Reportagens

Os tucanos do Rio

O tucano-de-bico-preto só voltou a habitar remanescentes de mata no estado do Rio graças aos quase 60 anos de trabalho do primatologista Adelmar Coimbra Filho.

Marina Lemle ·
19 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

O bico preto, longo e adunco, não deixava dúvida. Era mesmo um tucano que eu avistava da janela, na copa de uma árvore da mata próxima. Que presente! Semana passada, pude agradecer pessoalmente ao responsável por aquela cena, o zoólogo Adelmar F. Coimbra-Filho.

Conhecido como o pai da primatologia brasileira, não se limitou a preservar os macacos, reintroduzindo à natureza do Rio de Janeiro de aves variadas ao jacaré do papo-amarelo, além de uma gama de espécies vegetais – por onde tudo começou. Coimbra-Filho foi o primeiro administrador do Parque Florestal da Gávea, hoje Parque da Cidade. De 1947 a 1957, dedicou-se ao plantio de árvores brasileiras no local. Jacarandás e Peróbas-do-Campo de mais de 50 anos são provas do seu empenho como reflorestador. Mas sua atenção também se voltava para os bichos.

“Eu já fazia pequenas reintroduções, mas não anotava”, conta o pesquisador de 82 anos, Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Quando começou a trabalhar no Jardim Zoológico do Rio, pôde se dedicar mais aos bichos. No final dos anos 60, grandes apreensões de animais selvagens foram feitas no comércio ilegal pelo Instituto Brasileiro de Florestas (IBDF,hoje Ibama). Sem meios para mantê-los, vários morriam. Surgiu então a idéia de se recolocá-las no contexto ecológico do Parque Nacional da Tijuca, já que muitas espécies confiscadas pertenciam à fauna original da região. Foi assim com o Ramphastos vitellinus ariel, o nosso tucano-de-bico-preto, que sumira da área há mais de cem anos.

Tucano era comida

A espécie desapareceu por causa da destruição das matas e pelo sistemático abate a tiro. As aves alimentavam populações locais, que também usavam as plumagens coloridas em artesanato, tanto o feito por índio quanto por homem branco. Os mantos imperiais, por exemplo, consumiram numerosos papos de tucano-de-bico-preto e outras aves vistosas.

A recuperação do tucano-de-bico-preto na Floresta da Tijuca é um caso de sucesso entre diversos projetos de reintrodução de espécies desaparecidas e de repovoamento de grupos em declínio populacional. Coimbra conta que não se sabia ao certo a origem dos animais capturados e recuperados, mas comparações com espécimes de origem conhecida sugeriam o norte do Espírito Santo ou sudeste da Bahia, onde ocorriam grandes desmatamentos. Estes espécimes também eram praticamente idênticos a exemplares nativos do estado do Rio de Janeiro.

Das aves apreendidas e entregues ao IBDF, 46 tucanos-de-bico-preto em melhor estado físico foram submetidas a desinfecção orgânica, sendo tratadas com produtos veterinários de prevenção de parasitoses em aves ornamentais e libertados em trechos escolhidos por terem condições adequadas à soltura. Após três anos, mais um exemplar foi reintroduzido nas mesmas condições.

Consciente do pioneirismo de sua iniciativa, já que não havia experiência similar na literatura existente na época, Coimbra-Filho fez um trabalho abrangente, com avaliações prévias da vegetação do Parque Nacional da Tijuca, para se certificar da existência de fontes de água, fruteiras e árvores grandes e idosas, que dão abrigo às aves.

O tucano-de-bico-preto é onívoro e aprecia, além das frutas, insetos invertebrados e pequenos animais vertebrados, como filhotes e ovos de pequenas aves. Por isso, na época da sua reintrodução, também foram libertadas diversas espécies de pássaros de grande potencial reprodutivo. Mais de 200 saíras (Tangara) foram soltas. Graças a isso, a Tangara cyanocephala, antes escassa na região, hoje é freqüente.

“Apesar da carência de recursos, as atividades se desenvolveram bem, sendo as deficiências compensadas pelo entusiasmo no trabalho”, conta Coimbra-Filho.

As primeiras solturas, com 21 tucanos, foram realizadas em 27 de junho de 1970, na Estrada da Vista Chinesa e na Estrada Dona Castorina. Mais duas solturas, com 16 e nove tucanos, foram feitas em locais próximos no mês seguinte. Três anos mais tarde, em 9 de setembro de 1973, o 47o tucano, apreendido no comércio ilegal na semana anterior, foi libertado, desta vez no vale do rio dos Macacos. Acredita-se que tenha sido capturado por moradores da periferia do parque.

De acordo com o pesquisador, ao serem soltos, os tucanos voavam imediatamente para as árvores mais altas, onde se punham a cantar. Depois voavam pelos galhos da copa do arvoredo e sumiam da vista. Alguns anos mais tarde, pesquisadores de institutos localizados na região começaram a relatar terem visto ou ouvido os animais.

Mais de trinta anos após o projeto, seu êxito é reconhecido por cientistas e, certamente, por esta repórter, testemunha ocular de uma feliz aparição na mata do bairro da Gávea.

* Marina Lemle é jornalista especializada em ciência e tecnologia. Trabalha na ONG Viva Rio e colabora para o site SciDev.Net.

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