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Justiça Federal determina expulsão de invasores de terra indígena no Pará

A TI Alto Rio Guamá passou por desintrusão em 2023, mas voltou a ser invadida no último domingo; no início do mês, falso juiz reuniu população e mentiu sobre “direito de retorno”

Gabriel Tussini ·
28 de março de 2024

A Justiça Federal determinou, na noite de ontem (26), a saída dos invasores não-indígenas da Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), no nordeste do Pará, a cerca de 250 km de Belém. Quase um ano após a desintrusão da área, realizada em maio do ano passado, cerca de 20 famílias retornaram à área no último domingo (24). A decisão atende a pedido feito pelo Ministério Público Federal (MPF) na segunda (25). O órgão ainda recomendou ao governo do Pará que requisite ao Ministério da Justiça a prorrogação da permanência da Força Nacional na região por pelo menos 180 dias.

Duas semanas antes, no dia 9, um falso juiz, que se identificou apenas como “Dr. Sampaio”, lotou o ginásio de uma escola em Nova Esperança do Piriá (PA), cidade vizinha à TI, para espalhar a mentira de que as pessoas teriam “direito ao retorno”, o que fez as tensões entre indígenas e não-indígenas aumentarem. As mentiras do falso juiz continuam se disseminando pelas redes sociais, segundo o MPF. A Polícia Federal trabalha para identificar o homem. A decisão judicial pela desintrusão da terra indígena, por sinal, é definitiva, transitada em julgado e sem possibilidade de reversão.

As famílias que voltaram a invadir o território nesta semana, inclusive com a presença de crianças, entraram pela localidade conhecida como Vila Pepino, na margem oeste da terra indígena e vizinha a Nova Esperança do Piriá, se instalando numa escola abandonada. No outro lado da TIARG, na localidade do Pedrão, agentes da Força Nacional que patrulhavam a área barraram outros invasores. Pela decisão da juíza federal Mariana Garcia Cunha, inclusive, a intimação dos invasores que deverão ser expulsos será feita pela própria Força Nacional, com apoio operacional da Polícia Federal.

A juíza, da Vara Federal Cível e Criminal de Paragominas (PA), determinou ainda que a FUNAI tome “providências imediatas” para a proteção do território e que apresente, dentro de 10 dias, um cronograma de ações para a área “com previsão de prazos, providências, agentes e recursos destinados a tanto, mediante consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas”. E, para atender as famílias anteriormente expulsas, inclusive as que retornaram, a decisão intimou o INCRA a incluí-las em programa de reforma agrária, prestando informações sobre o andamento dos trabalhos em 10 dias.

A Terra Indígena Alto Rio Guamá é habitada por aproximadamente 2500 indígenas das etnias tembé (em maioria), timbira e ka’apor. No ano passado, cerca de 700 famílias não-indígenas se retiraram voluntariamente durante a ação de desintrusão do governo federal. Ao mesmo tempo, foi elaborado um Plano Integrado de Desintrusão, que previa ações de órgãos públicos na região. A FUNAI, pelo plano, deveria monitorar o interior da TI para identificar o possível retorno de invasores, retirando-os. Já o INCRA deveria reassentá-las em outras áreas, dando apoio logístico e liberando crédito. 

Imagem de satélite da TI Alto Rio Guamá. Fonte: Google Earth e FUNAI

Em reunião com o MPF do Pará, lideranças da TIARG relataram descontentamento com o papel da FUNAI no território após a desintrusão do ano passado. Segundo eles, a autarquia não está promovendo a segurança da TI, não está incluindo os indígenas na tomada de decisões e nem está levando em conta as suas sugestões, como a instalação de guaritas e postos de fiscalização. Já o INCRA, em resposta a uma recomendação do MPF que demanda o cumprimento do Plano de Desintrusão, afirmou ter identificado 706 pessoas aptas a entrar no Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), mas que “até o momento tais ações não foram levadas adiante”, narrou o MPF na ação protocolada na segunda.

De acordo com os procuradores, a inação do INCRA “tem acentuado a pressão de reocupação sobre a TI”. Na citada recomendação, de outubro do ano passado, o MPF alertou para a situação dos desintrusados, que “não têm para onde ir e carecem de recursos financeiros suficientes para assegurar sua própria subsistência”, passam por “ausência de atendimento de necessidades básicas” e “privação alimentar”. Nesse contexto, “a presidente da Associação dos Agricultores Rurais que foram retirados da TIARG […] relatou que não foi mais possível conter mais os agricultores”, narrou o órgão, na ação contra a última invasão.

Histórico de invasões e atividades ilegais

A Terra Indígena Alto Rio Guamá é a última grande área de floresta amazônica primária do nordeste do Pará. O território foi reconhecido em 1945, mas demarcado apenas nos anos 1970 e com a homologação vindo apenas em 1993. Os anos 1970 foram a época de maior número de invasões à área. A principal delas começou em 1974, quando o fazendeiro polonês Mejer Kabacznik, dono de terras na margem leste, invadiu uma área de 9,2 mil hectares no interior do território.

Em 1976, a FUNAI autorizou o fazendeiro a construir uma estrada atravessando a reserva, ligando sua fazenda à vila de Livramento, na margem oeste. Isso acabou sendo o motor de mais invasões, que passaram a tomar conta da região central da TI. Em 1988, durante o governo Sarney, o Ministério da Reforma Agrária, então comandado pelo paraense Jader Barbalho, criou vilas agrícolas no meio do território, o que incentivou mais invasões – essa divisão acabou sendo anulada e a terra indígena integralmente homologada em 1993.

Já a reintegração de posse da Fazenda Mejer – alvo de ação judicial da FUNAI em 1978 – foi determinada em 1996 e cumprida apenas em 2014, em decisão muito comemorada pelos indígenas. “Nosso povo está em festa”, resumiu à época Puyr Tembé, liderança do povo tembé e atual secretária estadual dos Povos Indígenas do Pará. Na área invadida, em 2004, o Ministério do Trabalho chegou a flagrar 37 trabalhadores em condições análogas à escravidão – o que levou à inclusão do fazendeiro Samuel Kabacznik, herdeiro de Mejer, na edição de dezembro de 2013 da Lista Suja do Trabalho Escravo.

A TI Alto Rio Guamá está inserida no Mosaico Gurupi, junto com outras 5 terras indígenas e uma reserva biológica, todas do outro lado da divisa com o Maranhão – as Terras Indígenas Caru, Alto Turiaçu, Awá, Araribóia, Rio Pindaré e a REBIO Gurupi. Apesar da pressão de invasores, as áreas protegidas são uma barreira à pressão do desmatamento, que já atingiu todo o entorno das unidades. No Centro de Endemismo Belém, região que engloba 62 municípios do Pará e 85 do Maranhão e onde o mosaico está inserido, 76% da vegetação original já foi desmatada. Dentro na TIARG, o desmatamento já atingiu mais de 1/3 da área demarcada.

O mosaico conta com grande sociobiodiversidade, numa área total de 17,9 mil km² e área de influência que alcança 46,4 mil km². Atualmente, a Terra Indígena Alto Rio Guamá sofre com a pressão da exploração madeireira, da pecuária bovina e até do tráfico de drogas, que utiliza parte do território para plantar maconha. A situação de conflito entre indígenas e não-indígenas, atenuada pela desintrusão do ano passado, continua tendo novos capítulos.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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