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Estudo contraria fala de Bolsonaro sobre fogo na Amazônia

Análise revela que áreas recém-desmatadas e incêndios florestais responderam por 64% das queimadas de 2019 na Amazônia, ao contrário do que afirma o presidente da República

Duda Menegassi ·
5 de agosto de 2020 · 4 anos atrás
Um terço das queimadas que ocorreram em 2019 foram em áreas recém-desmatadas. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Cerca de um terço das queimadas registradas em 2019 ocorreu em áreas recém-desmatadas, ou seja, em terrenos onde foi feita a derrubada da floresta num primeiro estágio, seguida da queima para “limpar” a área e então convertê-la em pasto ou plantação. Os dados são de um estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) que analisou os focos de calor registrados em 2019 para entender onde eles ocorreram e tipificar a queima. A pesquisa contraria a fala do presidente Jair Bolsonaro feita na sua live no dia 16 de julho que afirma que 90% dos incêndios ocorrem em áreas já desmatadas. Somados, os focos em áreas recém-desmatadas e em florestas nativas responde por 64% das queimadas em 2019 no bioma.

Gráfico feito pelo Observatório do Clima com os dados do estudo. Fonte: IPAM

A pesquisa também evidencia o equívoco de outra fala de Bolsonaro, na qual culpabiliza indígenas e ribeirinhos pelas queimadas na Amazônia. “O indígena que é o nativo, o caboclo, o ribeirinho, ele faz constantemente isso [fogo]”, disse na mesma live. Diferente do que afirma o presidente, o estudo do IPAM revela que a maior parte dos focos de calor se concentram em imóveis rurais e são motivados pelo manejo agropecuário. Apenas no 1º semestre de 2020, os imóveis rurais de médio e grande porte responderam por metade de todos os focos de calor detectados.

A nota técnica do IPAM analisou focos de calor na Amazônia entre janeiro de 2016 a junho de 2020.

Ao longo do ano de 2019, o monitoramento de queimadas do INPE contabilizou 89.176 focos de calor na Amazônia brasileira. Destes, 30.253 focos ocorreram em área de desmatamento recente, o equivalente a 34% do total. O número ficou apenas um pouco atrás do número de focos registrado em áreas já estabelecidas da agropecuária, onde o fogo é usado para manejo, renovação do pasto e eliminação de pragas em gramíneas. As queimadas em zonas consolidadas de agropecuária corresponderam a 36% dos focos, com 31.289 registros.

Os incêndios florestais, quando o fogo entra em uma área de vegetação nativa, responderam por 26.146 dos focos de 2019, 30% do total. Uma das autoras do estudo e pesquisadora do IPAM, Ane Alencar, destaca a força deste tipo de queimada no ano passado. “Ao contrário de 2016 e 2017, anos mais quentes e secos do que o normal para a região, 2019 apresentou uma quantidade de chuvas normais. Mesmo assim, mais de 26 mil focos de calor avançaram sobre a vegetação nativa, muitas vezes escapando de uma queimada vizinha”, pontua Alencar.

Onde ocorreram as queimadas

Os imóveis rurais foram a categoria fundiária que mais queimaram na Amazônia em 2019, e respondeu por 27.178 focos, sendo quase metade deles (13.298) fogo para manejo agropecuário. Já em assentamentos rurais, onde foram registrados 18.620 focos, a maioria deles – 7.862 focos, cerca de 42% – teve origem em áreas de desmatamento recente.

A terceira categoria fundiária que mais queimou foram as florestas públicas não destinadas, um já conhecido alvo de grileiros, que somaram 15.255 focos, sendo 7.103 focos, o equivalente a 46,5% em áreas de desmatamento recente. Incêndios florestais corresponderam a 5.467 focos (35,8%), e manejo agropecuário responderam por 2.685 (17,6%).

Terras Indígenas registraram mais de 6 mil focos de calor em 2019. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Em Terras Indígenas foram 6.103 focos de calor. Destes, 4.051, o equivalente a 66,4% dos focos, foram incêndios florestais. Em desmatamentos recentes foram registrados 1.087 focos (17,8%) e de manejo agropecuário 965 (15,8%).

