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Criar uma reserva ambiental particular já não é só bondade de rico. Habita também sonhos da classe média. Como o de Nando e Chris, que foram à luta por uma.

Lorenzo Aldé ·
2 de dezembro de 2005 · 18 anos atrás

Nando tinha acabado de se formar em Educação Física e estava atrás de emprego. Morava em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, mas o que o jornal local lhe trouxe de novidade foi uma vaga em Itajaí, Santa Catarina. Ele se mandou para lá, virou professor em uma academia de ginástica. Era por volta de 1987. Em pouco tempo, conheceu uma aluna chamada Chris, se apaixonaram, namoraram e casaram.

Durante cinco anos, Nando e Chris não pararam quietos em uma cidade. Foram cinco mudanças, sempre no interior paulista. Chegaram a morar a 200 metros da Via Dutra, em Taubaté, antes de concluir que aquela vida não estava prestando. Juntaram suas poucas economias e contaram com uma força dos pais para realizar um sonho: morar em Florianópolis. Compraram um sítio no Rio Vermelho, um bairro rural, pertinho do mar, e lá construíram uma casinha simples.

Teria este final feliz a história dos dois, não fosse o roteiro da ocupação desenfreada do litoral que se repete em toda a costa brasileira, norte a sul. “Pipocaram casas da noite pro dia”, lembra Nando, ainda incrédulo. Favelões de pobres e casarões de ricos multiplicaram-se em volta do terreno. A primeira perda foi a da vista. “Taparam o entardecer e a lua que nascia no mar”. Depois, perderam a paz. Pitbulls viraram moda no bairro e começaram a atacar as pessoas. Bêbados nas ruas, violência crescente, e a cada passeio na praia eles voltavam carregados de lixo. Não era bem o que sonhavam.

Até que um dia, vendo televisão, Nando ouviu pela primeira vez o termo “Reserva Particular do Patrimônio Natural”. E descobriu que as RPPNs têm um atributo irresistível: “Ninguém pode mexer. Para sempre”. Palavras mágicas, que fizeram o casal mudar de vida mais uma vez. Só que agora, esperam, definitivamente.

Correndo atrás

A RPPN “Rio das Lontras” é a mais recente de Santa Catarina. Foi criada em abril deste ano, nos municípios de São Pedro de Alcântara e Águas Mornas, linda região serrana a pouco mais de uma hora de Florianópolis. Protege 17,93 hectares de Mata Atlântica. Não é muito. Mas é para sempre.

Deu trabalho. Só a licença do Ibama levou dois anos para sair. E por pouco o sonho da reserva própria não foi por água abaixo. A primeira área escolhida, na Serra do Tabuleiro, ganhou autorização de todos os órgãos responsáveis, até que no dia de fechar a transação – sítio vendido e dinheiro na mão – Fernando ouviu de um conhecido da Fatma, órgão ambiental do estado: “Não fecha!”. O terreno ficava dentro de um Parque Estadual. Ou seja, era negócio ilegal.

Nova área escolhida, 23 mil reais desembolsados, RPPN criada, e hoje Nando e Chris vivem de aluguel na simpática Angelina, cidadezinha de colonização alemã ali perto. Nem carro têm mais: venderam um fusca 94 para pagar as dívidas do que investiram na reserva. Apesar dos primeiros olhares desconfiados dos vizinhos (pra quê comprar uma terra onde não se pode fazer nada?), estão certos de que cada centavo vale a pena. Até porque esperam começar a capitalizar os frutos de tanto trabalho.

Desde que compraram a propriedade, em 2002, não param de bolar formas de promover a reserva. Queriam uma logomarca bacana. Nando abriu a lista telefônica e ligou para a casa do cartunista Ziraldo, no Rio. Atendeu o próprio. E tanto ouviu que acabou dando crédito ao maluco da outra ponta. Prometeu um desenho para a reserva PT. Seria este o nome, inicialmente. Porque são as letras do sobrenome deles: Fernando e Christiane Pimentel Teixeira. E porque, na época, eles acreditavam numa certa candidatura presidencial. Meses depois, Ziraldo desabafou, diante da milésima cobrança de Nando: “Com esse nome não dá. Inventa outro”. Para o bem de todos, ele pensou rápido e sugeriu: “Rio das Lontras”. O artista se animou: “Tá ótimo”. A logomarca saiu, e foi parar nas placas da reserva e em camisetas coloridas com as quais o casal e sua filha Fernandinha andam por aí, uniformizados.

O caso do Ziraldo é um exemplo da mistura de cara-de-pau e perseverança que os leva a pedir favores e patrocínio para tudo e todos. Fernando manda emails para jornais e programas de televisão sugerindo sua própria reserva como pauta. Já conseguiu boas matérias. Tentou ser escalado para o programa “Um Pé de Quê”, de Regina Casé, mas este ano a pauta estava fechada. Mandou carta para a Volskwagen e a Mercedes pedindo um carro para ajudar a preservar a RPPN. Ainda não teve resposta. Para outras empresas, pede qualquer tipo de apoio, em nome da “responsabilidade socioambiental”. Assediou durante meses o promotor José Eduardo Cardoso, do Ministério Público estadual, até conseguir a doação de um computador que saiu de um Termo de Ajustamento de Conduta. Convenceu a ong S.O.S. Mata Atlântica a mandar um técnico para orientá-los sobre como implantar a reserva. E aproveitou para convidar outros donos de RPPN no estado para um encontro, que batizou de “1° Fórum Catarinense das RPPNs”. Isso foi em março deste ano.

Nos meses seguintes a conversa evoluiu e Santa Catarina ganhou, em julho, sua Associação dos Proprietários de RPPNs, a exemplo do que já existe em vários estados.

