epidemias recentes que tivemos, está tudo lá: o desmatamento de florestas, que nos coloca em contato com espécies selvagens e possibilita o contato com agentes infecciosos; o tráfico de animais silvestres, que aumenta as possibilidades de contágio; a introdução de espécies exóticas, que levam doenças a ecossistemas que antes não as tinham; a incredulidade dos governos e incompetência de resposta rápida para conter o avanço da doença… enfim, tudo que acontece naquele filme, acontece hoje.

Faltou uma coisa: a possibilidade de criar animais silvestres e vendê-los, vivos, em mercados populares onde animais domésticos e selvagens e humanos se encontram. Um convívio que seria raríssimo, senão impossível na natureza. No caso da Covid-19, a possibilidade do vírus ter “pulado” de hospedeiros naturais como morcegos e infectado outros animais selvagens criados para venda (como pangolins e as civetas) é provável e tem sido trabalhada como hipótese para explicar a origem do vírus em populações humanas.

Então, junte tudo isso e você tem um caldeirão de situações indesejadas acontecendo que nos leva à pergunta não de qual será a próxima epidemia, mas quando ela ocorrerá? Alguns centros ao redor do mundo têm se dedicado a monitorar e gerar modelos de previsão para isso. Os locais mais óbvios para isso acontecer são aqueles com alta densidade populacional, pobreza, pouca regulação fitossanitária e saneamento básico precário.

“Lá você vai encontrar 17 grandes objetivos, complexos e ambiciosos, mas que funcionariam como uma vacina para o mundo moderno em casos como o que estamos vivendo”.

Entretanto, o “remédio” para diminuir a possibilidade de que novas doenças e epidemias surjam dessa maneira já existe e ele se chama Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Esses objetivos fazem parte da Agenda 2030, que segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) é “um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade”. Lá você vai encontrar 17 grandes objetivos, complexos e ambiciosos, mas que funcionariam como uma vacina para o mundo moderno em casos como o que estamos vivendo. Desde o primeiro objetivo, “Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”, fica claro que nós, humanos, somos a chave para garantir a sustentabilidade do planeta. Sem pobreza, doenças emergentes seriam muito, muito raras. O segundo objetivo, “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável” também eliminaria (ou reduziria drasticamente) a fome, a ingestão de animais silvestres como alimento, a criação dos mesmos em cativeiro…

Fique tranquilo, caro leitor, pois não pretendo refletir sobre os 17 objetivos, embora não possa me furtar de mencionar os objetivos 6 (garantir acesso à água e saneamento básico a todos), 13 (combater as mudanças climáticas) e 15 (proteger e restaurar os ecossistemas terrestres). Vale a pena ver todos os objetivos e se inteirar sobre essa conversa que envolve todos os países do mundo. Refletir sobre um mundo melhor, sobre como atingir tais objetivos é o primeiro passo para sair dessa crise. Reconhecer que já temos uma cartilha e um dever de casa que nos previne de epidemias como a da Covid-19 é outro passo importante. Criar políticas públicas e implementar as ações para que esses objetivos sejam cumpridos é outra história. À essa tenho dedicado meu tempo, trabalho, conversas, votos… como diria o bom senso, prevenir é melhor que remediar, e a prevenção para a crise atual e aquelas futuras está na garantia da sustentabilidade em todas os setores da nossa sociedade.

Ah, o macaco! No filme, o macaco é nativo do Zaire. Na tela, o macaco ator é um “macaco-prego-de-cara-branca”(Cebus capucinus). Essa espécie não ocorre no Zaire, nem na África. Ela é nativa da América do Central e do Sul e vive em florestas que vão do Panamá ao Equador. Se bem que erraram feio na origem do macaco (não sei como Hollywood não tem consultores para isso!), acertaram em como resolver o problema. Quem sabe uma sessão de Netflix com pipoca não ajude o nosso governo a fazer o mesmo?

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*Editado às 07/04/2020

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Comentários 5

  1. SOLANGE DUARTE diz:

    Acredito que a introdução do vírus entre os humanos está muito mais ligada à hábitos culturais de alimentação do que propriamente à pobreza, embora seja de nosso conhecimento que tais hábitos possam ter sido adquiridos em tempos de guerra e fome. O texto é bom!


  2. Manfilla diz:

    Apenas um reparo, ao reler percebi que a matéria indica o ODS 12 como Combate às Mudanças Climáticas, quando na verdade é o 13. O ODS 12 trata de Consumo e Produção Sustentável.


    1. Rafael Loyola diz:

      Você está certo/a, Manfilla. Obrigado pela correção.


  3. Cláudio dos Anjos diz:

  4. Muito pertinente e oportuno o texto do Rafael Loyola!!! Certamente se esta geração conseguir emplacar os 17 ODS o planeta mudara seu patamar evolutivo!
    Parabéns!