Reportagens

Revolução no Pontal

Bastou um homem mudar de rumo e chegar ao Morro do Diabo, Pontal do Paranapanema, para transformar a região em floresta pela mão de cientistas e agricultores.

Luiz Henrique Ligabue Silva ·
25 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Aos 30 anos, Cláudio Pádua já estava “com a vida ganha”. Morava em um belo apartamento na cidade do Rio de Janeiro, tinha um filho, um carro esporte, reservas financeiras e tudo o mais que um cargo bem-remunerado na direção de uma grande indústria da área farmacêutica pode oferecer.

Uma bela tarde, veio a decisão. “Acabou, não volto mais”. E sem saber o que faria. O jovem empreendedor tinha apenas uma vaga motivação: trabalhar com meio ambiente. Primeiro tentou ser fotógrafo de natureza. Fuçou daqui, procurou dali, e depois de dois anos o dinheiro acumulado já tinha ido embora. Em vez de verde, a situação ficou preta.

Começou a clarear em uma conversa com Maria Tereza Pádua, hoje colunista do O Eco, na época diretora de Parques Nacionais do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, IBDF, que viraria Ibama. Por sugestão de Maria Tereza, Cláudio deu seu primeiro passo para realmente mudar de área. Saiu da reunião, em Brasília, decidido a prestar vestibular para Biologia.

No terceiro ano do curso, em uma reunião de amigos ele conheceu Adelmar Coimbra Filho, considerado o maior primatólogo do Brasil. Da conversa surgiu a oportunidade de ouro: foi convidado para ser assistente em suas pioneiras pesquisas com micos-leões.

Dois anos mais tarde, Maria Tereza Pádua, agora trabalhando na Companhia Elétrica do Estado de São Paulo, procurou o laboratório de Coimbra Filho preocupada com a construção de uma barragem no extremo oeste paulista. Ela iria inundar o Parque Estadual do Morro do Diabo e parte do Pontal do Paranapanema. Coimbra já conhecia o parque, pois nos anos 70 havia redescoberto no local o mico-leão preto, que figurava na lista das dez espécies mais ameaçadas de extinção no mundo.

A convite da empresa, partiram o famoso primatólogo e seu assistente para o parque. Naquele final de 1983, depois de três dias de exploração intensa da área — com direito a sobrevôos, caminhadas e muitos quilômetros rodados de carro — o professor reuniu os responsáveis pelo projeto e em duas horas de sermão criticou todos os envolvidos e o próprio projeto, abandonou a missão e deixou o abacaxi nas mãos de seu inexperiente assistente.

O primeiro passo foi mapear as comunidades de micos-leões pretos, ainda no reveillon de 1983. Depois fez mestrado e doutorado nos eua sobre os micos e o Pontal. Durantes anos de pingue-pongue — entre o conforto absoluto proporcionado pelo American Way of Life e o ambiente quente e poeirento, repleto de carrapatos e sem energia elétrica do parque —, localizou e identificou as comunidades dos pequenos primatas, fuçou, entrou nas matas, ou no que restava delas, pesquisou a genética dos bichinhos e sem perceber, reformulou sua vida.

Suzana, sua mulher, que trabalhava como decoradora no Rio de Janeiro, também acabou fisgada pelo Morro do Diabo. Nem a leischmaniose fez com que abandonasse a região, porém faltava-lhe algo. Aos poucos foi conquistando os moradores da região e apresentando-lhes o parque, e assim acabou formando uma equipe de educação ambiental que faz esse trabalho de interação até os dias de hoje.

No entanto, o casal não permaneceu isolado em sua nova rotina. Tanto Cláudio como Suzana angariaram, através de seus trabalhos, novas figuras à história. Cláudio, no encaminhamento acadêmico, acabou se associando à Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (esalq), com a incumbência de criar um curso de mestrado em biologia da conservação.

Em uma pequena sala da esalq e no contexto da eco 92, um grupo formado por professores, estagiários e alunos recém-formados procuraram Cláudio e decidiram criar o Instituto de Pesquisas Ecológicas (ipê). De início, uma sala alugada em Piracicaba serviu para que o projeto de Mico-Leão-Preto se transformasse em uma pequena instituição (ong). Porém representantes da ong norte-americana Native Conservancy convidaram o biólogo para ser diretor do programa destinado ao Brasil em Washington. Cláudio e Suzana deixaram o ipê nas mãos de seus companheiros e alunos: Laury, Cristiana, Patrícia, Eduardo, Gracinha e Fabiana, entre outros. Eles seguiram tocando os projetos com onças, micos-leões, antas e os mais variados temas — como valoração econômica da natureza.

Com o tempo, o ipê ganhou fama pela competência na execução de seus projetos. Depois de dois anos na Native Consevancy, Cláudio foi transferido para o escritório da ong norte-americana em Brasília. Em todas essas andanças nunca se afastou e nem se desligou do ipê, e os diversos cursos que fez no exterior serviram de incentivo à nova geração de pesquisadores que se desenvolvia dentro dos quadros do ipê. Mestrados e doutorados dessa turma geraram novas frentes de atuação do grupo em diferentes partes do país.

Com a proliferação dos projetos veio a notoriedade internacional, e Cláudio e Suzana foram considerados “heróis do planeta” pela revista Times. Outros prêmios internacionais reluzem no currículo do ipê: o Whitley Golden Award de Cláudio — o Oscar do meio ambiente —, e o Rolex Awards de Laury Cullen, diretor-técnico das atividades do ipê no Pontal do Paranapanema. Ele se tornou o segundo brasileiro a ganhar a distinção Suíça do conservacionismo.

