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Um ano da vitória gaúcha contra a Mina Guaíba

Sem consulta à comunidades guarani, projeto do que seria a maior mina de carvão a céu aberto do País completa um ano de arquivamento e configura grande vitória da sociedade gaúcha

Michael Esquer ·
15 de março de 2023 · 1 anos atrás

O arquivamento do processo de licenciamento do empreendimento que ficou conhecido como Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul, completou um ano nesta terça-feira (14). De impactos à comunidades guarani e ribeirinhas até a moradores da região metropolitana de Porto Alegre, o projeto do que seria a maior mina de carvão a céu aberto do País mobilizou diversos setores da sociedade gaúcha em torno de um desejo comum: barrar o empreendimento. 

O plano da Copelmi, empresa responsável pelo empreendimento, era instalar a mina para extrair carvão mineral, areia e cascalho de uma área junto ao rio Jacuí, entre Eldorado do Sul e Charqueadas, que fica a apenas 16 quilômetros de Porto Alegre. Com investimento chinês e norte-americano, o projeto tinha como expectativa a extração de 166 milhões de toneladas de carvão, ao longo de 26 anos de operação, como indica o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do projeto da Mina Guaíba.

O coordenador do Coletivo Não Mina Guaíba, o ativista John Wurdig, conta que por conta da área de 4,3 mil hectares a Mina Guaíba seria considerada a maior mina de exploração de carvão a céu aberto do Brasil. “A região é reconhecida pela grande diversidade biológica, pois contempla os biomas Pampa e Mata Atlântica”, diz ele sobre a localização do empreendimento. 

A ((o))eco, Wurdig conta como foi a mobilização social que se formou contra o projeto da mina. O ativista relembra que o empreendimento teve o EIA/RIMA apresentado para a sociedade gaúcha em apenas duas audiências públicas: uma em Charqueadas (RS) e outra em Eldorado do Sul (RS), sendo o processo de contribuições e sugestões encerrado em 2019 pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (Fepam). 

“Diante disso, ativistas ambientais, professores universitários, lideranças ambientais, agentes públicos e lideranças da comunidade indígena Mbya Guarani se uniram especialmente através do Comitê de Combate a Mega Mineração para tornar público as fraudes e omissões no EIA/RIMA deste empreendimento”, conta. 

Ele relembra que ao todo foram mais de 50 reuniões, audiências e apresentações sobre os riscos que o projeto poderia trazer para o meio ambiente e a saúde pública da sociedade gaúcha. “Este processo foi uma das maiores mobilizações no Rio Grande do Sul, para barrar legalmente um empreendimento na área da mineração de carvão, que não identificou nos estudos ambientais a população indígena da Aldeia Guajayvi da cultura Mbya Guarani”, relata. 

E foi justamente por esse motivo que a Justiça Federal determinou, em fevereiro do ano passado, a anulação do processo de licenciamento ambiental do projeto do empreendimento, como mostrou ((o))eco. Essa decisão também pesou para o arquivamento do projeto pela Fepam, o que aconteceu um mês depois.

Duas audiências públicas foram realizadas antes do processo de licenciamento do projeto Mina Guaíba ser arquivado. Foto: John Wurdig

A decisão da Justiça atendeu a pedidos da Associação Indígena Poty Guarani, da Associação Arayara de Educação e Cultura, do Conselho de Articulação do Povo Guarani e da Comunidade da Aldeia Guarani Guajayvi, que ingressaram com uma ação civil pública contra o projeto em 2019. Na ação, foram réus tanto a Fepam quanto a Copelmi, empresa responsável pelo projeto da mina, e também a Funai, que foi acusada de omissão. 

“A Mina ia ser construída em cima de territórios de povos indígenas Guarani Mbya, que não foram consultados nem incluídos no processo de licenciamento ambiental, uma demonstração de racismo ambiental que os povos originários infelizmente vivenciam diariamente no Brasil”, disse, na época, o coordenador político da Arpinsul (Articulação dos Povos Indígenas do Sul), Marciano Rodrigues, do povo Guarani.

A importância da consulta às comunidades indígenas

A ((0))eco, a gerente institucional e consultora de advocacy do Centro Brasil no Clima (CBC), Carminye Xavier, comenta o desrespeito do projeto Mina Guaíba à portaria ministerial nº 60/2015, que define que empreendimentos pontuais com atividades de mineração precisam obrigatoriamente incluir a temática indígena com a elaboração do Termo de Referência (TR). 

Esse documento, diz ela, deve conter as considerações gerais e demais posições específicas junto à Funai. “Abarcam neste estudo a identificação, a localização e a caracterização dos territórios, grupos, comunidades étnicas remanescentes e aldeias existentes em uma área de até 8 km do entorno do empreendimento, fato que foi ignorado no projeto da Mina Guaíba, pois a aldeia Mbya Guarani Guajayvi estava apenas 3 km”. 

