Reportagens

Muito além da pesquisa – com Niède Guidon e Anne-Marie

Dentro e fora do Brasil, o nome da arqueóloga Niède Guidon (foto) está associado à teoria de que o homem ocupou o continente americano há 50...

Sérgio Abranches · Marcos Sá Corrêa · Manoel Francisco Brito · Lorenzo Aldé · Carolina Elia ·
4 de março de 2005 · 20 anos atrás

Dentro e fora do Brasil, o nome da arqueóloga Niède Guidon (foto) está associado à teoria de que o homem ocupou o continente americano há 50 mil anos, e não há 15 mil, como acredita a maioria dos cientistas. Mas no Piauí, na região do Parque Nacional da Capivara, onde ela encontrou os vestígios pré-históricos que levaram à formulação da hipótese, ela é muito mais que isso. Chegou como pesquisadora, mas teve que virar guardiã dos sítios arqueológicos para evitar que fossem destruídos pelo que o homem moderno chama de desenvolvimento. Trinta anos depois, apesar da criação dos parques da Capivara e da Serra das Confusões e da Fundação Museu do Homem Americano, Niède ainda não tem condições de ser apenas pesquisadora. Entre uma escavação e outra, tem que expulsar caçadores do parque, proteger as pinturas da depredação de invasores e convencer o governo de que ali não é lugar para assentar sem-terra. No momento, o Incra deseja assentar mil famílias na corredor ecológico que liga os dois parques. Se isso acontecer, ela alerta: acabarão com as pinturas e com a fauna e flora existentes na região. Crime que já estaria consumado se não fosse a presença da arqueóloga no Piauí. Em reconhecimento à sua batalha, Niède Guidon ganhou no dia 2 de março o Prêmio Faz Diferença, entregue pelo jornal O Globo a pessoas que não brincam em serviço. O Eco aproveitou a rara presença dela no Rio de Janeiro e a convidou, junto com a arqueóloga e braço direito Anne-Marie Pessis, para um bate-papo.    

Como está a situação?

Niède: Estamos com todo o lado leste do parque ocupado e estão programando fazer o mesmo com o norte, o oeste e entre os dois parques (Serra da Capivara e Serra das Confusões), na zona que devia ser o corredor ecológico. Porque quando chega a seca na Serra da Capivara nós ficamos sem água. Antigamente, os mamíferos grandes migravam nesta época para a Serra das Confusões através do corredor, mas agora não podem mais. O parque da Serra da Capivara virou uma ilha cercada de gente. Nós estamos tendo que botar água e comida para os animais. Daqui a pouco vai ter um problema genético.

Houve alteração de comportamento?

Niède: Nós espalhamos a comida pelo parque para não concentrá-la em um único lugar. Colocamos milho, mandioca, e banana para os macacos. Esses sim, como são muito parecidos com a gente, ficaram mal acostumados.

São macacos-pregos?

Niède: Tem os pregos, tem aqueles pequeninos,os guaribas, mas dos guaribas nós temos pouco. Agora os pregos são terríveis. Eles já sabem que os carros do parque vêm para trazer comida e se alguém vai para outra região levar comida eles ficam bravos.

Quando começou a ocupação?

Niède: A região foi invadida há cerca de 20 anos e tudo começou quando quiseram abrir uma estrada asfaltada. O pessoal que veio trabalhar na obra ficou por ali. Construíram casas e depois foram abertos vários poços para fornecer água para a cidade. No alto da Serra é um lugar mais fresco do que a cidade, o que aconteceu? Políticos e comerciantes ricos simplesmente chegaram lá e construíram suas casas nos terrenos do governo estadual. Casas com piscina e churrasqueira. Aí vieram os agregados, as pessoas que trabalham para eles.

Quais foram as conseqüências?

Niède: A caça é um exemplo. Quando eles dizem que os pobres caçam para comer não é verdade. Os homens estão caçando para vender para os ricos. Você vende um tatu por 30 reais e com o dinheiro consegue comprar muitos quilos de carne, que é bem melhor do que comer um tatu. Esses caseiros caçam porque no fim de semana a família chega para ficar lá na beira da piscina comendo tatu assado. Eu avisei ao Ibama, mas eles alegaram que para entrar nas casas é necessária uma ordem judicial. Eu chego, dou cem reais para o caseiro deixar eu entrar, abro o congelador e está cheio de tatu.

