Reportagens

Vida de macaco

Maior primata das Américas, o muriqui é protagonista de causos antigos e novas iniciativas de preservação e turismo em Caratinga, interior de Minas Gerais.

Aline Ribeiro ·
19 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

O sol forte anunciava que os dias seguintes tinham tudo para render boas histórias. É que, quando chove, a já difícil busca pelos muriquis fica ainda mais complicada.

Era por volta de duas da tarde quando cheguei à Fazenda Montes Claros, a 42 km de Caratinga, leste de Minas Gerais. As 17 horas de viagem, entre uma e outra parada nas esburacadas estradas que ligam São Paulo até lá, não foram suficientes para diminuir minha ansiedade em conhecer o maior macaco das Américas, além de saber um pouco sobre o cotidiano de uma comunidade repleta de “causos” sobre esses animais.

Não havia passado nem 15 minutos da minha chegada quando veio a boa notícia. Do meio da mata, uma das biólogas que acompanham o dia-a-dia dos bichos contava que os macacos estavam a poucos metros da sede da Estação Biológica de Caratinga, área de preservação ambiental dentro da fazenda. Caminhei eufórica em busca do grupo e, pouco tempo depois, fui brindada com uma cena não tão rara por ali, nem tão trivial. Como exímios anfitriões, os muriquis atravessaram a estrada, para fazer as honras da casa.

A passagem foi rápida, mas, no dia seguinte, a oportunidade se repetiu. Assim que o dia amanheceu, entrei na mata para ter um contato mais próximo com o grupo. As biólogas Maíra Assunção e Fernanda Tabacow iam na frente, em busca de pistas que nos ajudassem a encontrá-los. Fezes frescas no chão sugeriam que os macacos tinham passado por ali há pouco. Mas eles são ágeis. Na procura pelas árvores mais frondosas, que garantem as folhas e frutos do dia, os animais se locomovem com rapidez. Algumas paradas no meio do caminho nos possibilitavam o silêncio necessário para ouvir a vocalização dos bichos, numa espécie de relincho. O cheiro azedo deixado no ar pelos muriquis era outro sinal de que arriscávamos o caminho certo.

Um pouco mais de esforço, em caminhada íngreme de 40 minutos, nos fez chegar ao local que os mono-carvoeiros escolheram para ficar. Este é o outro nome dos muriquis, graças à cara preta que remete ao rosto sujo de fuligem dos mineradores de carvão. Depois do jogo de esconde-esconde, o espetáculo começa. Damos sorte de encontrá-los logo pela manhã, horário em que o grupo mais se movimenta. Cortam as matas rapidamente, num sincronismo inacreditável. Fazem do cipó uma corda bamba, que liga as árvores mais distantes. Cordialmente, os mais velhos usam o corpo como ponte para os mais novos atravessarem de um galho para outro. Enquanto as biólogas coletam os dados necessários para suas pesquisas (por exemplo: certos hormônios nas fezes indicam o nível de estresse dos macacos), observo algumas peculiaridades que fazem dos muriquis um dos primatas mais dóceis da floresta.

Índole pacífica

Apesar de selvagens, os animais estão habituados à presença humana. Sem contar com um ou outro momento em que estranhavam a “invasão”, mostraram-se amigáveis e pra lá de receptivos. Esticando-se para alcançar um galho que esbanjava folhas, o macaco Américo (cada um tem seu próprio nome, que sempre começa com a letra inicial do nome da mãe) pousa para foto, demonstrando grande intimidade com a câmera. Não é à toa. Há mais de 20 anos, a pesquisadora americana Karen Strier deu início aos estudos com os animais da reserva. Por lá passaram dezenas de biólogos no decorrer desses anos, dando continuidade aos estudos da precursora.

Numa árvore a alguns metros dali, dois muriquis de ponta-cabeça (presos somente pelo rabo), abraçam-se fraternalmente. A cumplicidade é tanta que fica difícil distinguir qual pé ou braço é de quem. Isso quando é possível saber o que é pé e o que é braço. Mais adiante, um pequeno grupo se delicia com uma das frutas prediletas da espécie: o bago de mono, de sabor bastante adocicado e textura viscosa. Depois de algumas horas de confraternização, brincadeiras e muita comilança, os bichos param para a sesta da tarde. Enquanto os adultos dormem, os filhotes caminham pelos troncos mais próximos com passos receosos de quem ainda está aprendendo a andar. Estão descansados, já que durante os longos trajetos em busca de alimento permanecem presos aos dorsos dos pais ou avós.

