Reportagens

O dono do mato

Poucos conhecem as matas fluminenses como um aposentado morador da região do Tinguá (RJ). Seu conhecimento e sua companhia são disputados por cientistas.

Eric Macedo ·
7 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Plantas recém descobertas costumam ser batizadas com nome de pesquisadores ou de pessoas admiradas por seus descobridores. Mas na Reserva Biológica do Tinguá, no estado do Rio de Janeiro, uma árvore de grande porte ganhou o nome de um ex-caçador da região: Simira walteriana.

Walter da Silva é um aposentado de 64 anos que nasceu em São José das Torres, no Espírito Santo, onde aprendeu com o pai, aos 10 anos, como andar na mata e caçar. Cresceu, foi trabalhar em empresas de cimento, em montagem de ônibus e num estaleiro no Rio de Janeiro, onde se aposentou. Vive há 26 anos no bairro de Tinguá. Casado com dona Terezinha, eles mantêm a Pensão Capixaba, que anuncia numa placa a comida de qualidade e o ambiente familiar.

Este repórter visitou a pensão numa tarde ensolarada de quarta-feira, na companhia do botânico Sebastião da Silva Neto, um dos responsáveis pela descoberta e descrição da Simira walteriana. Quando chegamos, seu Walter não estava. Tinha saído com dois alunos de graduação em biologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para ajudá-los em seus trabalhos de iniciação científica sobre espécies da Reserva. Pronto para esperar, Sebastião perguntou: “Cadê a cachaça, dona Terezinha?” e me explicou: Walter faz excelentes misturas do destilado com plantas e especiarias, muitas colhidas na região.

Depois de aposentado, Walter virou mateiro, ou, como prefere Sebastião, um assistente de campo. Uma atividade que vem morrendo, mas que tem importância fundamental para a realização de pesquisas científicas. “Um bom assistente funciona quase como um GPS. Você fala a respeito de uma determinada espécie, ele pára um pouquinho, pensa e te leva no pé da planta”, explica. Uma única excursão a campo pode levar dias de caminhadas e acampamentos pela mata. Estar com alguém que conheça a fundo a região é uma sábia decisão.

A pesquisa de doutorado de Sebastião, que está em fase de conclusão, é sobre as espécies de rubiáceas (plantas da família do café) do Parque Nacional de Itatiaia. As excursões a campo foram freqüentes e renderam até o descobrimento de uma outra espécie nova, a Randia itatiaiae. Em alguns momentos de mais trabalho ele passava duas semanas por mês no parque. Muitas vezes, apenas na companhia de Walter, que aprendeu a andar nas matas da região para ajudar cientistas.

Itatiaia

O Parque Nacional de Itatiaia (PNI) foi uma descoberta que orgulha o mateiro. Ele chegou lá sem conhecer nada, e depois de alguns anos já domina boa parte da área. “Descortinamos todas aquelas pedras”, conta. Foi lá que, com Sebastião, ele realizou uma das suas buscas mais difíceis por uma espécie: a rubiácea Hindsia glabra.

A hindsia, que só existe no PNI, era abundante em vários pontos do parque, segundo registros consultados por Sebastião. No entanto, nas constantes excursões a Itatiaia, ela nunca aparecia nos lugares descritos. Eles levaram três anos para encontrar a planta, que parece estar limitada agora a encraves de rocha, num local específico do parque.

“Ainda vai ser preciso saber mais sobre o que fez com que a hindsia migrasse dessa forma. Acredito que pode ser por causa das queimadas”, explica Sebastião. “Levamos um tempão, mas valeu a pena o trabalho. É muito bonita a planta”, completa Walter, que chegou de galochas, carregando uma bolsa de pano com um facão e sentou para dois dedos de prosa. Enquanto isso, a aluna de biologia desabava exausta numa das cadeiras da sala.

Tradição agonizante

Mateiros são pessoas normalmente de idade, que têm experiência em andar mata adentro e conhecimento tradicional sobre a fauna e flora de alguma região. Eles costumam passar o que sabem para as gerações mais novas, quando há interesse. Sebastião conta, por exemplo, que dos quatro filhos de Walter, nenhum se interessa de fato pelo que o pai sabe.

