Na última segunda-feira, atendendo ao inexorável passo do tempo biológico, Augusto César Cunha Carneiro, advogado e o mais importante ativista ambiental do sul do Brasil e, para muitos, um dos mais importantes desse país – ainda que sem ter desfrutado do marketing sindicalista que entronizou outros como ícones não eleitos de um “movimento” que mais fala do que faz – calou-se aos 91 anos.
Apenas a morte, de fato, para calar Augusto Carneiro, cuja voz fará muita falta num momento em que muitos ditos ativistas optam por calar-se por conta própria, sem precisar da morte, bastando para tanto o medo de se expor, de “perder a interlocução” com os poderosos dos gabinetes e dos patrocínios, de deixar de contar com migalhas e esmolas do planalto com “p” minúsculo cuja sombra a tantos assusta nesses tempos de fascismo anti-ambiental estatal.
Conheci Augusto Carneiro em 1978, eu com 15 anos, ele já com a mesma cara de velhote maluco que conservaria até esta semana, carregando sua pasta surrada de couro cheia de folhetos, recortes de jornal, convocatórias para manifestações e palestras. Na antiga sede da AGAPAN, então a mais importante entidade ambientalista do Rio Grande do Sul, Carneiro sem me conhecer lançou-me uma maldição, apontando-me o dedo e dizendo “este jovem vai trabalhar com as baleias!” Ato contínuo, passou-me um abaixo-assinado contra a caça à baleia no Brasil, então praticada por japoneses baseados na Paraíba com aval do governo militar. Esse gesto, essa convocatória, que de uma maneira ou outra Carneiro lançaria sobre dezenas de outros jovens ou nem tanto ao longo de quase quatro décadas, moldou minha vida e quem sabe de quantos à nossa volta. Com seu entusiasmo e discurso inflamado contra os destruidores da Natureza, Carneiro fez magistralmente aquilo que é mais difícil ao ativista ambiental fazer: multiplicar. Multiplicar a informação, a consciência, as ações contra a devastação.
Carneiro não era nem queria ser “especialista” em coisa nenhuma. Era um cidadão como qualquer outro, mas alertado pelos escritos de Henrique Luís Roessler nos anos 50/60 e pela diatribe inflamada de José Lutzemberger nos anos 70 sobre o impacto humano no planeta e nas demais espécies, e que depois disso não podia mais se calar, nem aturar a passividade da maioria diante da devastação. Com ele, aprendi que o conhecimento de causa é fundamental ao ativismo, e que de nada adiantava querermos argumentar a favor da conservação com argumentos ideológicos, filosóficos, ou conversa fiada. Quem não lê não pode fazer ativismo, era o seu lema, que o levou a seguir vendendo a preços subsidiados uma enorme gama de literatura ambiental a quem quisesse ler. Sua banquinha de livros ecológicos virou referência e ponto de encontro para os ativistas gaúchos, e dela saíram muitos outros cidadãos conscientes e que, como ele, não puderam mais se calar.
Carneiro não tinha nada de zen, bonzinho ou “paz e amor” hipócrita que alguns advogam deva ser a fachada do ativismo ambiental. Carneiro odiava. Odiava o papo-furado mentiroso e inútil dos “teóricos” do movimento, geralmente militantes de partidos da dita esquerda que até hoje tentam forçar a identificação, absolutamente inexistente e falsa, da conservação da Natureza com suas teses ideológicas e partidárias. Sempre denunciou vigorosamente esses absurdos, bem como a tomada de assalto das ONGs ambientalistas por bedéis partidários, como ocorreu com a própria AGAPAN num determinado momento. O livro de Carneiro O Socialismo, A Direita e o Ecologismo escancara bem essa história, que muitos seguem tentando varrer pra debaixo do tapete em nome de uma “unidade do movimento” que não interessa a ninguém a não ser aos aproveitadores partidários deste.