Mas e os sem-terra?

Niède: Eles inventaram esta história que ali tem mil famílias para assentar. O que sei é que não tem. No máximo tem duzentas. Eles querem assentar os pobres para eles, os ricos que invadiram a área, ganharem o título de propriedade das terras e regularizar a situação. Eu acho esquisito um governo de esquerda regularizar isso. Porque eu que compro e pago o cartório para ter um título de propriedade, e pago os impostos todo ano, estou me sentindo uma cretina. Quem invadiu e nunca pagou imposto agora vai ter tudo. Acho que tinham que exigir pelo menos o retorno social, que pagassem os caseiros um salário mínimo e não deixassem caçar e nem andar armados.

Quantas casas dessas invasões de rico você acha que tem ali?

Niède: Deve ter umas 30 mais ou menos, entre 30 a 40. Agora cada uma não é apenas uma casa, é uma casa com agregados.

Anne-Marie (foto): E dados mostram que essas invasões, e os desmatamentos e queimadas provocados por elas, levaram muitas fontes de água a secar. O Rio Piauí não corre mais. Tudo que é sujeira e lixo eles jogam dentro do rio e das lagoas, aterram e depois fazem as casas em cima. A calha do Piauí esta tomada por casas monumentais de prefeitos e de políticos que constroem dentro do rio. O Ibama um dia foi lá porque eles aterraram parte do leito para construir uma casa de show para 15 mil pessoas.

E tem 15 mil pessoas para assistir a um show?

Niède: Essa é outra questão de todo este problema social do Nordeste. Tenho amigos franceses que vão lá e ficam impressionados. Numa cidade pequena do interior da França você não vê pessoas à noite, durante a semana, nos bares. Eles estão sempre cheios e tem mesinhas na rua pro pessoal ficar bebendo até tarde. Cada um que chega abre o carro equipado com poderosos alto-falantes e liga o rádio no máximo. Um barulho infernal. E as pessoas ficam ali até tarde e no dia seguinte ninguém vai trabalhar. Agora, de onde eles tiram dinheiro para isso?

É a população local rural?

Niède: A população rural praticamente não existe mais, porque ninguém mais quer ficar na zona rural. Os jovens todos querem vir para a cidade. Há oito anos, o Incra assentou 200 famílias na região e deu 15 mil reais para cada uma construir uma casa. A associação dos moradores fechou um contrato com uma empresa de Petrolina que construiu umas casas horrorosas, que não chegam a ter 30 metros quadrados, por 3500 reais e cada família embolsou a diferença. Com o dinheiro elas compraram casas na cidade, carros e motocicletas. Hoje em dia só existem umas 20 famílias que vivem ali. Elas vendem a madeira e pegam o dinheiro da agricultura familiar que elas recebem todo ano para comprar sementes e adubo e não compram nada. Ficam com aquele dinheiro e não plantam nada.

Quantas pessoas existem ali?

Niède: Deve haver mais de cem mil no entorno do parque. O problema é que, com a crise no sul, muitas pessoas que tinham ido para São Paulo e Brasília voltaram para lá e levaram junto costumes da bandidagem, como assalto.   A região também virou rota de tráfico de droga.

Qual tipo de economia daria certo ali?

Niède: Daqui a 10 anos só vai ter deserto, não vai ter nada e o pessoal vai continuar pobre do mesmo jeito. Se o Incra tem tanto dinheiro assim, por que não instala estufas e começa a incentivar o cultivo de plantas ornamentais? Porque a imbecilidade chega a tal ponto que as floriculturas de Teresina vendem cactos bonitinhos, tudo comprado na Holambra de São Paulo. Os cactos vão para lá de avião. O mercado internacional de plantas ornamentais é imenso, na França eles pagam mais de mil euros por um cactos. Mas você fala isso pro pessoal e eles te perguntam: “Mas doutora, quem vai comprar esta porcaria cheia de espinhos?” Por que não fazem para os mais jovens cursos para guias turísticos, cursos para guarda-parques? Ao invés de dar 15 mil reais e todo ano dar o dinheiro da agricultura familiar, por que não dá logo um emprego? Cria emprego para esse pessoal. A Serra das Confusões só tem um funcionário e estão acabando com o tamanduá-bandeira e com os tatus canastra da região. Dentro do parque nacional da Serra da Capivara nós temos hoje uns quatro tamanduás-bandeira e quando eu cheguei lá você cruzava com um a cada 10 minutos.