Já em unidades de conservação foram calculados 5.686 focos de calor ao longo de 2019. Os incêndios florestais responderam por 2.368 focos (41,65%) e os desmatamentos recentes por 2.109 (37,1%).

“As terras indígenas e as unidades de conservação também mostraram alta incidência de incêndios florestais, demonstrando sua vulnerabilidade ao fogo que escapa das áreas recém ou previamente desmatadas na vizinhança”, pontua a Nota Técnica do IPAM.

Análise do 1º semestre de 2020

O estudo também fez um análise dos primeiros 6 meses de 2020, período no qual o Programa Queimadas, do INPE, detectou 7.903 focos de calor na Amazônia. Destes, o estudo descartou 203 focos associados a outros tipos de cobertura de solo, como áreas urbanas e mineração. Dos 7.700 então considerados, 57% corresponderam a áreas de manejo agropecuário; 35% aos incêndios florestais; e 7% a desmatamentos recentes.

Em comparação ao primeiro semestre de 2019, quando foram registrados 10.384 focos de calor, houve uma queda de 25% na incidência de fogo em 2020, mas a Nota ressalta que essa diminuição apenas mascara a situação real.

“Quando analisada a distribuição dos focos de calor e dos tipos de fogo por estado, fica nítido o papel de Roraima em desviar para cima os números do primeiro semestre de 2019. Roraima é muito afetado por incêndios florestais e, diferentemente dos outros estados da Amazônia, quando o pico das queimadas ocorre entre agosto e setembro, seu pico acontece entre janeiro e março. Em 2019, aquele estado apresentou uma incidência extraordinariamente alta de focos de calor, o que puxou os números de fogo do primeiro semestre para cima, representando o semestre com maior detecção de fogo dos últimos vinte anos (cerca de 4.602 focos). Em 2020, o número de focos de calor para o estado voltou à normalidade”, esclarece a Nota.

Todos os outros estados tradicionalmente campeões do desmatamento – Pará, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia – tiveram aumento de queimada nos primeiros seis meses de 2020, quando comparados com o mesmo período do ano anterior.

Nos primeiros seis meses do ano, a categoria fundiária que mais queimou foram os imóveis rurais, que responderam por 60% dos focos. Destes, cerca de 50% foram em imóveis com mais de 4 módulos rurais. Ou seja, metade do que queimou no 1º semestre de 2020 ocorreu em terrenos de médio e grande porte, e não por causa de índios, ribeirinhos e do pequeno produtor, como havia afirmado Bolsonaro na sua live do dia 16/07.

As Terras Indígenas responderam por 12% dos focos no período; seguidos pelos assentamentos rurais, com 11%; e pelas florestas públicas não destinadas, com 7%. As unidades de conservação registraram apenas 1% dos focos do semestre.

Gráfico mostra número de focos por categoria fundiária na Amazônia. Fonte: IPAM, a partir dos dados do Inpe e Nasa

A predominância dos imóveis rurais nos pontos de queimadas demonstram como o fogo é ainda amplamente utilizado no manejo de pastos e áreas agrícolas. “O fogo é um instrumento bastante disseminado nessa paisagem, aplicado frequentemente por pequenos, médios e grandes produtores rurais no manejo agropecuário e em áreas recém-desmatadas”, aponta o estudo.

O estudo reforça também que é incontestável a relação fogo e desmatamento, “a queimada é o passo seguinte da derrubada”. E destaca que ainda há uma grande área, de cerca de 4,5 mil km², que foi desmatada no ano passado na Amazônia e ainda não queimou e estaria “disponível” para queima este ano. “Acrescida ao desmatamento que aconteceu neste ano, o potencial de fogo de desmatamento é alto, tanto ou mais do que o registrado no ano passado, e que ainda não aparece porque ele ganha força entre julho e outubro”, alerta.

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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