Xavier enfatiza que a consulta às comunidades afetadas por empreendimentos como o projeto Mina Guaíba é importante primeiro porque está estabelecida pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, e segundo porque é dever do Estado. “Deve ser de boa-fé e prévia às medidas legislativas e administrativas suscetíveis de afetar os povos indígenas, quilombolas e tradicionais”, explica.

Ela conta que no Brasil empreendimentos do setor da mineração têm ignorado sistematicamente essas populações, que muitas vezes só tomam conhecimento dos projetos quando estes, já com a licença ambiental, começam a operar nas áreas mineradas em seus territórios. “Quando as populações se apropriam desse direito, elas conseguem apresentar suas reivindicações nos processo de licenciamento ambiental de empreendimento próximos às suas comunidades”, enfatiza.  

Por não ouvir comunidades guarani, Justiça Federal determinou a anulação do processo de licenciamento ambiental do projeto Mina Guaíba. Foto: Arquivo pessoal/John Wurdig

As outras ameaças

Além da anulação do processo pela Justiça Federal pela ausência de consulta às comunidades guarani, também pesou na decisão da Fepam pelo arquivamento do projeto do empreendimento os estudos não satisfatórios apresentados para o licenciamento ambiental; e os dados complementares não conclusivos e satisfatórios apresentados na versão atualizada do EIA/RIMA, conforme aponta parecer técnico da própria Fepam.

O ativista acredita que a estratégia para evitar a identificação de inconsistências nos estudos ambientais foi a de acelerar o processo. Segundo ele, a Copelmi informava no site da Mina Guaíba que seriam necessários apenas seis meses para a obtenção da Licença Prévia (LP). “Um tempo recorde no estado para um empreendimento deste porte”, diz Wurdig. “A estratégia foi de impedir que os erros e as falhas dos estudos ambientais fossem encontrados, estabelecendo um período de consulta reduzido”, acrescenta. 

Se não fosse pelo arquivamento do projeto, a mina poderia iniciar suas operações ainda neste ano, impactando direta e indiretamente a Aldeia Guajayvi, dos Mbyá Guarani, além de impactar também a população da Grande Porto Alegre, como é chamada a região metropolitana da cidade. “Este mega empreendimento ficaria distante apenas 16 km do Centro da Capital Gaúcha, iria impactar a vida de aproximadamente 4,2 milhões de pessoas”, comenta o ativista.

Esse impacto, diz ele, seria sentido de forma aguda na qualidade do ar por conta das explosões para extração do carvão mineral. Sem contar os riscos da contaminação dos recursos hídricos da bacia hidrográfica do Lago Guaíba. “Haveria a construção de um grande lago para os rejeitos de mineração de carvão, pois no projeto estava previsto o rebaixamento de lençol freático e a transposição de dois arroios (pequena corrente de água)”, conta Wurdig. 

Se houvesse o rompimento deste dique, por exemplo, a água contaminada com efluente extremamente ácido e com metais pesados, como mercúrio, poderiam contaminar a água para consumo humano de mais de 2,5 milhões de pessoas. “Nesta região que fica às margens do rio Jacuí também há uma população de mais de 800 pescadores artesanais que seriam diretamente prejudicados”, explica o ativista.

Localização do projeto Mina Guaíba. Foto: Coletivo Não Mina Guaíba

Esperança para o meio ambiente

O Rio Grande do Sul possui cerca de 80% do carvão mineral do país, o que o torna a maior reserva desse tipo de combustível fóssil do Brasil. O coordenador do Coletivo Mina Guaíba Não conta que no estado essas reservas possuem baixo poder calorífico, alto teor de enxofre, com metais pesados “que após queima resulta em quase 50% do seu volume em resíduos de cinza de carvão”. 

Nesse contexto, Wurdig conta que o movimento contra o projeto Mina Guaíba revelou a força da sociedade gaúcha e mostrou que a mobilização social associada ao conhecimento técnico é capaz de frear empreendimentos que trazem riscos de poluição e contaminação ambiental. “Especialmente, os relacionados à mineração e queima de carvão mineral, visto que há forte pressão no Rio Grande do Sul para projetos como este”, enfatiza.  

O cenário de transição energética justa e sustentável, conta o ativista, parece começar a cativar a crendice da sociedade gaúcha. Para ele, a perda do apoio do governador Eduardo Leite (PSDB-RS) ao projeto Mina Guaíba ainda em 2021 pode ser um sinal disso. “Na COP 27, [ele] apresentou um plano para o processo de neutralização das emissões de gases de efeito estufa, com metas ousadas para redução de 50% das emissões em 2030 e a plena neutralização em 2050”, conclui. 

Parte da área que era proposta para a Mina Guaíba. Foto: Estudo de Impacto Ambiental/Reprodução
  • Michael Esquer

    Jornalista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos

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