Quando você chegou na região?

Niède: A primeira vez que estive lá foi em 1970, mas a pesquisa mesmo começou com uma missão oficial em 73, e em 78 nós fizemos uma missão de 6 meses com o pessoal da geologia, da botânica e da ecologia.

Como era a região?

Niède: Quando eu cheguei lá era tudo floresta. A caatinga veio depois.Você tinha caatinga arbórea no planalto. Na planície era tudo floresta pau d´arco e aroeira. O rio Piauí corria, a cidade de São Raimundo tinha uns 10 lagos cheios de garça e pássaros. Eu tenho foto de tudo isso. Nós preparamos toda a documentação e fizemos um levantamento, inclusive fundiário do pessoal que estava na região. Na Serra da Capivara só tinha um pequeno povoado com cerca de cento e poucas famílias. Eles iam lá fazer roça, não moravam ali. Na Serra das Confusões não tinha ninguém. Era completamente vazio, era tudo mata atlântica.

Já havia um processo de degradação?

Niède: Na planície, porque tinha rio e lagoas. Lá no alto, no planalto, onde está a maioria das pinturas rupestres, eles nem tinham entrado ainda. Eles ocuparam aquela região depois da década de 70, com os projetos da Sudene e do Banco do Nordeste. Infelizmente nesses projetos você recebe uma pequena quantia de dinheiro, desmata e aí é que você recebe o grosso do dinheiro.

Conte um pouco sobre a criação do parque.

Niède: Nós fomos para lá com a finalidade de fazer pesquisa. A Serra das Confusões não tinha ninguém. Era tudo vazio, tudo mata atlântica. Enviamos um documento para o governo do estado alertando sobre a importância da região e que seria importante se criar um parque nacional. O governador na época era o Dirceu Arcoverde e lendo o relatório ele descobriu que nas Confusões tinha água, rios, tinha tudo. O que o governo fez? Criou a Serra da Capivara em 1979 e fez doações para políticos e para empresas em direção à Serra das Confusões. Ficou só a Serra da Capivara e a gente começou a trabalhar ali. Pensei que com a criação do parque nacional o problema estava resolvido. Achei que o Ibama da época, o IBDF, ia colocar gente lá, mas passaram-se 3 anos e nada. Não mandaram nenhum funcionário e o pessoal começou a dizer que quem quisesse caçar ou precisasse de madeira era só ir ao parque, porque era do governo, mas ninguém tomava conta. Em 1986 nós criamos a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) para ter uma pessoa jurídica podendo intervir junto a Brasília. Foi daí que começamos a nos ocupar do parque. Mas foi só em 1988, dez anos depois da sua criação, que foi feito o primeiro plano de manejo. A partir de 94 nós passamos a ter uma co-gestão com o Ibama. Mas a história agora é a seguinte: o pessoal do Incra me disse que eles têm mais de 25 milhões para fazer assentamentos na região. Durante o ano de 2004 inteirinho, a chefia do Parque da Serra da Capivara recebeu 40 mil.

Mas qual é a perspectiva?

Niède: Nós conversamos com Brasília e eles estão montando uma comissão interministerial com o ministério do meio ambiente, do desenvolvimento agrário, da agricultura, o Incra e o ministério do turismo. O ministro do turismo inclusive chamou o governador e disse que estava fazendo uma estrada ligando os dois parques para desenvolver o turismo. Em Teresina, um procurador da república e um procurador do meio ambiente mandaram o Incra parar com os assentamentos porque o projeto não foi aprovado pelo Ibama. Houve também uma reunião com o Irphan, porque eles são responsáveis por todos os sítios, e eles também não autorizaram. A questão está parada.

