Reportagens

Chute ousado

O anúncio do asfaltamento da BR 163 é um passo para a consolidação do 1º distrito florestal do país, criado no oeste do Pará e a atual menina dos olhos de Marina.

Carolina Elia · Gustavo Faleiros ·
8 de junho de 2006 · 18 anos atrás

Na véspera da Copa do Mundo, partiu de Tasso Azevedo, então diretor do Programa Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e agora primeiro diretor do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a melhor definição do que ocorreu no Palácio do Planalto no dia do meio ambiente, 5 de junho: “Chutamos a bola para frente para depois sair correndo atrás dela”. Ele se referia ao anúncio do começo do asfaltamento e da recuperação de alguns trechos da BR-163 (Cuiabá-Santarém), da sua nomeação para chefiar o recém criado Serviço Florestal Brasileiro – responsável pela implementação da Lei de Gestão de Florestas Públicas – e da publicação das instruções normativas 31 e 32, que facilitarão a regularização fundiária na Amazônia.

As três medidas estão diretamente ligadas e sinalizam o começo da transformação de uma área de floresta preservada no oeste do Pará no que a ministra Marina Silva deseja ser um “modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia”.


Em fevereiro, essa área foi decretada distrito florestal – o primeiro do Brasil (ver mapa em .jpg com 2.200Kb). Ele tem 19 milhões de hectares (90% coberto por mata) e compreende a área que vai de Santarém até Castelo dos Sonhos, no eixo da BR 163, e de Jacareacanga a Trairão, no eixo da BR 230 (a Transamazônica). Na mesma ocasião, o presidente Lula aproveitou para assinar a criação de sete unidades de conservação na zona de influência da BR-163. Depois do assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005, o governo federal suspendeu todas as atividades econômicas na região com o objetivo de impor ordem fundiária onde a promessa de asfaltamento da estrada estimulou disputas de terra e degradação ambiental. Um ano depois, o MMA conseguiu converter 84% da área colocada sob limitação administrativa em unidades de conservação e criou o distrito florestal, que possui 10,8 milhões de hectares sob o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Como diz Adalberto Veríssimo, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), não é trivial criar unidades de conservação no epicentro da BR-163. Mas para o governo, ainda que existisse o desgaste das audiências públicas no caminho, era a melhor solução para proteger a área contra grilagem e tentar retomar o controle da região. “A lei impede terceiros de regularizarem terras dentro de unidades de conservação”, explica Veríssimo. “Elas não podem mais ser griladas. Voltam a ser um bem público com uso definido”, completa Paulo Adário, coordenador do Greenpeace na Amazônia. A exceção são as Áreas de Proteção Ambiental, onde podem existir prioridades particulares desde que elas obedeçam às exigências impostas pelos planos de manejos.

Apoios estratégicos

Mas a simples criação das unidades de conservação não assegura o controle sobre a região. Elas precisam sair do papel e serem monitoradas. Para isso, o governo, que reconhece não ter estrutura para fiscalizar sozinho uma área do tamanho do Paraná, conta com aliados para consolidar a ordenação e a regularização fundiária do distrito florestal.

Uma das estratégias é atrair para a região empresas sólidas que terão o direito de explorar os recursos naturais por processos de licitação e concessão, seguindo a nova lei de gestão de florestas públicas. A expectativa é que se torne interesse delas combater ações clandestinas. Mas como diz Adário, “elas não podem monitorar a si mesmas”. Para ajudar o governo a fiscalizar o corte ilegal de madeira, entrará em fase de testes no segundo semestre deste ano o Detex, um sistema de monitoramento por satélite parecido com o Deter e capaz de detectar exploração madeireira em florestas. A tecnologia foi desenvolvida com imagens do Landsat pelo Imazon e o Inpe e em dezembro já deve ser divulgado um número referente ao corte ilegal na Amazônia, como existe o de desmatamento.“Este novo número vai tirar o tema da exploração madeireira da clandestinidade. A informação e a transparência permitem um debate e uma pressão maior por parte da sociedade”, diz Veríssimo.

Mas para passar a existir exploração madeireira legal no distrito florestal é necessária a aprovação de planos de manejo dentro e fora das unidades de conservação. Segundo Azevedo, já existem equipes em campo formadas por técnicos do Incra e do Ibama avaliando cerca de 20 planos liberados ano passado por Termos de Ajuste de Conduta (TAC) em terras públicas. Quanto às unidades de conservação, é preciso aprovar planos de manejo para cada uma delas determinando quais áreas serão destinadas a que atividades. A prioridade do governo está sendo concluir os planos das unidades de uso sustentável, para agilizar os processos de licitação. O Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) ficou responsável pelos planos das unidades de proteção integral, como Parques Nacionais e Estações Ecológicas. Para Veríssimo, a realização dos planos de manejo servirá de indicador do sucesso do governo. “Se todos tiverem sido concluídos até o fim de 2007 é sinal de que fizeram o dever de casa.”.