Sem medo
“Revejo com tristeza e alegria misturadas as muitas fotos antigas em papel, e me detenho na mais emblemática delas, Carneiro dando gargalhadas sob a placa do IBAMA na inauguração da sede do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, que defendemos com unhas e dentes”
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Carneiro também odiava o servilismo e os salamaleques às autoridades corruptas e coniventes com a destruição da Natureza. Para ele, o político anti-ambiental tinha de ser execrado, xingado, escrachado, e funcionário público não era dono do Estado, mas empregado dos cidadãos, obrigado ao cumprimento da lei e à prestação imediata de informações. Não por nada este autor aprendeu com ele a dizer o que diz e a escrever o que escreve. Carneiro me ensinou que respeito não emana do cargo, mas do comportamento de seu ocupante. E que o conteúdo é mais importante que a forma, que xingar é melhor que enrolar, que canalha deve ser chamado de canalha sempre e quando merecido, sem dar ouvidos ao “politicamente correto”.
Juntos, tivemos momentos memoráveis, daqueles que fazem o ativismo ambiental valer a pena. Como ser ameaçado de facão por desmatadores do Parque Municipal Saint-Hilaire em Porto Alegre e pô-los pra correr à bala. Percorrer o litoral gaúcho para verificar a mortandade de animais marinhos nas redes da máfia da pesca industrial e expor esse absurdo quando ninguém ainda se preocupava com isso, nos anos 80 ( na mesma viagem, perdidos, acampamos em um terreno baldio em meio ao nevoeiro, para descobrir, de manhã, que era a praça central do município de Mostardas, onde viramos atração para os moradores). Confiscar e destruir centenas, milhares talvez, de gaiolas dos infames passarinheiros da borda da Serra do Mar, até que um deles ameaçasse um policial de nossa equipe e fosse morto num tiroteio, dando fim a esse tráfico assassino. Militar ao lado de Carneiro não era brincadeira, não era teoria, era botar a mão na massa e fazer a diferença na prática.
Revejo com tristeza e alegria misturadas as muitas fotos antigas em papel, e me detenho na mais emblemática delas, Carneiro dando gargalhadas sob a placa do IBAMA na inauguração da sede do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, que defendemos com unhas e dentes contra os fazendeiros do entorno, que tentaram revogar sua decretação para poder continuar invadindo as áreas públicas com suas cebolas e vacas. Perderam, pese a seus deputados, jabás e lobbies, para o exército mambembe de indignados de Augusto Carneiro.
Durante décadas os esforços de Carneiro e sua legião de seguidores e colaboradores deram frutos. A legislação ambiental brasileira evoluiu, parques e reservas naturais – junto com as árvores urbanas, sua grande paixão – foram criados, o país parecia mesmo aos trancos evoluir, antes que os aproveitadores, aparelhadores, “ideólogos” tomassem o Estado de assalto em tempos recentes. Como não se calava ante qualquer partido ou ideologia que fosse contra a conservação, também contra o luLLismo dilmento Carneiro não se calou frente a este regime que gera teses e desperdiça milhões em “planos de ação”, mas não fiscaliza as leis, não protege os parques, não promove a sustentabilidade como vetor de desenvolvimento.
Me dou conta tristemente de que não, não é de fato o patrocinador empresarial ou o desfavorecimento pelo burocrata estatal que os impele a isso: é apenas o medo de. O medo de não ter seu patrocínio renovado. O medo de não ser recebido por Suas Excelências do Ministério. O medo de.
Carneiro me ensinou muitas coisas. Mas talvez a principal seja a de não ter medo na hora de defender a Natureza contra as forças e gentes que a ameaçam. Não ter medo de chantagem, de ameaça, ou só de “não ser bem visto”. Onde o benefício de ser ovelha?
Meu amigo e Editor de ((o)) eco Eduardo Pegurier me consola, lembrando-me de que apesar das mudas e coniventes ovelhas há muitos e bons militantes. De fato, refletindo sobre isso listo os jovens que me procuraram nas últimas décadas para se envolver mais na conservação, e que hoje seguem militando, apesar dos custos. Augusto Carneiro calou-se? Não. A sua voz segue viva, nessa minoria talvez nem tão pequena de alguns de nós, que não aceitam ser parte do rebanho de ovelhas do “ambientalismo” brasileiro. Sua vida, que virou livro – Augusto Carneiro: Depois de Tudo, um Ecologista, memorial primoroso da escritora Lilian Dreyer, segue falando. Nosso desafio, lançado por ele, é seguir multiplicando, até que sejamos, se não em maior número que as ovelhas, ao menos tantos que nossa indignação não possa ser ignorada – e espante as ovelhas, mudas mas que apenas se fazem de surdas, para bem longe daqui.
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