Reportagens

O morro não tem vez

Cercada pelo tráfico e abandonada pelo poder público, pequena ong batalha para salvar o pouco verde que resta na região do Complexo do Alemão, no Rio.

Lorenzo Aldé ·
10 de março de 2006 · 18 anos atrás

No primeiro dia do cerco do Exército às favelas da Zona Norte do Rio, quatro homens foram vistos subindo um dos morros do Complexo do Alemão e metendo-se na mata. Não levavam os fuzis roubados dos militares por traficantes, mas estavam armados. Portavam enxadas.

Sua missão naquele dia era retirar o capim colonião do morro, para evitar incêndios e abrir espaço para o crescimento de árvores nativas. Eles também fazem diques para represar o rio que desce a encosta, de modo a reter a água da chuva e enriquecer o solo, evitando erosão. Plantam espécies de Mata Atlântica e criaram um pequeno viveiro de mudas. Tudo para não deixar morrer a pequena porção de floresta que conhecem desde crianças, logo acima da favela Sérgio Silva, no bairro do Engenho da Rainha.

O grupo atende pelo nome de Verdejar, foi criado em forma de ong em 1997 e se especializou em remar contra a corrente. Pra começar, são poucos (oito) e têm pouco dinheiro (doado por simpatizantes e comerciantes do bairro). Mas isso não é nada. Dureza mesmo é ser ambientalista na região mais industrializada da cidade, tentando salvar uma serra devorada pela mineração, usada como rota pelo tráfico, disputada por loteadores e esquecida pelo poder público. Só mesmo louco. Ou poeta.

Luiz Poeta (foto), o fundador do Verdejar, estampa no nome seu segundo ofício. O primeiro é defender a Serra da Misericórdia. Luiz tem toda pinta de maluco-beleza: ex-marcineiro, cabeludo, barbado, planos de completar o ensino médio e formar-se em Filosofia “antes dos 60”. Mas se não fosse o poeta e sua trupe, as coisas estariam piores no quarto maior maciço do Rio de Janeiro.

Rezas e tiros

A operação dos dias 4 e 5 de março foi mais um mutirão de reflorestamento. Funciona assim: a ong convida universitários para capinar e dar uma força na manutenção das trilhas, plantio de mudas, enfim, no que for preciso. Naquele fim de semana vieram dois da universidade estadual (UERJ) e três da Federal Rural (UFRRJ). Com ou sem visitantes, os integrantes do Verdejar estão sempre nas trilhas morro. Em fevereiro, manhã de sol a pino do dia do show do Rolling Stones, lá estavam eles especialmente para receber este repórter.

Fora o veterano Luiz, os outros são jovens, e nenhum tem formação universitária. Como Luiz Cícero, 26 anos, que relata o trabalho de insistência necessário para convencer o comércio local a “associar-se” ao grupo, com uma cota mensal de R$ 15, por exemplo. “O rapaz da padaria dizia que preferia ver a favela crescer, assim ele venderia mais pão. Hoje ele contribui”, conta. O dinheiro vai principalmente para a capinagem e a prevenção ao fogo, que pode vir de várias fontes. “Balão, queima de lixo, displicência… e até os evangélicos”, enumera Cícero. Evangélicos? O Poeta explica: eles tacam fogo para se livrar do mato, associado a coisas do demo. “Se o mato cresce, não vou ver Deus”, brinca.

No caminho que circunda o topo do morro, os rastros da criminalidade que rola solta fora do alcance da polícia-do-asfalto. O lugar abriga carcaças de carros queimados e é usado para o transporte de peças roubadas. Um cavalo ajuda a charrete a fazer a travessia do morro carregada de bancos de automóvel.

Os conflitos com os traficantes, eles contam de forma divertida. Como na vez em que uma facção estranha à favela decidiu se instalar ali. Ao ver de longe vultos no meio do mato, ameaçaram atirar. Os ambientalistas apelaram para o grito de identificação pelo qual são conhecidos pelos locais: “Verdejar!”. No que os criminosos berraram de lá: “Verdejar é o cacete!”. E tome bala.

Diogo Mauro da Silva Fernandes, 24 anos, já se mudou da vila Sérgio Silva, onde cresceu, mas continua na ativa pela floresta. Ele diz que os traficantes dali são conhecidos de infância do pessoal do Verdejar, por isso não acontecem maiores problemas. Mas é de fato incrível que o grupo se mantenha saudável e íntegro desafiando gente barra-pesada que volta e meia se mete a ocupar o morro.

Em 1999, poucos meses depois que conseguiram remover o lixão de uma encosta mobilizando a comunidade, limpando a área, botando placas e plantando amoreiras doadas pela Fiocruz, eles assistiram incrédulos à chegada no local do grileiro Luiz Carlos Soares, conhecido loteador da Zona Oeste. Já veio com trator, abrindo rua e botando estaca. Saiu vendendo, ao mesmo tempo em que o Verdejar recorria ao Ministério Público para tirar os invasores de lá. A promotora Rosani Cunha Gomes dava voz de prisão, a PM vinha, mas eles saíam e voltavam.

“A gente alertava para as pessoas: não compra terreno aí não, mostrava o número do processo. Mas chegou a ter esqueleto de casas com dois andares. A gente derrubava muro, e o grileiro cobrava dos policiais contratados por ele para vigiar a área. Eles vinham mostrando a arma dizendo para a gente parar com aquilo, que era o ganha-pão deles, que o salário de PM não dava. A gente dizia que eles estavam defendendo o lado errado, e que a gente não ia deixar”, relata Luiz Poeta. E não deixaram mesmo. Em 2001, a prefeitura demoliu de vez as casas, e a investida, até agora, cessou.

