Reportagens

Não afoguem as dúvidas

Governo divulga beneficiados de concessões de águas da União para cultivo de peixes. E diz que cada área terá restrições específicas. Mas impactos ambientais são questionados.

Felipe Lobo ·
11 de dezembro de 2007 · 16 anos atrás

No final do mês de outubro, a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap), vinculada à Presidência da República, lançou o primeiro de muitos editais previstos nos próximos anos para a concessão de águas da União ao cultivo privado de peixes. O local escolhido para a primeira experiência foi o reservatório da hidrelétrica de Itaipu (PR), loteado em 155 pedaços de dois mil metros quadrados cada, prontos para a outorga. Eles serão distribuídos para o mesmo número de famílias de forma gratuita, que terão o direito de uso por 20 anos. Entre os dias 9 de novembro e 8 de dezembro as prefeituras de oito municípios do estado do Paraná receberam as propostas das pessoas físicas interessadas em receber as áreas. Os vencedores serão conhecidos nesta quarta-feira.

A prática de aqüicultura em águas da União é comum ao longo de todo o território nacional, mas a grande maioria atua na ilegalidade e sem qualquer fiscalização. A iniciativa, portanto, tem em vistas regularizar o que já está em curso. Tudo vai depender do cumprimento da legislação ambiental. “Concessões de águas em reservatórios para aqüicultura são comuns em vários países. Acho uma ótima idéia, desde que feita com manejo adequado, obedecendo a capacidade de carga da região e sem conflitos com outros usos, como esporte e recreio, por exemplo”, afirma Frederico Brandini, oceanógrafo da Universidade Federal do Paraná e colunista do O Eco.

Em teoria, todos os passos necessários foram seguidos até agora. O processo é o seguinte: um produtor interessado em alguma concessão segue até a Seap em seu estado e protocola o pedido em quatro vias. De lá, elas são encaminhadas para a sede da secretaria, em Brasília, responsável por fazer duas análises técnicas. A primeira define os limites solicitados e avalia se eles estão mesmo dentro da água. Depois, existe uma perícia para avaliar se a espécie escolhida para a produção é adequada ou não à região de origem.

Caso o projeto ganhe sinal verde nas duas aferições, os outros três documentos são encaminhados para locais distintos. Um deles segue até a Agência Nacional de Águas (ANA), responsável por emitir a outorga de águas de acordo com a capacidade de carga da área. O outro vai para a Marinha, que apenas autoriza a concessão se os limites pedidos não estiverem em rota de trânsito de embarcações. A terceira ruma para o Ibama de Brasília, que analisa o texto e envia um parecer ao órgão ambiental do estado onde foi realizado o pleito com recomendações para que o mesmo emita a licença ambiental. Isso tudo já foi feito com os 155 lotes do reservatório de Itaipu, que teve sua autorização consentida pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP).

Em Itaipu, os critérios para a escolha dos vencedores são bastante coesos. A pessoa que desejar a cessão, por exemplo, deve receber no máximo cinco salários mínimos por mês. Além disso, conta pontos ser pescador artesanal, produtor rural, beneficiário de algum projeto social do governo ou ter sido atingido por barragens. No caso de Itaipu, apenas o cultivo de pacu entrou no edital. “Lá não podem ser usadas espécies exóticas por causa de um acordo que existe entre o Brasil e o Paraguai. A escolha específica desta espécie é porque o Brasil domina a tecnologia de produção e também por haver um bom mercado local para receber o projeto”, explica Marcelo Sampaio, Coordenador de Aqüicultura Continental da Seap. Nos outros locais de concessão, o tipo de peixe autorizado dependerá das restrições estaduais. Mas as espécies exóticas não estão descartadas.

As águas da União

Mas não apenas no continente haverá outorga de águas da União. Os litorais de Pernambuco e São Paulo serão os próximos a receber o cultivo legal de peixes, numa área total de e 178,5 hectares. A diferença é que, nesses dois casos, o edital será oneroso e destinado a empresas. Vence aquela que apresentar a melhor relação entre preço/ impacto ambiental na hora da abertura dos envelopes. Segundo a Seap, não existe uma regra fixada para que apenas empresas ou famílias concorram às áreas. Dependerá sempre da demanda no local. A secretaria informou ainda que deve abrir os trâmites das cessões ainda este ano, junto com outros dois reservatórios nos interiores do Ceará e Pernambuco, novamente.