Há diálogo com o Incra?

Niède: O presidente do Incra, que no início tinha saído com uma porção de coisas contra a gente, veio falar comigo que não sabia que a Fundação tinha um projeto social e que tinha gostado muito da idéia das plantas ornamentais. Sugeriu que poderíamos fazer um novo modelo de assentamento e eu disse que, se for assim, nós podemos trabalhar juntos. No corredor ecológico, não é preciso remover ninguém. O problema é que o Incra insiste que a lei mudou e que área de proteção permanente não existe mais porque ela tem que ser definida por um plano de manejo. Como o plano de manejo foi feito em 88, ele expirou e o Ibama nunca mais teve dinheiro para fazer outro.

Você ameaçou retirar as pinturas do parque?

Niède: O ministro da Cultura, Gilberto Gil, convocou um comitê interministerial para decidir se a área seria turística ou uma área de reforma agrária. Eu disse a ele que se for para reforma agrária o pessoal vai destruir tudo. O fogo arrebenta as pinturas rupestres. Como eu vi caçadores brincando de tiro ao alvo com elas, se for realmente para a reforma agrária, eu acho que o melhor que se tem a fazer é tirar as pinturas de lá. O ministério depois decide para aonde levar, eu organizo e o governo tira de lá. Existe tecnologia para isso. Mas aí já disseram que eu estava querendo levar para a França, aquelas coisas. Uma vez a Federação dos Trabalhadores Agrícolas e a Pastoral da Terra organizaram uma passeata com carros de som passando pela cidade dizendo que Deus criou a Terra para os homens, e os animais para os homens comerem. Mas a doutora Niède Guidon não deixa caçar, portanto, ela é contra Deus. Porque Deus fez a Terra para os homens e a doutora Niéde Guidon quer guardar o parque nacional só para os animais. Logo ela é contra Deus. Quem quer guardar o parque nacional sou eu. É como se o parque não fosse uma instituição federal.

Anne-Marie: O que estamos querendo fazer agora, junto ao CNPQ, é um projeto de documentação fotogramétrica dos sitios de pintura rupestre.

Não existe?

Anne-Marie: Não, é caríssimo. Um dos equipamentos custa 30 mil euros. Antes, registrar as pinturas não nos preocupava, mas o fogo começou a estourar tudo. Os assentados queimam pneus embaixo das figuras porque se não tem mais pintura, não tem mais o quê preservar. O problema acaba, ninguém mais vai encomodá-los. O projeto de fotogrametria é fundamental para que este patrimônio exista no futuro.

Niède, você sofre muitas ameaças?

Niède: Não. Agora, por exemplo, nós estamos tentando abrir uma variante do parque nacional que tem sítios importantíssimos. A parede é do parque, mas a terra da frente é particular e uma parte está queimando e vai derrubar todas as pinturas. Fui lá conversar com eles e com alguns entrei em acordo, mas tem aqueles valentes: “ Aqui a senhora não entra porque se entrar eu mato”, é um costume deles, porque se matar não acontece nada, o que é um problema. Mas houve muita ameaça no começo por causa da questão do calcário. No calcário temos muitos sítios e eles pegavam o calcário e queimavam. Calcário é mármore negro. Veja a inteligência da exploração comercial, eles pegavam mármore negro, quebravam e queimavam árvores de lei para transformarem aquilo em cal. Pegavam dois produtos nobres para produzir uma porcaria sem valor. As pessoas trabalhavam em regime escravo e nós denunciamos. Um dia um guia nosso veio me avisar que eles tinham se reunido para juntar dinheiro para contratar um pistoleiro do Mato Grosso para me matar. Aí eu fui à casa de quem eu sabia ser o mandante, levei um talão de cheque meu do Citibank de Nova Iorque, junto com o extrato bancário, e disse: vocês estão vendo isso daqui? É um depósito em dólar nos EUA. Se me acontecer alguma coisa eu tenho uns amigos no Rio que com esse dinheiro vão contratar um pessoal de um lugar chamado Rocinha para virem para cá e acabar com você e toda a sua família. Desde o bebezinho até a mulher. Eu não tenho nada a perder, pode me matar. Ele disse: “Não doutora, nós adoramos a senhora”, e a coisa acabou assim.