Com 1,5 metro de comprimento (da cabeça até a cauda) e até 16 kg quando adulto, o muriqui está presente em escassos remanescentes de Mata Atlântica. Nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo ocorre a espécie muriqui-do-norte, com cinco dedos e o rosto parcialmente despigmentado. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná vivem os muriquis-do-sul, com a cara totalmente preta e apenas quatro dedos nas mãos. Estudiosos estimam que, na época da colonização, existiam no país cerca de 400 mil animais dessas espécies. Hoje, o número gira em torno de 2 mil.

De índole muito pacífica – em tupi, muriqui significa “povo tranqüilo” –, os mono-carvoeiros convivem em sociedade igualitária onde não há brigas por comida nem por acasalamento. As fêmeas escolhem seus parceiros e copulam com diversos machos. Apreciadores de folhas, frutos, flores e cascas de árvores, esses macacos são importantes dispersores de sementes, contribuindo para a renovação natural da Floresta Atlântica.

Mais filhotes

O grupo estudado pelas biólogas tem cerca de 50 animais. Elas acabam de descobrir um novo membro. “Se o número está aumentando, é sinal de que o espaço e a quantidade de alimento são suficientes”, comenta Fernanda Tabacow. A média de nascimentos nos últimos meses está bem acima do esperado. De julho de 2004 ao mesmo mês do ano passado, nasceram seis novos filhotes. De julho de 2005 até agora, já foram registrados mais 14.

Outro fato curioso, este preocupante, é a ocorrência cada vez maior de machos. “Basta um macho para copular várias fêmeas. Mas a população de fêmeas precisa ser maior para gerar mais filhotes”, diz Fernanda, lembrando que as fêmeas têm apenas um filhote a cada três anos, depois de sete meses de gestação.

O diretor da Estação Biológica de Caratinga, Antônio Bragança, conta que a área de mata fechada também está aumentando. As árvores já começam invadir os antigos pastos e plantações de café que ocupavam grande parte do local. A idéia é interligar com corredores ecológicos todos os pontos de floresta que ainda estão desconectados. “Hoje, mais de 90% da fazenda já é mata”, diz, mostrando um grande espaço coberto de grama, mas já tomado por mudas nativas. Para dar vida aos corredores, funcionários da estação fizeram um viveiro com centenas de espécies que serão utilizadas no reflorestamento.

Primórdios da preservação

Foi Feliciano Miguel Abdalla, barão do café que em 1944 adquiriu os 957 hectares da Fazenda Montes Claros, um dos principais responsáveis pela preservação dos mono-carvoeiros na região. Na época, não se tinha idéia da importância de perpetuar a espécie, que ainda hoje permanece na “lista vermelha” internacional de animais ameaçados de extinção.

A recomendação de conservar a qualquer custo os animais veio do antigo dono das terras, Felippe de Abreu, mais conhecido por Seu Benzinho. Aliás, foi a condição imposta por ele quando vendeu as terras. “Me lembro muito bem. Meu pai vendeu a fazenda quando eu ainda era moço, estava terminando a faculdade de Medicina. Chegou o Feliciano, um rapaz ainda jovem, alto, forte e filho de turco. Ele queria fazer negócio. Papai disse que só venderia a ele se prometesse que lá não entraria ninguém para caçar. O jovem, determinado, respondeu que lá seria sua moradia, que em hipótese alguma deixaria que matassem os bichos”, lembra o filho de Seu Benzinho, que, como o pai, chama-se Felippe de Abreu.

E foi assim, pela quantia de 700 contos de réis, que Abdalla comprou a fazenda “com a porteira fechada”. “Papai confiou tanto nele que disse que venderia com tudo o que tinha dentro. E foi um ótimo negócio, porque o Feliciano preservou ainda mais que meu pai”, comenta Abreu, hoje com 86 anos. Abdalla realmente cumpriu a promessa que fez ao adquirir a Montes Claros. Enquanto permaneceu vivo e com saúde (faleceu em junho de 2000, aos 92 anos), cuidou daquelas matas com a consciência de um ambientalista. Até pouco tempo, a janela de seu quarto tinha marcas de balas, disparadas por caçadores que invadiram suas terras.

“Feliciano foi um grande homem e ótimo amigo. Foi ele quem abriu minha cabeça para a conservação. Antes eu era caçador, fui até Brasília comprar cachorros para me ajudar a caçar. Hoje não mato mais nada”, conta José Gomes, 67 anos, atual administrador da fazenda.

“Causos” da roça

Com a ajuda de Antônio Bragança, diretor da Estação Biológica de Caratinga, percorri cerca de 40 km em torno da reserva em busca de boas histórias sobre os muriquis. A intenção era saber dos mais antigos como era a relação deles com esses macacos num período mais remoto. Como condiz aos mineiros, nos receberam muito bem. Entre cafés e bolinhos, os “causos” iam chegando. João Luís de Souza (foto), 81 anos, conhecido na região por Seu Argelino, é balaieiro desde muito pequeno. Herdou dos ancestrais indígenas a habilidade em lidar com o bambu e, por causa da profissão, esteve sempre em contato com a mata. Vendia cestos para a vizinhança utilizar na colheita e armazenamento dos grãos de café. “Eu ia pro mato todos os dias. Os macacos sempre estavam lá. Eles são mansos, não fazem mal pra ninguém”.

