Reportagens

Namoro em segurança

Ibama do Piauí evita mais de 90% da cata de caranguejo na época da reprodução. O segredo é educação. Mas, sem lei específica, ainda é difícil impedir excessos.

Carolina Mourão ·
23 de março de 2006 · 18 anos atrás

O litoral do Piauí é mínimo, tem apenas 66 quilômetros de faixa de areia. Metade só de mangue. Mas é de lá que vem a maior parte dos caranguejos comercializados no Nordeste, especialmente no Ceará, maior consumidor do mundo. São cerca de 300 mil crustáceos retirados toda semana da região do Delta do Parnaíba para abastecer o estado vizinho o ano inteiro – demanda que não costuma respeitar o defeso, época de reprodução desses animais.

Mas, este ano, o Ibama do Piauí comemora. Evitou mais de 90% da cata nos dias em que o bicho sai para acasalar — os cinco primeiros dias de janeiro, fevereiro e março, período conhecido como “andada”. O segredo do sucesso é simples: parar de lutar contra o próprio sistema falido e promover, no lugar da punição inócua, uma operação educacional com os “homens de lama” – comunidades que vivem exclusivamente da cata, nos mangues piauienses.

“Este ano não houve nenhum auto de infração, o que foi um avanço em relação a 2003, quando começamos esse trabalho de fiscalização. Encontramos apenas casos de cata familiar. Nós liberamos os caranguejos e orientamos os poucos catadores que ainda não entenderam a importância de respeitar o defeso, a hora do namoro”, afirmou Fernando Gomes, chefe do escritório do Ibama em Parnaíba, cidade litorânea do Piauí. No defeso, a cata é terminantemente proibida quando os caranguejos saem nos dias de “andada”. Nos outros dias de dezembro a maio, a caça é proibida para fêmeas e, no resto do ano, só é permitida a captura dos caranguejos que tenham mais do que 6 centímetros de carapaça.

“O trabalho educativo que fazemos aqui no Delta foi aproveitado para todo o litoral do Nordeste. Recebemos de vários estados pedidos de envio de material produzido pelo Ibama do Piauí, como folders, cartazes que trazem uma linguagem simples, explicando que assegurar o defeso é assegurar a sustentabilidade dessas famílias de lama”. Dados publicados pelo Ibama indicam que até o ano 2000 existiam pelo menos 6.500 catadores de caranguejo na região do Delta do Parnaíba. No Piauí, a captura da espécie representou mais de 70% do total de pescado do estado.

Estratégia do Ibama

Fernando explica que, além da parte educativa, o Ibama aplica multas a partir de 500 reais para o comerciante que não fizer a chamada Declaração de Estoque do crustáceo antes do defeso, como forma de controle da cata no período. “Educação é fundamental porque o catador não é afetado pela multa, apenas o comerciante que encomenda a cata. Para eles, a gente exige a declaração de estoque, um ou dois dias antes do defeso, e fiscaliza um ou dois dias depois, na medida do possível. E a adesão dos comerciantes tem aumentado”, conclui.

Na opinião o professor Eudes Ferreira Lima, doutor em Ecologia e Biologia Marinha da Universidade Federal do Piauí, o trabalho educativo é importante, mas o Ibama ainda erra ao pedir a Declaração de Estoque. “Na prática, a Declaração de Estoque exaure o mangue dias antes, quando os comerciantes encomendam o dobro de crustáceos, sonegados na declaração. As atividades se intensificam. Entra criança, primo maranhense, entra tudo para ajudar a catar”, observa.

A Declaração de Estoque também não evita a exploração exacerbada do caranguejo porque 70% dos crustáceos são levados para o Ceará, onde apenas dois comerciantes dominam o mercado. Um é o famoso Chico do Caranguejo, o outro é o proprietário da barraca Itaparica. Eles ficam com os maiores exemplares e redistribuem o resto pelos restaurantes e 42 barracas de Fortaleza. Toda semana, os estabelecimentos promovem a conhecida Quinta do Caranguejo, consumindo cerca de 50 mil unidades, segundo informa Rolfran Cacho, chefe do Ibama no Ceará. “Acaba que os dois definem o preço geral da cata, que é muito baixo, e por isso o caranguejo precisa ser exaustivamente retirado”. Eles pagam apenas 15 centavos pela corda (quatro unidades) aos catadores, e vendem no Ceará a unidade por até R$ 2,99 em suas barracas e melhores lojas.