“É um conhecimento que antigamente era passado de pai para filho e agora vai morrer com ele”, diz o botânico. Tem sido cada vez mais difícil encontrar pessoas que tenham essa bagagem. Segundo Sebastião, em Tinguá, o número de pessoas aptas a realizar esse tipo de trabalho não chega a três.

Quando o Jardim Botânico começou um trabalho de inventário das espécies da flora do Parque Nacional de Itatiaia, em 1994, os cientistas procuraram alguém que pudesse fazer a assistência de campo na área. Só uma pessoa, na época, foi encontrada. Um octogenário chamado José da Silva. Por causa da idade avançada, preferiu-se tentar uma outra opção.

Sebastião, que trabalha como pesquisador do Jardim Botânico, sugeriu Walter, que já fazia esse tipo de trabalho no Tinguá com pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mas nunca tinha estado em Itatiaia. Ainda assim, o aposentado capixaba aceitou o desafio.

Caciques capixabas

O aposentado conta que muito do que ele sabe sobre mato foi aprendido com índios, quando era criança, no Espírito Santo. Um cacique, diz ele, o ensinou a fazer remédios com as espécies locais. Ele ainda faz alguns com ervas plantadas no quintal, mas não os receita para ninguém. Os índios teriam lhe ensinado o que ele faz questão de cumprir à risca: “O que é bom para mim pode não ser para o outro”.

Histórias também cercam a sua conversão de caçador para mateiro. A Reserva Biológica do Tinguá abrange quase 25 mil hectares de Mata Atlântica e é proibida qualquer visitação que não seja para fins educacionais ou científicos. No entanto, segundo o site do Ibama, “Há grande pressão devido ao uso dos locais de captação de água e das cachoeiras próximas à unidade como área de lazer… A caça e extração de palmitos também são muito praticadas na região da unidade”. O próprio Walter caçava, mas quando começou a ajudar os pesquisadores, esses fizeram grande pressão para que parasse. Ainda assim, diz que o motivo para a mudança de comportamento foi outro.

Estava na época de procriação de porcos e ele resolveu subir a reserva à procura de alguns leitões. Já tinha desistido quando deu de cara com um grupo, do qual conseguiu catar dois filhotes e guardá-los dentro de um saco. Na volta, foi surpreendido por uma quantidade enorme de porcos correndo agressivamente para cima dele. Acuado, em cima de uma pedra, com “os bichos fazendo uma confusão danada”, se viu obrigado a devolver os leitões.

Virou o saco em que eles estavam e um minuto depois não tinha mais nenhum por perto. “Eu tinha uma arma, podia ter dado tiro nos outros, mas não sei porque, soltei os bichos”, ele lembra. Foram três dias sonhando com isso. E assegura: “Depois nunca mais cacei nada”.

Hoje em dia, um dos motivos que mais leva Walter para o mato é a coleta de espécimes para pesquisas científicas. O trabalho com os pesquisadores e o nome incluído em praticamente todas as licenças de coleta para a Rebio Tinguá lhe garantem livre acesso à área. Os trabalhos de mestrado e doutorado de que participou já somam, ao todo, 40 ou 50, segundo ele. Sebastião diz que quase 100 % dos trabalhos feitos hoje sobre a Reserva do Tingá saem com agradecimento a Walter, que mesmo não se envolvendo diretamente, sempre dá uma dica ou outra.

Mas não é todo cientista que é capaz de acompanhar o ritmo de Walter na floresta. Às vezes ele tem que carregar as mochilas dos menos preparados fisicamente e o passo também precisa ser ajustado em cada caso. “Às vezes eu e esse aí [aponta para Sebastião] temos que ir com duas mochilas cada um, e mesmo assim os caras ainda ficam para trás. E olha que eu já tenho idade”, diz. “Essa menina de hoje, por exemplo. Foi uma voltinha à toa e ela chegou daquele jeito”.

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