Você anda armada?

Niède: Todo mundo lá anda armado, mas eu não ando e mando sempre o meu pessoal andar sem arma. Se nós andarmos armados nós vamos ser presos, os outros não. Eu nunca dou chance para eles nos pegarem descumprindo alguma lei. Só teve uma vez que eu ameacei pegar em arma. Depois das eleições presidenciais, me apareceu um fulano dizendo ser o novo superintendente do Ibama, mas que queria deixar claro que não entendia nada de meio ambiente e que tinha sido nomeado por ser amigo do senador Da Silva. Na Serra da Capivara o cargo sempre foi ocupado por técnicos, não por políticos. Então avisei ao superior dele: se você nomear um político para cá eu já vou avisando que vou me armar e esperá-lo lá dentro do parque. Quando ele chegar, eu mato. Vocês podem pegar todos os cargos do Piauí menos os da Serra da Capivara.

Circulam pessoas armadas dentro do parque?

Niède: Em dezembro prendemos caçadores armados com carabina de 12mm, que é uma arma poderosa, e um monte de bicho morto. Eles tinham chumbo para matar elefante. Mas o que é que acontece? O juiz federal liberou. Veio uma sentença da justiça federal dizendo que, por serem pessoas pobres e miseráveis, a posse de arma não é um crime porque o pobre e miserável precisa de uma arma para poder caçar, que é a única maneira que ele tem de alimentar a sua família. Então é melhor acabar com os parques nacionais e transformar tudo em reservas de caça. Não existe o programa Fome Zero, como é que a única maneira do pobre se alimentar é caçar? Você não tem apoio de nenhuma autoridade, nem da justiça federal. Colocamos para Brasília que estamos gastando o dinheiro público inutilmente, porque eu estou pagando cento e tantos guardas, gastando combustível de motocicletas e carros para prender pessoas que imediatamente serão soltas.

O que vocês fazem quando pegam alguém caçando?

Niède: A gente prende, leva o caçador para cidade e o entrega para o Ibama. Eles anotam, o autuam e ele vai embora. Então para eles tanto faz porque são presos e saem na mesma hora. Ano passado, um grupo foi preso e alegou que estava morrendo de fome. Decidimos então fazer uma experiência. Quando alguém era preso tinha duas alternativas: ser autuado em São Raimundo e pela lei não poder ter empréstimo, ou ficar e trabalhar na conservação das estradas do parque. Se trabalhasse bem, era contratado. Consultei um amigo advogado sobre a legalidade do projeto e ele deu parecer favorável,só sugeriu que eu pagasse um salário mínimo.

E todos aceitaram?

Niède: Ninguém quis ir pra cidade preso. Preferiram ficar e começaram a trabalhar recebendo três refeições por dia. Eu já tinha mais de 20 e poucos contratados quando apareceram mais três caçadores interessados. Na segunda-feira de manhã veio a esposa de um deles, era uma mulata grande e bonita: “A senhora prendeu o meu marido”. ”Eu não prendi , foi ele quem escolheu ir trabalhar”. “Mas ele não pode, ele tem que voltar porque ele tem um emprego e se não for trabalhar hoje vai ser demitido”. Eu perguntei: “O seu marido tem um emprego e estava aqui caçando?“. E ela: “Ele mora em Petrolina, veio passar o fim de semana comigo, mas aí os outros convidaram e ele foi junto”. Eu olhei para ela e disse: “Minha senhora, o seu marido vem passar o fim de semana com uma mulher linda assim e vai para o mato com os homens pra caçar?”. Ela saiu de lá bravíssima e foi falar com o promotor da cidade. Ele desconsiderou o fato de nós sermos uma instituição vinculada ao governo federal e ao Ibama, pegou aquela mulher e mandou a polícia ir imediatamente ao Parque Nacional. Chegando lá, me acusaram de manter pessoas em cárcere privado e em condições subumanas. Não tinha ninguém armado, quem quisesse era só ir embora. Me chateei de tal forma que dispensei todo mundo, acabei com o programa. Azar, ninguém mais ia ter emprego. Ainda estou sendo processada pela crueldade de ter feito eles voltarem a pé para casa à noite, com o perigo de serem atacados por animais ferozes. Quando é para caçar não tem problema.