Nas pesquisas feitas pelo Instituto percebeu-se que os fragmentos florestais e o parque estadual estavam condenados a desaparecer em uma escala maior de tempo, devido à falta de renovação genética das espécies que o compunham. Faltavam-lhes uma conectividade, um intercâmbio entre os indivíduos de suas populações. Graças ao Projeto Detetives Ecológicos, custeado pela Fundação Boticário, foi possível o monitoramento de alguns grupos: estabeleceram-se os caminhos utilizados pelos animais para chegar às diversas ilhas de mata que sobrevivem em meio ao grande mar de pastos do pontal.

Foi por ocasião de uma lei estadual de 1991 — que obriga os proprietários de terra paulistas a manter a mata nativa em pelo menos 20% de suas possessões, e que para quem já desmatou prevê vinte anos de prazo para recuperação — que o ipê implantou um projeto ambicioso. Seguindo as determinações dessa lei, desenvolveu um mapa no qual estão determinados os locais de manutenção de áreas verdes e futuro reflorestamento para o Pontal do Paranapanema. E, através de acordos com o Movimento dos Sem-Terra, com grandes proprietários locais, com o Ministério Público, com autoridades ambientais federais, estaduais e prefeituras, os pesquisadores e técnicos do grupo ipê conseguiram firmar um compromisso de respeito ao mapa proposto. O objetivo é que os fragmentos florestais e reservas do Pontal estejam integrados em um prazo de trinta anos (e não vinte). Ou seja, a meta é garantir a preservação da biodiversidade.

Hoje os projetos do ipê para recuperação da paisagem do Pontal prevêem três principais medidas: a criação de corredores ecológicos, para interligar os dispersos fragmentos florestais; a criação dos chamados “trampolins ecológicos”, pequenos bosques que servem de refúgio para os animais que fazem travessias entre os fragmentos; e o “abraço verde”, plantio de árvores nas fronteiras das áreas de conservação, para que sirvam de escudo contra o chamado “efeito de borda”. Ou seja, o rareamento da mata na zona de contato com áreas expostas ao vento, a agentes químicos exógenos e a queimadas provocadas pelo homem.

Um outro projeto criado para envolver a comunidade na conservação da floresta foi o Café com Floresta. Ele consiste de um comprometimento entre o grupo ipê — que fornece as mudas, a técnica e o acompanhamento familiar — e o assentado — que, por sua vez, assume o compromisso de não usar pesticidas ou fertilizantes químico na produção. O contrato é firmado na base da conversa e normalmente selado por um cafezinho, que está sempre quente na mesa do produtor para receber a visita de um amigo.

O primeiro a bater na porta desses agricultores foi o extensionista agrícola Jefferson Ferreira Lima. Ele levou tempo para convencer os primeiros agricultores a plantar café na região, ainda mais debaixo de outras árvores. Pela praxe, acredita-se que árvores concorrem com as culturas — essa é uma das razões da existência de enormes campos abertos em todo o território nacional —, além do mais, elas dificultam a circulação das máquinas e prejudicam a colheita. As constantes geadas do Pontal também ensinaram os agricultores que o café, uma planta sensível, não deveria ser cultivado. O que Jefferson mostrou é que, se plantados em meio a árvores, têm sombra e proteção contra as intempéries. Outra vantagem da associação das culturas é que, ao perderem as folhas, as árvores formam “bagaceiras”. Elas recobrem o solo arenoso, criando uma camada de proteção que ajuda na conservação da umidade, e ao mesmo tempo o enriquecem com matéria orgânica, um fertilizante natural.

O assentado também é estimulado a produzir as mais variadas culturas entre as ruas de árvores e cafés: abóbora, feijão, mandioca, quiabo, jiló, girassol, urucum, chuchu, milho e tudo que quiser. Plantadas de maneira intercalada, elas ajudam a terra a se recuperar, pois fixam diferentes nutrientes no solo, e ainda recheiam a mesa do agricultor, que deixa de gastar o escasso dinheiro com a compra dos produtos agora cultivados.

A razão do plantio desses bosques agro-florestais é que eles também sirvam de áreas de refúgio para animais que se aventuram a cruzar os fragmentos de mata. De quebra, se ensina o agricultor a tornar suas terras produtivas a partir da natureza, e não de programas governamentais baseados em uma agricultura dependente de uma gama de sementes e insumos disponíveis no mercado convencional. Trata-se de um savoir faire integrado à natureza.

Hoje o Projeto Café com Floresta conta com um viveiro de mudas, e está distribuído em sete assentamentos no Pontal do Paranapanema. Seus três principais núcleos estão nos assentamentos: Ribeirão Bonito, com quatorze famílias produtoras; Água Sumida, com seis; e Tucano, com quatro. Mais 24 produtores estão estrategicamente espalhados em outros assentamentos, para servirem de difusores da técnica.

Assim o ipê, que conta hoje com sessenta integrantes, dos quais dez doutores e dezesseis mestres — e que está construindo um campus universitário em Nazaré Paulista, no interior de São Paulo, para receber os primeiros alunos do curso de pós-graduação em conservação ambiental no primeiro semestre de 2007 — vem transformando uma história de ocupação destrutiva, em uma história de reordenamento da paisagem. Um reordenamento que, feito a partir de plantio florestal, conservação da biodiversidade, proteção de espécies ameaçadas e melhoria de vida para a população das áreas de entorno, está dando uma aula de competência ambiental.

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