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Com sotaque latino

Coordenadora do capítulo sobre a América Latina do 2º relatório do IPCC aponta dados, previsões e medidas de adaptação na agricultura. Ações de adaptação devem ser imediatas.

Carla di Cologna ·
14 de maio de 2007 · 17 anos atrás

“É a primeira vez que a difusão do IPCC chega a todos. E isso só aconteceu porque as mudanças climáticas se tornaram evidentes”, afirma Graciela Magrin, coordenadora do capítulo sobre a América Latina do 2º relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). “Agora devemos nos preocupar em nos adaptar a elas”, disse na última quinta-feira, durante palestra no Centro Cultural CPFL, em Campinas (SP), dentro de um ciclo sobre aquecimento global,organizado pelo climatologista do INPE Carlos Nobre. A pesquisadora do Instituto Argentino de Tecnologia da Agricultura (INTA) apresentou dados que ilustram impactos sofridos na agricultura, previsões e apontou medidas de adaptação colocadas em prática. Dentre os cultivos, a monocultura da soja é aquela que mais se beneficia com a instabilidade do clima, enquanto perdas significativas estão previstas nos cultivos de arroz e café.

Impactos

A variabilidade é o que mais influencia o crescimento ou não dos plantios. Eventos extremos, como períodos de inundações intercalados com secas, e o aumento da temperatura, afetam diretamente o rendimento das plantas. A quantidade de água é fundamental para o crescimento delas, mas em excesso não permite, por exemplo, a respiração das raízes. Já a falta de água por 20 dias pode reduzir o crescimento em 50%, 60% ou em até 70%, dependendo do cultivo. A temperatura, por ser responsável pela aceleração do desenvolvimento da planta, deve respeitar seu gradual processo de amadurecimento para que dê tempo de acumular matéria seca e garantir seu rendimento. Quando as temperaturas são muito altas, o ciclo de crescimento é cortado e a planta não produz. Se além de quente o ambiente for úmido, o resultado é a proliferação de fungos e bactérias, que já ocorre em escala preocupante.

O El Niño, velho conhecido da população latino-americana, vem provocando períodos de mais e menos chuvas em determinadas regiões. Venezuela e Argentina passaram por grandes inundações em 2004 e 2005 – ano em que a Amazônia atravessou um período de seca fora do comum. Na mesma época, a América Central registrava recordes de furacões e Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) recebiam granizo. Outro fato “excepcional” foi o furacão Catarina, no Atlântico sul do Brasil, que teve como conseqüência perdas significativas de produção de banana e arroz, de 35% a 40%. Em 2004, Equador e Guatemala tiveram perdas de quase 80% em plantios por causa da seca e, em 2006, inundações provocaram perdas de 70% a 80% em cultivos comerciais na Guiana.

Cultivos

Outro fator levantado por Graciela foi a questão do CO2 que, em alta concentração na atmosfera, favorece a planta ao beneficiá-la no processo de fotossíntese e permitir o maior acúmulo de matéria. No entanto, é importante observar que alguns cultivos se beneficiam mais, como é o caso da soja, e outros menos, como o milho. Ainda assim, dados mostram que o cultivo do milho, quando avaliado de 1930 a 1960 e 1970 e 2000, subiu 12% em Passo Fundo (RS), 34% na Argentina e 25% no Uruguai, devido ao aumento pluvial principalmente nas duas últimas regiões. Ao mesmo tempo, verifica-se que devido ao aumento da temperatura, o rendimento do trigo caiu nas zonas mais quentes, chegando à redução de 6% em Passo Fundo.

Soja

“Além do clima existem outros fatores, todas essas otras cositas más que nós, humanos, estamos fazendo”, diz a pesquisadora. Com o boom da soja na América do Sul nos últimos anos, especialmente no Sudeste, os desmatamentos aumentaram e a expansão dos campos está afetando a sustentabilidade dos ecossistemas. Em 2003 calculava-se 38 milhões de hectares (Mha) usados para o monocultivo da soja. As previsões para 2020 são assustadoras: haverá um aumento de 55% na área usada para o plantio, que equivale à quantia de 59 Mha. “Isso sem falar nas zonas onde o estado é crítico”, alerta Graciela, referindo-se ao Cerrado, ao Grande Chaco, à Amazônia e à Mata Atlântica. Segundo ela, estão sendo destruídas zonas de alta fragilidade que não suportam tentativas de manejo. Uma das conseqüências da soja é o enfraquecimento do solo. Estima-se que repor os nutrientes perdidos em 1 hectare de soja por ano custaria aproximadamente 400 quilos de soja por hectare. Além disso, o que não pode ficar de fora são as emissões de óxido de nitrogênio por uso do solo – um dos gases responsáveis pelo efeito estufa –, das quais 50% vêm do cultivo da soja.

Previsões

De acordo com estudos analisados pelo grupo de trabalho II do IPCC, para 2020 espera-se o aumento de 0,5ºC a 2ºC na temperatura da América Latina, calculando-se de 1 ºC a 4 ºC em 2050 e 1 ºC a 7,5 ºC em 2080. Com relação aos cultivos, a redução será de 4% a 5% do rendimento do milho por cada grau a mais e a produção do trigo cairá de 7% a 9%. A soja, que se inclui perfeitamente no ditado vaso ruim não quebra, suporta até 3ºC a mais sem sofrer alterações. Em análises gerais, os impactos das mudanças climáticas agirão de formas diferentes sobre cada cultivo, mas pode-se afirmar que haverá redução na produção de arroz em todos os países e também do café, principalmente no México. No Brasil, será menor o número de áreas aptas para seu plantio. A savanização e desertificação previstas no Chile, Peru e Brasil também vão produzir perdas importantes na produtividade dos solos.

Adaptação

O setor agrícola, de acordo com Graciela, é aquele com mais capacidade de se adaptar às mudanças climáticas por poder criar estratégias de manejo e evitar perdas. A avaliação de prognósticos – as previsões climáticas – é uma importante medida de adaptação usada na Nicarágua e no México, mas que precisa ser difundida nos outros países. Seguros agrícolas, que permitem ao produtor proteger-se contra perdas provocadas por fenômenos naturais, e o desenvolvimento de novas atividades são duas outras medidas a serem levadas em consideração. O que falta, segundo a especialista, é um planejamento adequado à realidade regional de cada país, uma vez que a falta de programas de adaptação é um dos principais fatores das perdas neste setor. “Aqui (América Latina) impera o princípio da ação e reação. Enquanto nada acontece, nada fazemos”. A ação, pensada a curto e a longo prazo, deve ser instantânea.

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