Montanha devorada

Do topo do morro dá para ver o tamanho do estrago que as três pedreiras legalizadas causam à Serra da Misericórdia. É a maior exploração minerária em área urbana do Rio.

Edson Gomes Loiola, membro do Verdejar, decidiu cursar gestão ambiental e pretende fazer sua monografia sobre a região. No momento, estuda a situação das mineradoras. Está pedindo ao Ministério Público para ter acesso aos documentos ambientais obrigatórios das empresas: o Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (Prad) e o Plano de Controle Ambiental (PCA). “O Prad tem que acontecer simultâneo à exploração. Mas a gente não vê trabalho nenhum para recuperar a área. O reflorestamento deles é menor do que um apartamento de um quarto”, diz. “As mudas são tão próximas que nem crescem. Eles não querem nada com engenharia florestal”, completa Poeta.

Por meio de sua assessoria, a La Farge, responsável pela maior pedreira no morro, diz que “as operações obedecem a rígidos controles ambientais e de segurança”. Que plantou 13 mil e 500 mudas desde 1998 e que a qualidade do ar na região “é garantida” pela injeção de água durante a perfuração e pela umidificação das vias de acesso. “A gente vê poeira andando no ar. A Serra da Misericórdia é a bacia aérea mais poluída do Rio de Janeiro”, contesta o líder do Verdejar, citando estudo da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema).

Edson Loiola identificou mais duas frentes de mineração, estas clandestinas, em uma encosta em Cavalcante. “Detonaram nascentes sem licença”, descreve. Mas ao levar a denúncia para uma reunião com a GeoRio, teve que ouvir do técnico da prefeitura que aquelas pedreiras “têm conivência com o tráfico”. Por isso o instituto não consegue fiscalizar por lá. “Se são poder público, têm que atuar”, cobra Edson, martelando a obviedade que há muito desapareceu da rotina dos cariocas.

A Aparu que ninguém viu

Não bastasse tudo isso, e outras inúmeras parcerias para tocar estudos e projetos benéficos à região, os oito do Verdejar (mas são só oito mesmo?) ainda fazem o possível para influenciar políticas públicas. Em 2000, comemoraram sua maior vitória: a transformação de toda a Serra da Misericórdia em uma área protegida. Ao menos no papel.

A Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (Aparu) da Serra da Misericórdia foi criada em 2000 por decreto do prefeito da época, Luiz Paulo Conde. Proteção ambiental e recuperação urbana é tudo o que aquela região precisa. Nos 43 km2 da Aparu cabem 27 bairros e cerca de 80 favelas. É o coração da Zona Norte do Rio, onde ficam Bonsucesso, Penha, Olaria, Madureira e Ramos, e o complexo de favelas do Alemão. Lá moram 1 milhão de pessoas, cerca de 15% dos habitantes da cidade.

E há muitas, muitas indústrias. São mais de 1.563 estabelecimentos naqueles subúrbios, que cresceram no início do século XX com a população expulsa do centro do Rio pelo prefeito Pereira Passos e seu projeto de saneamento do centro da cidade. Tem de filial da Coca-Cola a siderúrgicas, empresas de cosméticos, tintas, óleo combustível, alimentos, cimento. Fora as pedreiras gigantes. Por isso, a região é uma das maiores arrecadadoras de ICMS do Rio.

Nada que aumente seu prestígio junto à prefeitura. O abandono é evidente não apenas nas enormes favelas governadas pelo tráfico, mas também na degradação dos espaços públicos, nos lixões improvisados a céu aberto, no esgoto que polui rios e vai desaguar na Baía de Guanabara. Inundações castigam as encostas desmatadas carregando barracos.

Com a criação da Aparu, os ambientalistas acreditaram que a história ia começar a mudar. Pela lei, o papel da prefeitura na área é “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade e o uso dos recursos naturais”. O resultado prático, até agora? Nenhum. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente informa que “ainda estuda a melhor forma de regulamentação do Decreto”. A de Urbanismo nem se dá ao trabalho de fazer rodeios: “Esse assunto é com a Secretaria de Meio Ambiente”, esquiva-se.

Se quisessem, os técnicos do município poderiam começar por ler a “Carta da Serra da Misericórdia”, um conjunto de 26 propostas elaborado por várias instituições para solucionar os problemas da “última área verde da Leopoldina”. Entre outras coisas, ela pede a desativação das pedreiras e a inclusão da micro-bacia dos rios Faria-Timbó na segunda etapa do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara.

O Verdejar também defende a criação de um “parque ecológico, cultural, científico e esportivo” ligando os bairros de Engenho da Rainha, Olaria, Inhaúma e Vila da Penha. A idéia é reflorestar 70% e deixar 30% para as atividades sociais. E, recentemente, a turma de Luiz Poeta iniciou uma campanha pela implantação de um “corredor ecológico urbano” ligando o Parque Nacional da Tijuca à Serra da Misericórdia. As duas áreas estão separadas por cerca de 1 quilômetro, que corta o bairro de Cascadura. “Basta arborizar as ruas para permitir a circulação dos animais entre as duas florestas”, explica Poeta.

Como se vê, propostas não faltam. O problema é que, vencidos cinco anos da criação da área protegida, se não for regulamentada ela pode perder sua validade legal. Faltam sete meses. Alguém acha que a prefeitura vai se incomodar de perder o prazo?

“Eles não botaram nem uma placa de sinalização dos limites da Aparu. Nem umazinha. Só tem a nossa, que mandamos fazer, pagamos e instalamos”, queixa-se Edson.

Mas Luiz Poeta não se angustia. Segue fazendo o que lhe dá prazer. Como ir com os amigos tomar um banho de cachoeira na mata. A força da água, que já foi um filete mas aumenta a cada ano, lhe dá a certeza de estar no caminho certo.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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