Uma das figuras mais carismáticas da fauna amazônica vive debaixo da água doce dos rios, os botos. Apesar de não serem bichos pequenos – o boto-cor-de-rosa, por exemplo, mede cerca de 2,5 metros – nem particularmente discretos por onde passam, ainda existem lacunas importantes sobre a ocorrência e ecologia dos botos na bacia amazônica. Após um esforço de 12 anos de levantamento de dados, através de idas a campo e pesquisa bibliográfica, e também com uma contribuição essencial de depoimentos de ribeirinhos e comunitários, pesquisadores conseguiram trazer novas peças para este quebra-cabeça, com a comprovação de novas populações de três espécies de botos do estado do Amapá.
O estudo foi conduzido por cinco pesquisadores em uma parceria entre WWF-Brasil, Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA) e foi publicado no dia 12 de julho no periódico científico Aquatic Mammals, especializado em mamíferos marinhos.
O trabalho dos pesquisadores mapeou a existência de botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), tucuxis (Sotalia fluviatilis) e botos-cinza (Sotalia guianensis) ao longo de uma extensão de 4.224 quilômetros de rios no Amapá, em uma região onde não havia confirmação sobre a existência desses animais.
Dentre as descobertas, uma foi particularmente intrigante: a presença de botos no rio Cassiporé, um curso d’água isolado no extremo norte do estado, sem conexão continental com outros rios, e deixou os cientistas com a pergunta “como eles chegaram lá?”. “Acreditamos que em épocas de grande vazão do rio Amazonas tenha sido possível uma migração destes animais por uma região próxima à costa onde, durante esses períodos, forte fluxo de água doce forma a pluma do rio Amazonas”, aponta Marcelo Oliveira, especialista em conservação do WWF Brasil e um dos autores do estudo.
A região amazônia mantém a maior população conhecida de botos do mundo, a maior parte deles no Brasil, e Oliveira explica que as estimativas populacionais, estudos ecológicos e genéticos de diversas regiões da Amazônia são ferramentas essenciais para orientar as estratégias de conservação, manejo e desenvolvimento sustentável especialmente frente ao momento de expansão que vive o estado do Amapá.
“A descoberta da existência da espécie em uma área muito maior do que se esperava reforça que ainda há muito a se descobrir sobre a Amazônia. O conhecimento da distribuição geográfica das espécies é fundamental para responder a muitas questões ecológicas e sustenta o manejo de conservação eficaz”, afirma o pesquisador da WWF.
Outras incógnitas permanecem a ser reveladas sobre a ecologia destas populações. “Ainda precisamos entender como é a relação desses animais com o mangue e se eles seguem migrando para outros rios pelo mar”, afirma Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá e uma das autoras do estudo.
Apesar da informação sobre a ocorrência dos botos no Amapá ser nova para a ciência, os moradores da região já sabiam da existência dos animais. “O conhecimento dos povos tradicionais é um dos pontos que utilizamos neste projeto e os relatos apontados por eles quase sempre se confirmam no campo. Tudo é novo, pois não havia nada publicado sobre estes animais naquela região; estamos escrevendo a história dos mamíferos aquáticos do Amapá agora”, continua Marmontel.
De acordo com o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (2018), levantamento realizado pelo ICMBio, duas espécies de boto mapeadas pelo estudo estão sob algum grau de ameaça. A mais preocupante é o boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), considerada Em Perigo, seguida pelo boto-cinza (S. guianensis), classificada como Vulnerável. O tucuxi (S. fluviatilis) é o único que está mais distante do perigo, mas ainda assim sob o status de Quase Ameaçada.
Na região central do Amapá, na bacia do rio Araguari, a construção de três hidrelétricas, entre outros fatores, isolou populações e mudou a vazão do rio, com o fim da pororoca, fenômeno natural movido pelas marés que ocorre no encontro entre rio e mar, com a formação de grandes ondas. Presos entre as barragens, os grupos de botos-cor-de-rosa identificados ali devem desaparecer com o tempo.
“Tudo que fazemos gera impacto para a natureza em geral. E temos influenciado os botos diretamente, especialmente ao construir essas grandes estruturas, barragens, pois impedem o acesso deles e mudam a dinâmica dos rios na região. E não sabemos como isso afeta a capacidade de sobrevivência de longo prazo dos botos”, explica a pesquisadora do Instituto Mamirauá.
Outras ameaças às espécies é o cultivo de búfalos na região, que alteram a paisagem hidrológica da região com o pisoteamento de diversas áreas, e o garimpo e o acúmulo de metais pesados, como o mercúrio, nos botos. “O mercúrio é um metal que vai se acumulando na cadeia alimentar e se concentra nos botos por serem animais topo de cadeia. Não há clareza de como isso pode prejudicar a vida deles e precisaremos entender isso o quanto antes. Nos homens, este metal afeta a capacidade neurológica e é a causa de várias outras doenças”, comenta Marmontel.
“O Amapá é considerado a nova fronteira econômica da Amazônia, notadamente devido à expansão agrícola, instalação de barragens, e à extração potencial de óleo e gás natural. Essas e outras atividades, como a pecuária extensiva de búfalos e o garimpo, que vêm ocorrendo desde o século 19 no estado, afetam negativamente o ambiente e impactam habitats aquáticos essenciais para mamíferos aquáticos”, apontam os pesquisadores no artigo.
“Apesar da grande pressão e ameaças que existem na região, ainda há tempo para entendermos os impactos e o que podemos fazer não só para garantir um desenvolvimento sustentável para a região como também para que possamos proteger estas espécies e os rios da Amazônia”, acredita o pesquisador da WWF, Marcelo Oliveira.
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