Mesmo assim, o Diretor de Desenvolvimento de Aqüicultura da Seap, Felipe Mathias, faz questão de lembrar que menos de 1% do potencial hídrico pertencente ao governo será emprestado. E ele também mostra preocupação em se apresentar atento aos possíveis impactos ambientais dessa cessão. “As fezes dos peixes e restos de ração podem contaminar o ecossistema porque caem e se transformam em matéria orgânica. Até um certo nível, elas são boas porque servem de alimento para as espécies primárias, mas o seu nível precisa ser estudado. Em excesso, pode aumentar o número de algas que consomem oxigênio e prejudicar o açude”, avalia.

Impactos ambientais

O principal problema, na verdade, é que os danos decorrentes do cultivo de espécies em águas são muito pouco estudados no Brasil. De acordo com o fundador do Projeto Baleia Franca, José Truda Palazzo, os órgãos estaduais ainda não têm competência para analisar esses impactos no momento de conceder a licença. “Nas áreas marinhas, por exemplo, a ocupação de espaços de uso de espécies como os cetáceos (baleias, botos e golfinhos), que muitas vezes dependem da mesma área abrigada para parte de seu ciclo vital, é um problema”, diz. Sua opinião é a mesma de Brandini. “Na maricultura com tanques-rede é preciso que a quantidade de peixes obedeça a capacidade de carga no ambiente e que o equipamento seja instalado em áreas afastadas da costa, para reduzir ao máximo a bioencrustação”, afirma.

A maricultura, segundo Truda, é muito bem-vinda por um importante aspecto: ela ajuda a reduzir a pressão causada pela pesca predatória, já que os peixes passam a ser comprados, introduzidos nas áreas destinadas e engordados para a venda. Mas é necessário que os critérios ambientais sejam cumpridos. “Eu sugeriria a proibição do uso de antibióticos e químicos nos processos produtivos, controle sobre o uso de rações e fiscalização estrita sobre o uso de espécies exóticas. Fora isso, eu não daria nenhuma concessão para unidades de conservação, à exceção de reservas extrativistas e áreas de proteção ambiental, exclusivamente para as comunidades pesqueiras tradicionais das próprias áreas. Isso se não houver outros impedimentos ambientais”, analisa.

As preocupações de Truda são pertinentes, e a Seap tenta tranqüilizar quem ainda está com um pé atrás diante dessa perspectiva de mais concessões. De acordo com a secretaria, as águas só serão concedidas onde for permitido por lei. A instituição avisa, por exemplo, que não tem ingerência sobre gestão ambiental e só vai desenvolver estudos para possível cessão onde os órgãos ambientais permitirem a atividade.

Não é somente o litoral que pode sofrer com os danos de uma aqüicultura mal feita. Os reservatórios, apesar de serem lagos criados pelo homem, também são suscetíveis à eutrofização (fenômeno causado pelo excesso de nutrientes na água, que pode provocar proliferação de algas e perda de oxigênio) em virtude do acúmulo de ração. Caso isso aconteça, a poluição pode tomar conta de todo a extensão do açude. Mas há maneiras de se precaver. “Cabe aos aqüacultores controlar o uso. Trata-se de uma boa alternativa de proteína para o nordeste e áreas carentes. Além disso, enquanto os peixes estiverem vivos é um bom sinal de água com qualidade”, explica Brandini.

Muitos processos

Até outubro deste ano, a cessão de águas públicas ficava a cargo da Secretaria de Patrimônio da União (SPU). De acordo com Felipe Mathias, isso atrasava bastante o processo, já que a repartição não tinha pessoal técnico capacitado para cumprir a determinação “Por isso, nunca houve concessão”, explica. O número de processos engavetados já chega à casa dos milhares, e os editais que vão sair devem se basear nas áreas onde houve maior demanda até hoje. “Por volta de 1992 alguns produtores e técnicos do estado de São Paulo tiveram a idéia de criar peixe em seus enormes reservatórios. Mas queriam saber como deveriam proceder para se regularizar. De lá para cá passaram três governos e nada se resolveu”, reclama Mathias.

Os cálculos da Seap indicam que a produção brasileira deve sair do patamar de 260 mil toneladas de peixe produzidas no ano de 2005 para cerca de 700 mil toneladas em três anos. Pelo que parece, o saldo econômico será bastante positivo para o governo. Resta saber se as prerrogativas ambientais serão analisadas com cautela ou se o poder do crescimento a qualquer custo vai atropelá-las. Dúvida pertinente, ainda mais em um país no qual o presidente não entende porque a criação de tilápias não é permitida na represa de Itaipu, conforme sugeriu Lula durante apresentação do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite, no mês passado, no Rio. “Vou levar as pessoas que proíbem [as tilápias] para conhecer as que eu tenho”, disse o presidente.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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