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Contra tudo e contra todos

Vale do Rio Doce decide construir no Pará usina térmica movida a carvão mineral e defende que impactos serão irrisórios. Mas especialistas vêem graves falhas no projeto.

Andreia Fanzeres ·
28 de setembro de 2007 · 17 anos atrás

Nesta sexta-feira, os paraenses tiveram a sétima e última chance de discutir, em audiências públicas, a implantação de um projeto de geração energética para lá de controverso. Na contramão da tendência de buscar fontes cada vez mais limpas de energia, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) decidiu implantar em Barcarena, a 123 quilômetros de Belém, uma usina térmica movida a carvão mineral importado. A empresa defende que os impactos serão mínimos e que esse tipo de usina é fundamental para o equilíbrio da oferta de energia no país nos próximos anos. Mas o Ministério Público do Pará está de olho, convidou uma equipe de especialistas para analisar o projeto e descobriu que, apesar do controle de emissões anunciado pela Vale, a usina vai emitir só em carbono o equivalente a oito vezes a frota de veículos de Belém, ou a poluição causada pelos transportes numa cidade como o Rio de Janeiro.

Em números, isso representa 2,2 milhões de toneladas de gás carbônico lançados na atmosfera por ano. Ou 0,16% de todas as emissões do Brasil, que por conta da contribuição das queimadas e do desmatamento, não são poucas. “Essa emissão é baixíssima. Atende à legislação brasileira e a padrões internacionais”, defende Vânia Somavilla, diretora de energia da Vale. Na opinião de Vânia, a opção pelo carvão não é ultrapassada. “O carvão é uma das tecnologias mais abundantes do mundo e tende a ser ampliada. As térmicas a carvão antigas é que são efetivamente poluidoras”, argumenta. Ela garante que preferência da Vale continua sendo por energia hidrelétrica. Mas neste caso a pressa falou mais alto. “Prevemos que o Brasil e a Vale vão crescer no curto prazo, e hoje nenhuma outra fonte de energia pode gerar no volume e no tempo que o país precisa. Esta foi nossa opção para que não haja problema no abastecimento de energia em 2010”, diz.

Para o Ministério Público Estadual do Pará (MPE), tanta pressa foi inimiga da perfeição. Depois de analisar o estudo de impacto ambiental entregue à Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), uma comissão composta por 10 especialistas identificou falhas consideradas graves, como omissão de informações de alternativas energéticas que justificassem concretamente a opção pela térmica. “Temos o direito como sociedade de discutir todas as alternativas de geração de energia e a empresa não se dispôs a isso”, afirma o promotor Raimundo Moraes.

Segundo ele, a primeira medida seria economizar, modernizar motores, investir em energia solar, biomassa e especialmente eólica. “Um dos maiores potenciais de geração de energia eólica está no litoral Norte, até mesmo em Barcarena, que já fica dentro de uma região estuarina”, garante ele. Pelo estudo do MPE, a potência eólica da região norte (basicamente nas costas do Amapá e do Pará) é da ordem de 12.840 MW, enquanto a térmica de Barcarena está prevista para gerar 600MW, sendo que vai vender apenas metade disso para o Sistema Interligado Nacional (SIN). “A energia eólica é uma alternativa interessante, mas o mundo está começando a pesquisá-la e não é possível gerar no volume de que se necessita”, rebate Vânia, da Vale do Rio Doce.

Essa urgência por ampliação da oferta de energia tem se tornado conhecida dos brasileiros, que escutam todos os meses de alguns especialistas e da Casa Civil que em 2010 o país vai viver um apagão se não aprovar os novos projetos de geração. Apesar disso, nem mesmo o governo reconheceu a emergência pela térmica de Barcarena, uma vez que o empreendimento não está relacionado no Plano Decenal de Expansão de Energia 2007-2016, elaborando e revisado anualmente pela Empresa de Planejamento Energético (EPE), do Ministério de Minas e Energia.

“Só dá para entender a lógica da Vale se pensarmos no critério exclusivamente econômico, pois a térmica vai gerar energia mais barata e mais rápida. Não existe interesse público nisso”, opina Moraes, do MPE. “Por que, em nome do cronograma da Vale, a sociedade tem que suportar os custos sócio-ambientais, os custos dos rejeitos?”, indaga-se.

O projeto

Segundo o relatório de impacto ambiental (RIMA), documento público que resume as informações que devem vir detalhadas no estudo de impacto ambiental, o empreendimento vai ser erguido na zona industrial do município de Barcarena, e ocupará 120 hectares. No entanto, vai afetar diretamente uma área maior, de 380 hectares cobertos por floresta, dos quais 105 serão derrubados para darem lugar à usina em si, um pátio de carvão e outro para as cinzas, geradas no processo de queima do combustível. Se o licenciamento correr no tempo previsto, ela entra em operação no segundo semestre de 2010, portanto, daqui a pouco menos de três anos.