Chico ficou rico explorando o Delta e os catadores, que são agraciados uma vez por ano com uma festa regada com muita cachaça e música ao vivo. Poderia ter endinheirado ainda mais, não fosse a perda de quase 50% da mercadoria no trajeto, onde a crueldade com o bicho ultrapassa todos os limites.

Perda cruel

Os caminhões saem às segundas, quartas e sextas do Porto dos Tatus e do Porto de Carnaubeiras, ambos no Piauí, levando a mercadoria para o Ceará. Os caranguejos são amarrados entre o tórax e as patas, e empilhados vivos nos caminhões. Os que ficam embaixo têm de suportar mais de quinhentas vezes seu próprio peso por muito tempo, e ainda enfrentam o calor da lona preta sob o sol, colocada sobre eles.

“Quase a metade dos caranguejos morrem por conta da pressão sobre eles ou porque o vento resseca os brônquios”, diz o professor Eudes. Quando chegam ao destino final, são retirados de qualquer maneira e jogados nos quintais dos restaurantes, às vezes da altura do caminhão para o chão. Eles também sofrem mutilações das patas, que são frágeis. E os animais mutilados são rejeitados pelo consumidor. Quando sobrevivem a tudo isso, têm uma morte bem trágica: são colocados vivos em água quente. Alguns preferem matá-los com uma faca, mas a gordura da cabeça, considerada um manjar com farinha d’água, só fica se não houver perfuração.

“A questão do transporte é um desafio para o Ibama. Sem a perda, a demanda diminuiria bastante no mangue. Estamos tentando convencê-los de que mais viagens, no período da noite, possibilitam tornam a mercadoria economicamente mais vantajosa”, atesta Cacho. Como se vê, não é o Ibama, mas o próprio mercado que define o volume e o tamanho dos animais que são retirados. “É ele quem rejeita animais pequenos e fêmeas, que têm patas pequenas e pouca carne, como também os mutilados e os que chegam mortos”, diz o chefe do Ibama no Ceará.

Sem lei

Mas dentro das possibilidades reais de ação, o Ibama do Piauí superou as expectativas. “Concluímos que, na ponta, a educação é o melhor caminho. Os catadores já estão entendendo que o manguezal tem um limite. Começam a rediscutir preços e volume de pesca”, conclui Carlos Moura Fé, chefe do Ibama de Teresina.

O Ibama cearense responde: “É um consumo violento mesmo. Apenas 5% do caranguejo consumido aqui vêm do Ceará. A prática já comprovou que existe uma sobrepesca”. E o professor Eudes atesta: “É preciso haver um limite de volume de cata definido por lei. Mesmo respeitando a hora do namoro dos caranguejos, com ajuda do Ibama, o caranguejo-uçá (Ulcides cordatus cordatus) demora quatro anos para atingir o tamanho mínimo de captura. Apesar do aumento na consciência no período de defeso, a população do Delta ainda está longe de recuperar a estabilidade – o que ameaça fundamentalmente o complexo sócio-econômico do homem de lama”, alerta.

O órgão federal reconhece as limitações legais de sua atuação. “Nós só podemos fiscalizar os estoques no defeso, e durante o ano controlar o tamanho da carapaça, que deve ter no mínimo 6 centímetros, além de aplicarmos as multas. Em 2005 devolvemos 10 mil caranguejos para os mangues. Mas o trabalho se torna inócuo porque não existe uma norma que impeça a retirada indiscriminada de caranguejos do Delta”.

Por isso, os abusos continuam. “Esses empresários se aproveitam da ausência de uma norma de forma descarada. É um tipo de máfia do caranguejo”, conclui o professor Eudes.


*Colaborou com esta reportagem Andreia Fanzeres.

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