Um outro álibi para garantir a ocupação e o uso legal da terra na zona do distrito florestal será a aplicação das instruções normativas 31 e 32. Elas vão permitir ao Incra legalizar posses com até 100 hectares e fazer concessões de uso para ocupantes de áreas entre 100 e 500 hectares em terras públicas. Tais medidas permitirão, na visão do governo, reduzir a apropriação de áreas de florestas por grandes madeireiros e pecuaristas, e transformarão os pequenos posseiros em aliados. Para os casos de posses com 500 a 2500 hectares, é possível fazer licitação, mas o governo ainda não decidiu se fará isso. De qualquer forma, segundo o Incra, as duas instruções normativas permitem resolver os problemas de regularização fundiária de 98% das propriedades existentes em terras públicas na Amazônia.

Um efetivo composto por policiais, soldados do exército, promotores e técnicos do Incra será deslocado para fazer o levantamento das áreas. “Muitos fugirão antes de chegarmos, mas com os que ficarem, vamos analisar caso a caso”, explica Rolf Hackbart, presidente do Incra. Ele afirma que ocupantes de terras públicas poderão ser despejados e autuados se for comprovada a total supressão de áreas de preservação permanente e reserva legal. Nesses casos, as áreas degradadas serão cercadas e abandonadas para recuperação. Já em situações em que o dano à reserva legal for parcial, o Ibama poderá assinar TAC.

Transporte e energia

Além do ordenamento e da regularização fundiária, outra meta do governo a ser cumprida num curto prazo para estimular, a principio, a produção florestal sustentável na região é infra-estrutura. E um ponto chave é o transporte. Agora, apenas dois trechos da BR 163 serão asfaltados com a ajuda do exército: o que vai de Santarém a Rurópolis, no Pará, e o que segue de Novo Progresso (PA) até Guarantã do Norte (MT). Pontes de madeira em locais estratégicos, que estrangulam o tráfego da estrada utilizada para escoar a soja do Mato Grosso, também serão substituídas por outras de concreto. Até o fim do ano será aberta licitação para parcerias público-privadas concluírem as obras de recuperação e garantirem a manutenção da estrada – apesar do interesse das empresas em investir no asfaltamento ter diminuído depois da criação de unidades de conservação na região. O governo também promete obras na BR 230 e na estrada do Crepori, conhecida como Transgarimpeira. E fazer o mapeamento da navegabilidade dos cinco principais rios da região.

Outro fator que receberá atenção na primeira fase de implantação do distrito é energia. O governo espera convencer as indústrias locais a substituírem o diesel por biomassa gerada pela atividade florestal. “Metade do volume processado na serrarias vira resíduo”, diz Azevedo, que acredita poder agregar valor e aumentar os benefícios da exploração florestal transformando restos de madeira em lenha. Outro caminho será incentivar a instalação de pequenas centrais hidrelétricas, conhecidas como PCH´s, nos rios. “Elas não necessitam de barragem e exigem licenciamento mais simples”, defende Azevedo.

Além da madeira

A região do distrito tem hoje 4 pólos e 15 localidades de produção florestal com 205 empresas instaladas. Em 2004, elas empregavam 18 mil pessoas e geravam uma renda bruta de 185 milhões de dólares. O governo acredita que se tudo der certo, o distrito poderá produzir pelo menos três vezes a produção atual em bases sustentáveis e criar pelo menos mais 64 mil postos de trabalho. Num cenário mais otimista, esse número subiria para 174 mil e poderia chegar a uma renda bruta de 1,3 bilhões de reais – cerca de 565 milhões de dólares.

Segundo dados do Imazon, que mapeou o potencial madeireiro do Pará no ano passado, o estado tem condições de suprir essa demanda desde que a exploração seja feita de forma manejada. Ou seja, com corte seletivo baseado em inventários florestais, técnicas para estimular a regeneração e o crescimento das árvores comerciais e um cronograma de exploração anual. Hoje, a indústria madeireira está concentrada na região leste do estado, responsável por 74% da produção paraense. Mas uma proporção muito pequena é praticada de forma manejada e o setor enfrenta uma crise provocada por falta de definição fundiária e escassez de áreas designadas para produção florestal.

Além da exploração dos recursos florestais, o governo também terá que adaptar a agropecuária e a mineração (em especial o garimpo) existentes na região ao modelo de desenvolvimento sustentável sonhado por Marina. A equipe da ministra aposta em “Integração de Agricultura, Pecuária e Floresta” e em “Boas Práticas de Mineração”, mas as estratégias para transformar essa jogada em gol de placa ainda não ficaram claras. Aparentemente, neste momento, eles estão correndo atrás da bola.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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