Além do lixo genuinamente nacional que todos os dias os brasileiros largam nas suas praias, elas também sofrem pressão de detritos que vêm de fora. Mas não necessariamente de longe. É o que mostra um estudo realizado entre 2002 e 2004 na Costa dos Coqueiros, um pequeno trecho do litoral baiano ao norte de Salvador, ainda marcado pela baixa urbanização e densidade populacional. Ele foi conduzido por Isaac Santos, Ana Friedrich e Fabiano Barreto, da ong Global Garbage e responsável pela coleta de dados em que o trabalho, publicado no Marine Pollution Bulletin, se baseia.
Barreto até encontrou nas praias da Costa dos Coqueiros detritos que vieram de longas distâncias, como uma garrafa com uma mensagem largada bem no meio do oceano Atlântico, entre o Brasil e a África, por um navegador italiano. Embalada pelo mesmo movimento de correntes e ventos que ajudaram Amyr Klink a cobrir as águas que separam os dois continentes num barco a remo, ela navegou por 135 dias até bater na costa baiana (imagem ao lado). Mas o grosso do lixo importado que ele catalogou não tinha nenhum organismo marinho incrustrado e estava em boas condições, sinais claros de que ele não passou tanto tempo assim no mar e foi lançado n’água bem próximo da costa.
“O nosso trabalho conclui que as convenções internacionais não têm sido respeitadas no nosso litoral”, diz Santos. É mesmo simples assim, o que no entanto não tira qualquer mérito do trabalho. Muito pelo contrário. Lixo no mar não é bom para a saúde da vida marinha. Mas pode ser prejudicial também à saúde humana, provocando ferimentos e irritações na pele. E definitivamente estraga a paisagem. Num país como o Brasil, onde o lazer de boa parte da população e o turismo dependem da nossa capacidade de manter o litoral atraente, ignorar o problema pode, no logo prazo, produzir um desastre. Daí a importância da pesquisa conduzida por Barreto, Friedrich e Santos. Ela ajuda a acumular informações para definir políticas de preservação e de gestão da nossa costa.
Origem no mar
Barreto, que faz tempo presta atenção ao lixo que se acumula em praias baianas, notou em 2001 que no meio dos detritos que encontrava nas areias havia muitos com rótulos que não costumam freqüentar as prateleiras de supermercados no Brasil. A partir de 2002, começou a catalogar todo o lixo “importado” que achava na Costa dos Coqueiros. Fez um levantamento detalhado de cada peça, anotando seu tipo, fabricante, país de origem, código de barras e datas de fabricação e validade. Os pesquisadores primeiro quiseram ter certeza que elas não tinham origem em terra. Para começar, olharam à sua volta e não encontraram, na área estudada, nenhuma das fontes habituais de produção de rejeitos, como grandes cidades ou pressão excessiva de atividade turística.
Além disso, verificaram que nos detritos encontrados não havia selos indicando que teriam sido importados por empresas brasileiras. Também descartaram a possibilidade que tivessem sido despejados por embarcações ancoradas no porto de Salvador, o maior do Nordeste. A corrente na costa da Bahia move-se predominantemente em direção ao Sul. Portanto, para que um lixo jogado em Salvador subisse até a Costa dos Coqueiros, ele teria que “nadar” contra a corrente, uma óbvia impossibilidade. Juntando-se tudo isso, e mais a constatação de que o material, devido ao seu bom estado, tinha passado apenas um curto período em contato com o mar, os pesquisadores concluíram que o lixo importado encontrado nas praias pesquisadas só poderia ter vindo de embarcações navegando próximas ao litoral.
A variedade do material catalogado – plástico, metal, papel, vidro, madeira, isopor e espuma – chamou a atenção dos três autores do trabalho. A dos produtos – água mineral, leite, sucos, cosméticos, produtos de limpeza – também. “Apesar da área investigada ter tráfego de navios e habitações humanas menores do que em outras regiões, como o Atlântico Norte e o Mediterrâneo, tudo indica que essa é a mais diversa catalogação de lixo de origem estrangeira encontrada em todo o mundo”, escreveram eles. Quase 2/ 3 dos resíduos eram de plástico, 35% deles na forma de garrafas de água mineral. Vieram de 69 países, com os Estados Unidos, a Itália e a África do Sul ocupando, pela ordem, as primeiras posições de produtores do lixo encontrado na Costa dos Coqueiros.
Confusão burocrática
Embora esse não fosse o objeto do seu trabalho, Santos e seus colegas especulam que a ausência de fiscalização e controle por parte das autoridades brasileiras sobre o lixo produzido em navios incentiva o seu despejo perto de nossa costa. Uma das razões do problema está na costumeira falta de capacidade do Estado, por limitação financeira ou falta de vontade política, de cumprir suas obrigações. Mas a outra é uma barafunda de regulações e leis que não deixam muito claro quem é, em última análise, o responsável por monitorar o despejo de lixo pelas embarcações. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), divide a responsabilidade de monitoramento de resíduos de embarcações com as autoridades portuárias.
Estas, por sua vez, estão obrigadas a oferecerem instalações para a coleta de lixo gerado dentro dos barcos quando atracam. Mas elas não estão disponíveis em todos os portos do país. Onde o serviço existe, ele é pago e obrigatório. Mas não é compulsório. Se o comandante de um navio não quiser, não há como forçá-lo a livrar-se do seu lixo antes de desatracar. É mais barato fazê-lo no meio do mar, onde o controle, até por ser muito difícil, é inexistente. Nesse caso, ele só será pego pelas autoridades caso provoque um problema ambiental mais grave. Aí a bola passa para o eterno goleiro dos desastres ecológicos no país, o Ibama, responsável pela limpeza da porcalhada.
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