Mas, assim como os homens, os muriquis têm lá seus dias ruins. “Quando eles ficavam bravos, olhavam pra gente e dava até medo. Soltavam uns gritos como se fossem cachorros latindo. Aí faziam cocô e jogavam na gente. Aquilo queimava que nem fogo”, recorda Seu Argelino, em memória compartilhada por outros amigos de roça. Mas a pesquisadora Karen Strier, que trabalha há mais de 20 anos com os monos, explica que isso não passa de lenda. “Não temos dados que comprovem este fato. Os macacos, como os seres humanos, podem defecar quando estão nervosos, mas isto são significa que eles liberem uma substância fora do normal”.

Outra parada, mais história. Altino Bragança, de 82 anos, mora desde 1945 nos arredores da Montes Claros. Sua fazenda, de aproximadamente 600 hectares, faz divisa com a de Abdalla. Como chegou muito jovem à região, lembra perfeitamente como os muriquis eram tratados na época. “Tinha dois caçadores, o Nico e o Moisés. A profissão deles era matar mono. Eles pegavam a espingarda e um facão e saíam só para caçar. O pessoal gostava muito de comer cabeça de macaco no meio do arroz. Mas dizem que a carne baba igual quiabo”. Bragança conta que, em suas terras, já avistaram um muriqui vivendo com um bando de barbados, ou bugios. “Se eles vierem morar aqui, eu vou cuidar também. Quem não gosta de ver os bichinhos andando por aí?”.

Um ex-funcionário da Fundação Nacional de Saúde foi outro personagem fundamental para a preservação dos muriquis. Inácio Rocinski apresentou os mono-carvoeiros a pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em meados dos anos 70. Na época, Rocinski buscava respostas para uma doença que se disseminava com rapidez na região: a leishmaniose. O objetivo era encontrar os transmissores do mal. “Foi tudo por acaso. Eu estava conversando com os pesquisadores e comentei sobre o mono, que era diferente dos outros. Tinha pêlo amarelo, era grandes. Aí eles foram até lá e fizeram um vídeo sobre os animais”.

Continuidade

Em entrevista à revista Veja no ano de 1979, Feliciano Miguel Abdalla manifestou preocupação pelo futuro da fazenda. “Meus sete filhos não puxaram o conservacionismo paterno e temo pelo pior quando se fizer a partilha dos meus bens”. Felizmente, estava enganado. Um ano depois de seu falecimento, por iniciativa da família, a Estação Biológica de Caratinga foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

Continua sendo nicho de grande importância para pesquisas sobre diversas espécies da fauna e flora brasileiras. A ong Preserve-Muriqui entrou em funcionamento junto com a RPPN. A principal estratégia é fazer com que a reserva possa se auto-sustentar, contando apenas com recursos provenientes do turismo e convênios com universidades. Ramiro Abdalla (foto), neto de Seu Feliciano, é presidente da organização e, com o mesmo entusiasmo do avô, dá continuidade à causa.

Piloto particular de um sheik árabe, ele se divide entre voar e preservar os muriquis. Viaja dois meses pelo mundo a trabalho e permanece um no Brasil, período em que se dedica às atividades da ong.

O Abdalla neto conseguiu romper a barreira que existia entre os moradores da vizinhança e os pesquisadores – sempre muito distantes da realidade local. Tem feito os fazendeiros verem lucro onde antes só enxergavam “conversa fiada”. “Estou tentando convencê-los de que podem ganhar com isso. Desde alugar um quarto para os turistas dormirem até vender artesanato. Quem não sabe ou não pode fazer nada disso, dá um jeito de transportar o visitante de charrete até a reserva. O importante é seduzi-los com a cultura do local”.

A ong investe em oferecer uma estrutura adequada à visitação. No final do ano passado, foram construídos um mirante para a observação dos animais, um centro de visitantes (foto) e passarelas que levam a árvores centenárias da reserva. Também foram instaladas plaquinhas mostrando os nomes e características das espécies do local. Os guias são os mateiros da reserva, e parecem bem preparados para acompanhar os visitantes. O movimento ainda está fraco, mas a divulgação está apenas começando. Se depender da simpatia dos macacos, da estratégia dos líderes e da hospitalidade dos moradores, Caratinga tem tudo para entrar no roteiro do turismo ecológico no Brasil.

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