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Liminar retira 80% da área do Parque Nacional da Serra de Bodoquena

Criado em um território único, uma área de transição entre Cerrado e Pantanal e de influência do bioma Mata Atlântica, demora na regularização fundiária embasou a decisão

Daniele Bragança ·
31 de julho de 2019 · 5 anos atrás
Parque Nacional da Serra da Bodoquena. Foto: Edivaldo Souza/Wikiparques.

Criado em setembro de 2000 entre os municípios de Bonito, Jardim, Bodoquena e Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena perdeu 80% da área na semana passada, por decisão da 4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande.

O Parque Nacional da Serra da Bodoquena foi criado em 2000 após intensa campanha para proteger seu território único, uma área de transição entre Cerrado e Pantanal e de influência do bioma Mata Atlântica. A combinação dessa transição resultou em uma larga diversidade de espécies de plantas e animais que o tem como lar. É habitat de mais de 35 espécies de mamíferos terrestres, 14 de morcegos, 39 de anfíbios, 26 répteis, 41 peixes e 353 aves. Também protege as nascentes dos rios da região, com destaque para os rios translúcidos que cortam Bonito, e que tornaram a cidade símbolo do ecoturismo no Brasil.

Corta para 2019.

Após 19 anos da criação do Bodoquena, apenas 18% dos produtores rurais foram indenizados. Este foi o argumento principal para a perda da validade do decreto que criou a unidade. De acordo com o magistrado, Pedro Pereira dos Santos, da 4ª Vara Federal de Campo Grande, o parque deixa de existir nas glebas que não foram expropriadas, que voltam a ser propriedades rurais de posse privada. Com isso, a unidade de 76.481 hectares passará a ter 14 mil hectares.

A decisão ainda não é definitiva e cabe recurso.

“Salta aos olhos o engano daqueles que asseveraram que os autores pretendem extinguir o Parque Nacional da Bodoquena. O que pretende a parte autora é a declaração da caducidade de um Decreto. E não há se falar em extinção do Parque: só se acaba com o que existe e para que o Parque exista, nas dimensões declinadas no Decreto, é necessário que a União, atenta e obediente ao que diz a Carta, pague previamente os proprietários atingidos”, escreveu o magistrado na decisão.

Mapa regularização fundiária – Parna de Bosoquena/ICMBio.

Ainda de acordo com a liminar, a União, o Ibama e ICMBio não podem mais indeferir projetos de manejo de exploração das propriedades e não podem mais multar sob o pretexto de que a área é integrante do Parque Nacional da Serra de Bodoquena.

Decisão abre precedente 

Para a Fundação Neotrópica do Brasil, organização criada em 93 com o objetivo de lutar pela criação de unidade de proteção integral na região de Bodoquena, o argumento acatado pelo magistrado ignorou o estágio atual da regularização fundiária na unidade.

Segundo a ONG — que faz parte do conselho consultivo do parque — a regularização fundiária estava caminhando, principalmente com o uso da Compensação de Reserva Legal, quando um proprietário que possui um passivo na reserva legal compra propriedades dentro de unidades de conservação e doa para o órgão gestor, de modo que seu passivo deixa de existir. Esse mecanismo foi instituído pelo Código Florestal e é uma das apostas do ICMBio para diminuir o imenso passivo fundiário das unidades de conservação sob sua gestão.

“Quase toda unidade de conservação tem problema fundiário e essa decisão abre um precedente imenso para que outras unidades sejam diminuídas”, diz Rodolfo Portela Souza, superintendente-executivo da Fundação Neotrópica.

Segundo dados sobre a regularização fundiária apresentados pelo ICMBio no conselho da unidade, cerca de 14.072 hectares do parque já estão regularizados e aproximadamente 6.577 hectares correspondem a áreas já habilitadas para compensar Reserva Legal (com Certidão de Habilitação), incluindo neste total áreas já negociadas, mas que ainda não foram doadas para o ICMBio. Um total aproximado de 9.177 hectares corresponde a áreas de propriedades que não tem impedimentos conhecidos para ingressar com processos de regularização fundiária (inclusive de compensação de reserva legal), mas ainda não o fizeram por falta de interesse ou outros motivos desconhecidos.

Porém, o restante das propriedades possui problemas para realizar a regularização fundiária, mesmo que o ICMBio possuísse o dinheiro para desapropriar. Por exemplo, cerca de 9.940 hectares da unidade possuem problemas de sobreposição de propriedades. Cerca de 36.710 hectares correspondem a áreas com algum impedimento documental que não permite o avanço do processo de regularização fundiária, como processos de disputa judicial pela sua propriedade, ou um simples ônus na matrícula por conta da contração de empréstimos bancários que utilizam as áreas das fazendas como garantia.

A reportagem de ((o))eco entrou em contato com a assessoria de imprensa do ICMBio para falar sobre regularização, mas até o momento não obteve resposta.

Adeus ICMS Ecológico

A decisão em favor dos sindicatos rurais de Porto Murtinho, Bonito, Jardins, Miranda, autores da ação, pode ser uma notícia ruim para as prefeituras desses municípios, que deixarão de receber ICMS Ecológico repassado pelo estado para municípios com unidades de conservação.  Só no ano passado, as prefeituras receberam um repasse de R$ 12,4 milhões por causa de Bodoquena. Segundo a Neotrópica, esse montante foi destinado a gastos com saúde e educação.

 

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  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

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Comentários 5

  1. José Carlos diz:

    Quem tem mais do que 2 neurônios irá somar 48% + 13% e verá que a regularização não anda ou por sobreposição de propriedades ou por documentação falha.


  2. clovis borges diz:

    Essa liminar representa nada mas do que uma fuga para o atendimento de uma demanda de interesse público. Evita o enfrentamento do problema, que é o de buscar os meios para efetivar a indenização das áreas que estejam legalizadas. Ademais, uma proporção significativa das terras não tem documentação, o que desmente a alegação de que o responsável pelo atraso é apenas o governo. Recursos de compensação ambiental existem e vem sendo gastos em ações de relevância secundária. A falta de vontade política para resolver essas pendências é histórica, e recrudesce de forma indevida, na atual gestão federal.


  3. darcy diz:

    Parabéns à Justiça Federal, pela decisão


    1. Carlos Magalhães diz:

      Certíssima a decisão da juíza. Apenas 18% dos proprietários foram indenizados, quando a lei manda a indenização prévia e em dinheiro!

      Isto chama-se, simplesmente, apropriação indébita, absoluto descaso para com a propriedade particular. Assim é fácil criar UC's.


  4. Flávio Zen diz:

    Terrível para a conservação, mas a demagogia dos parques de papel realmente precisa ser revista e o preço é carissimo. Quando se constata o nível de desvio de recursos públicos por corrupção a níveis sem precedentes mesmo internacionalmente na Era PT, não há argumentos contra "19 anos da criação do Bodoquena, apenas 18% dos produtores rurais foram indenizados".
    A postura de demonização do produtor rural somado ao desprezo à cidadania ante ditaduras burocráticas confirma as tragédias anunciadas e na prática, deveria ser uma reflexão importante para a conservação brasileira, afinal, parques de papel são uma realidade trágica que só servem como cortina de fumaça para a "resistência". Triste.