Quantos processos você já tem?

Niède: Estou com quatro de quatro caçadores que estavam neste grupo, e sabe por quê? Era gente rica. A moça era filha de um comerciante e ela dizia que o marido tinha de estar pronto para a posse do novo prefeito porque ele seria nomeado para um cargo importantíssimo. Avisei ao prefeito que se ele o nomeasse eu entraria com um processo contra ele. Acabou não nomeando.

Como é a mão-de-obra de vocês?

Niède: Nós formamos todos os nossos técnicos. Nosso topógrafo não sabia ler nem escrever e hoje ele trabalha com computadores. A pessoa que cuida das pinturas rupestres se formou em química em São Paulo, fez arqueologia conosco e depois a enviamos para Paris, onde ficou quase 5 anos trabalhando nos laboratórios dos museus da França. Agora, ela é professora em Teresina e forma o nosso pessoal técnico. Com ajuda do Bird, nós desenvolvemos atividades economicamente rentáveis, como a apicultura racional numa região onde não existia. Criamos um centro de tratamento do mel, distribuímos 5 mil colméias, formamos cooperativas e hoje o Piauí é o maior exportador de mel de todo o Nordeste. Depois nós construímos uma oficina de cerâmica, porque a região era tão pobre que não tinha nem artesanato. Os produtos são exportados para o Brasil inteiro. Mensalmente, nós jogamos na cidade cerca de 150 a 200 mil reais. Isso para a economia local é muita coisa. A Fundação levou muita coisa para lá. A universidade é um exemplo. Todos os pesquisadores alugam carros e gastam dinheiro na cidade. Vão fazer pesquisa e ficam por lá.

Vocês inventaram um artesanato em um local que não tinha tradição?

Niède: Os adolescentes fazem os desenhos das pinturas rupestres e vendem, fazem ímãs de geladeira. Os jovens não têm mais a cultura da caatinga, não conhecem nada, e o pior é que o ensino oferecido a eles é muito ruim.

Vocês conseguiram criar uma universidade lá?

Anne-Marie: A faculdade de arqueologia está funcionando no prédio da Fundação e agora eles vão construir em 2005 um campus, que também vai criar mais trabalho na região. A questão é, se pelo menos houvesse uma continuidade de trabalho com o governo. Cada vez que muda o governo mudam-se os técnicos, deveriam mudar os governos, mas não a atividade técnica.

Niède: Nós trabalhamos com o CNPq há mais de 30 anos e antigamente você chegava lá e as pessoas sabiam quem você era, perguntavam pelo projeto. Outro dia cheguei lá e não sabiam quem eu era, falei meu nome, Niède Guidon, e disseram Dona Neide. Agora morri, pensei. Virei Dona Neide.

Se houver uma política de assentamento, o programa de vocês acaba?

Niède: Exatamente, tudo o que foi feito. Dentro do parque nacional temos um investimento de cerca de 20 milhões dólares. Hoje é o melhor parque de pinturas rupestres da América.

E a idéia de tirar as pinturas de lá é pra valer?

Niède: Se a governo federal realmente decidir fazer um assentamento lá, tem que tirar tudo. Porque aquilo acaba em alguns meses. Inclusive a fauna. Outro dia nós pegamos um caçador com 23 tatus. Dezenove eram fêmeas e todas estavam prenhas. Aqui vale tudo, podem matar tudo. Se vier um juiz federal me dizer que pobre para comer tem que caçar, vou perguntar a ele se nós voltamos para o paleolítico.

  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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Comentários 1

  1. peter schofield diz:

    How do I contact Anne-marie Pessis

    I want to know if she has investigated links between Andaman Islanders, Tasmanian Aboriginals and Aboriginals in Brazil 50,000 years ago…

    Second and third wave of Australian Aboriginals is my theory… eastern States and Western Australian.

    [email protected]