Depósito de cinzas

A Vale afirma que vai precisar de 1,5 toneladas de carvão mineral por ano para operar a usina de Barcarena e que para ter mais qualidade do produto, não vai aproveitá-lo do Brasil. “Só a região Sul produz, e mesmo assim é um carvão com alto teor de cinzas. Não compensa transportar, não é eficiente”, diz Vânia. Em vez disso, a companhia informou que vai trazer o material da Colômbia. Só que no relatório de impacto ambiental, deixa claro que também pode optar pelo carvão extraído das minas de Moçambique. E o Ministério Público ataca, dizendo que no estudo de impacto ambiental a origem dos insumos não é devidamente informada, nem sua certificação e estabilidade dos fornecedores.

“Eles têm carvão barato na África e toda infra-estrutura de transporte. Não vão comprar minério, quando podem trazer a custos muito baixos”, afirma o promotor Moraes. “O volume de cinzas a ser gerado é outra coisa monstruosa”, diz ele. De acordo com o RIMA, o pátio das cinzas terá capacidade para acumular os rejeitos por um período de 10 anos e terá várias pilhas de estocagem. Hoje esta é a única área pleiteada para o empreendimento ocupada por comunidades, com cultivos de mandioca, presença de pomares, que serão removidos de uma área de 240 hectares para dar lugar a um depósito a céu aberto que vai receber 13 toneladas de cinzas e gesso por hora. “São 566 toneladas de rejeitos por dia, que poderiam servir de insumos para outros processos industriais, como a produção de telhas”, sugere. “Mas isso não consta no estudo de impacto ambiental”, afirma Moraes.

“Esses gases e as cinzas podem gerar problemas de saúde pública. Acidentes acontecem. Quem garante que num dia de ventania e turbulências do clima as cinzas não sejam levantadas?”, pergunta. A usina está prevista para ser erguida na área industrial do município de Barcarena, onde, segundo estudo do MPE, já existem poluentes em concentrações próximas aos limites legais. “Nas audiências públicas, só quando pressionamos a empresa, eles disseram que os médicos da Vale vão monitorar a saúde da cidade através de parcerias com o poder público, como se isso não fosse obrigação deles”, explica Moraes.

Compensação relativa

Quando perguntada de que maneira vai compensar o passivo ambiental gerado pela térmica de Barcarena, a Vale do Rio Doce não reconheceu que ele sequer existirá em se tratando de carbono. A empresa diz que já está pagando o preço por esse tipo de emissão, na medida em que ela é responsável por manter áreas florestadas e promover plantios para seqüestro de gás carbônico. “Já estamos na casa de um bilhão de toneladas de carbono seqüestrados pela Vale, o que significa 312 térmicas iguais à usina de Barcarena. E ainda vamos plantar mais 350 milhões de árvores até 2010”, informa.

Os números não impressionam o Ministério Público, para quem esse é um argumento no mínimo desonesto. “A Vale é responsável por manter a Floresta Nacional de Carajás, por exemplo, porque outro licenciamento ambiental a obrigou a isso. Mesmo assim, esta não é uma floresta sumidouro de carbono, porque a maior parte desse seqüestro ocorre quando as árvores são jovens”, rebate Moraes. “Se isso fosse verdade, eles teriam mostrado no estudo de impacto ambiental”.

“Vamos seqüestrar oito toneladas de carbono por ano, quando a usina vai emitir dois milhões de toneladas de gás carbônico (CO2). O saldo é positivo”, considerou a empresa, que se compara ao desempenho dos concorrentes para relativizar o peso de suas emissões. “De acordo com o inventário da Vale, em 2005 a companhia emitiu 11 milhões de toneladas de CO2. A Rio Tinto emitiu 28 milhões e a BHP, 51 milhões naquele ano”, informa.

Outras dúvidas

Ainda segundo a análise do estudo de impacto ambiental coordenada pelo Ministério Público, o documento não faz referência ao controle da emissão de mercúrio nos processos industriais. Também omite impactos sócio-econômicos, de qualidade do ar, da água, informações sobre seu uso, minimiza impactos referentes à estrutura do ecossistema e perda da biodiversidade, entre outros problemas.

Vê falhas na localização das áreas a serem afetadas direta e indiretamente pelos rejeitos e pela atividade da usina. Não apresenta previsão de investimentos de compensação ambiental em unidades de conservação e é vago na especificação dos programas de monitoramento e mitigação dos impactos, embora cite pelo menos 13 deles.

Diante de tantas críticas, o Ministério Público pede que o estudo de impacto ambiental apresentado pela Vale do Rio Doce não seja aprovado pela Sema. “Esse estudo foi feito de uma forma muito pouco séria e honesta, por isso ele deve ser devolvido para a empresa fazer seu dever de casa”, sugere o promotor Moraes. “Queremos um projeto de geração de energia que seja limpo, e demonstre claramente que esta é a melhor opção para a empresa e para a sociedade”, orienta.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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