Visita ilustre

No final de novembro, O Eco foi conhecer a tão falada reserva particular dos engajados neo-ambientalistas. A visita foi acompanhada por outro casal proprietário de reserva particular. Mas este com um perfil bastante diferente.

Lauro e Edela Bacca têm mais de 30 anos de militância no ambientalismo catarinense. Sua maior conquista foi a criação, no ano passado, do Parque Nacional de Itajaí, que protege parte das serras de Blumenau e municípios vizinhos. Lauro (na foto, com Chris) é dos mais respeitados ambientalistas daquelas bandas. Biólogo, professor, conselheiro da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e fundador da ong mais antiga do estado, a Associação Catarinense de Preservação da Natureza (Acaprena).

Mais do que justificada, portanto, foi a reverência com que Fernando e Chris receberam os Bacca em sua propriedade. Estavam ansiosos para ouvir do biólogo sua opinião sobre as intervenções no espaço da reserva Rio das Lontras. Já foram várias: abriram estrada de terra onde antes só havia uma picada, levaram luz até a área onde ficará a sede da reserva, plantaram mudas de palmito e araucária, cavaram três açudes (foto) onde começaram a criar peixes para atrair as lontras que rondam por ali à noite.

Mas nem sempre disposição e boas intenções resultam em benefício ambiental. O plantio de palmitos, por exemplo, foi um esforço em grande parte desperdiçado. “Muito sol. E o solo é pouco orgânico”, setenciou Bacca, ao ver a folhas amareladas. “Quando for roçar a estrada, bote a terra retirada em volta das mudas”, ensinou. Os açudes foram um susto para ele. O tratorista causou considerável estrago em torno dos lagos, criando barrancos inclinados demais. “Nesta parte vai ser mais difícil reflorestar”, avisou o biólogo.

Na saída, Fernando se queixava das dificuldades financeiras para realizar o plantio e outros investimentos, ao que Bacca sacou da manga um conselho definitivo para quem quer ver sua reserva evoluir: “Tire uma foto por ano. É por isso que eu tenho RPPN: não dá trabalho. É só cruzar os braços e ficar olhando a natureza fazer o serviço”.

Quem é quem

Diferença de estilos. Típica entre proprietários de reservas particulares Brasil afora. Na recém-criada Associação Catarinense, há espaço para o ambientalismo amador-obcecado de Nando e Chris, e para o ambientalismo experiente-paciente de Lauro Bacca. Entre outras figuras.

Como Miriam Prochnow, reconhecida nacionalmente por sua resistência à usina de Barra Grande. Ela tem uma RPPN em Atalanta e dirige a ong Apremavi, que também pretende criar sua reserva particular, no município de Papanduva (foto acima).

Ou Russell Wid Coffin, multimilionário americano, personagem meio mítico, tantas são as lendas que o envolvem. Dizem que sua família é simplesmente uma das donas da Coca-Cola, e que seu quinhão na mega-empresa foi a brasileira Kaiser. Mergulhador, cinegrafista submarino premiado, consta que um dia quase morreu ao ficar preso no focinho de uma baleia, e prometeu a si mesmo que se escapasse dedicaria a vida a preservar a natureza. Escapou, e hoje tem três RPPNs em Santa Catarina, outra na Bahia, e dizem que outras reservas na Costa Rica. O fato é que a sua Caraguatá, com 4.300 hectares e quase vizinha à “Rio das Lontras”, é um modelo de vigilância e gestão ambiental, onde existem até pumas.

E a chegada de Nando e Chris, como é vista por essa gente que se conhece há tanto tempo, e tão diferente deles?

“Parece-me que eles têm sérias intenções preservacionistas e querem realizar um bom trabalho. Mas também me parece que de momento estão um pouco sem planos concretos. Estão com muita energia e vontade de fazer muito, mas em algumas coisas ainda são um pouco ingênuos”, pondera o engenheiro florestal Phillip Stumpe, da Apremavi.

O jeito de ir com tanta sede ao pote e declarar-se “atrás de patrocínio” também gerou certa desconfiança. Edela Bacca tem algumas ressalvas a fazer. “Muita gente começou a fazer RPPN de olho nas vantagens econômicas, como não ter que pagar impostos. Algumas fundações destinam verba para projetos em RPPNs. O Fernando e a Chris são boas pessoas, mas precisam entender que RPPN é uma iniciativa particular, como o nome diz. É uma ação voluntária de alguém que tem um terreno e quer preservar. Não é para ganhar dinheiro. Ninguém pode pensar em viver disso”, argumenta.

Difícil acreditar que o casal faz-tudo esteja nessa por causa do dinheiro. Até porque empenharam todo o que tinham em um investimento no mínimo incerto do ponto de vista financeiro. E não pensam em abrir pousada ou lucrar com ecoturismo. Só atrair pesquisadores e alunos. Os patrocínios, defendem que são mais que merecidos. “E a importância da atitude de se criar uma RPPN? Ela pode compor mosaicos de corredores ecológicos, gera benefícios aos moradores do entorno e serviços ambientais, que são produtos gerados pelos ecossistemas”, enumera Fernando. “Não criamos a RPPN para nós, pois, em última análise, é para toda a humanidade, em caráter perpétuo, para o planeta! Empresas que apoiarem nossos projetos não estarão apoiando a nós, e sim o meio ambiente, a educação, a pesquisa. Nós apenas somos o elo, os motivadores das ações”, explica.

Diferença de estilos, apenas. Que devem acabar se entendendo, pois sua luta é a mesma. E os inimigos são muitos.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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