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Vida de tubarão não é fácil. Por estar entre os maiores predadores dos oceanos e protagonizar incidentes fatais, é visto com temor e pânico em praias pernambucanas. No litoral de São Paulo, o medo é substituído pelo prazer da boa mesa que, entre os apreciadores das delícias orientais, é sinônimo de barbatanas. A pesca está transferindo dos mares diferentes espécies de cação-anjo diretamente para o volume II do Livro Vermelho das Espécies Ameaçadas de Extinção no Brasil.
Ainda pior, esse líder da cadeia alimentar marinha está sob risco de desaparecer antes mesmo de ter seus hábitos e características completamente conhecidos por biólogos ou pescadores. Ao ser capturado em embarcações industriais ou mesmo em barcos de pesca artesanal, com pouco critério é classificado como cação. Detalhes de cada uma das 400 espécies existentes vão para a vala comum.
Mas não são apenas notícias ruins que rondam os tubarões. A boa nova é exatamente uma consequência dos ataques aos praticantes do surf nas praias do Grande Recife, em Pernambuco. A morte de mais de 50 surfistas e banhistas neste estado criou um Comitê de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit), que começou com um trabalho de pesca seletiva nem sempre bem-sucedida e agora trata de preencher uma lacuna científica no capítulo dedicado a essas magníficas criaturas.
O braço acadêmico do Cemit, o departamento de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), dirigido pelo professor Fábio Hazin, está transformando ações que buscavam evitar os encontros entre predador e os homens no mar em dados inéditos e valiosos. Por conta da coleta de informações realizada, sabe-se agora informações como o tempo de gestação, período de acasalamento, hábitos e horários de caça, além de outras informações sobre o tubarão-flamengo, principal espécie capturada pelo barco Sinuelo, nas expedições realizadas entre maio de 2004 e maio de 2007.
Os dados constam do levantamento ainda inédito no meio científico, Aspectos biológicos dos tubarões capturados fora da Costa de Pernambuco, Nordeste do Brasil, que oferece informações detalhadas dos 117 exemplares retirados do mar em três anos de trabalho. Entre os capturados, 86 (73,5%) eram tubarões-flamengo, uma espécie não agressiva que atinge até 1,80m e é freqüentadora do litoral do Nordeste.
Por causa da quantidade de tubarões-flamengo capturada, foi realizado um estudo detalhado sobre seu ciclo reprodutivo e costumes alimentares. Fábio Hazin, professores e alunos do departamento de Pesca coletaram informações que permitem conhecer com de forma mais precisa os tubarões-flamengo. Por exemplo, os pesquisadores agora atestam que o tamanho do nascimento desses animais não é de 45cm, como estudos até agora apontavam. Entre as 20 fêmeas grávidas capturadas, em duas foram verificados embriões com 50cm e 62cm.
Sem sacrifício
A boa novas estão dentro do leque de conhecimento coletado pelos pesquisadores da UFRPE que encerraram uma fase de necropsias com a análise destes 117 peixes (86 tubarões-flamengo, 20 tigre, 6 cabeça-chata, 3 galha-preta e 2 martelos). Uma nova fase vai prescindir do sacrifício dos animais. Prática essa que Fábio Hazin, por sinal, faz questão de destacar que, a exceção dos tipos agressivos (tigre, cabeça-chata e galha-preta), todos os outros peixes capturados com vida (tubarões ou não), foram devolvidos ao mar. Desde 2008, até mesmo exemplares de tigres, cabeças-chatas e galhas-pretas são marcados e devolvidos ao mar, no distante talude continental.
O samburá de conhecimento adquirido extrapola os dados biológicos. No início das missões do Sinuelo, por exemplo, as captura de espécies bentônicas (aquelas que vivem no fundo do mar e não protagonizam incidentes) foi alertada pelo biólogo Marcelo Szpilman, diretor do Instituto Ecológico Aqualung e militante contrário a pesca de tubarões. Szpilman alertou que os espinhéis estavam muito profundos e foram colocados à meia-água (cerca de 15m de profundidade). O espinhel é composto por uma linha, presa na superfície por bóias, que segura cerca de cem anzóis, no caso do Sinuelo.
O trabalho de captura também chegou ao anzol circular, modelo que substituiu todos os outros em formato de “J” que eram então utilizados. O modelo antigo era responsável por ferimentos que invariavelmente levavam os animas à morte. O circular, que tem o formato mais parecido com um “G” permitiu novos índices de sobrevida dos peixes, em especial dos animais marinhos que não eram tubarões.
O anzol circular em forma de “G” saiu da academia e está sendo aplicado na pesca de atuns no Rio Grande do Norte, orgulha-se Fábio Hazin. Ele conta que apenas os atuneiros potiguares são responsáveis pela pesca de 5 mil toneladas de tubarão ao ano (em Pernambuco, a pesca de tubarão soma 37 toneladas de acordo com registros do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade). Com o uso dos anzóis circulares, esses pescadores de volumes industriais dedicam-se com foco ao seu objetivo: pescar atum. Ponto para os tubarões (e tartarugas, agulhões brancos, agulhões negros, raias oceânicas e raias roxas que eram fisgados).
Tubarões marcados
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Bom com o novo anzol, melhor com o trabalho de marcações. Desde 2008, até mesmo os espécimes agressivos são marcados antes de serem devolvidos ao mar. Os tubarões tigre têm uma etiqueta plástica afixada, recebem uma cápsula que emitirá sinais acústicos e um marcador que se comunicará diretamente com um satélite.
Os marcadores plásticos identificam o animal para o caso dele ser recapturado tempos depois. O marcador acústico enviará sinais que serão captados ao longo dos 25km do litoral do Grande Recife, que abrange com folga os locais onde ocorreram os incidentes com tubarões. Os sinais vão informar se os animais estão migrando ou fixos em um território e quanto tempo levam em determinado percurso.
Os marcadores , maiores e externos, ficarão com o peixe por 30 dias, depois se depreendem, sobem à superfície e se comunicam com um satélite. As informações que serão recebidas incluem posição geográfica no decorrer do tempo, a temperatura da água e a profundidade preferidas pelo tubarão. São dados precisos, sob rigor científico e inéditos para o estudo da biologia marinha.
O plano da equipe de Fábio Hazin é utilizar a etiqueta, o sinalizador acústico e marcador em seis tubarões tigre. O grupo também planeja marcar quatro tubarões lixa com etiqueta plástica, marcador acústico e injeção de tetraciclina. “Com a aplicação, nós realizamos uma marcação azulada na vértebra do animal que permitirá, quando ele for recapturado, conhecer a taxa de crescimento da espécie”. A partir desta informação, os biólogos que capturarem tubarões lixas vão ter condições de estimar com grande aproximação a idade do peixe apenas sua medição.
“São informações necessárias e fundamentais para a preservação desses animais. Antes pouco conhecíamos a respeito deles e hoje sabemos muito sobre o ciclo reprodutivo dessas espécies, por isso agora temos condições de subsidiar políticas para proibir a pesca de tubarões quando as fêmeas estão tendo seus filhotes”, argumenta Fábio Hazin.
Equilíbrio marinho
A proteção dos tubarões é fundamental para o equilíbrio do meio marinho, argumenta o biólogo Carolus Vooren, do departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande, na cidade gaúcha de Rio Grande. Vooren conta que no mar existem três tipos de seres vivos: produtores, consumidores e decompositores. A vegetação, muito dela microscópica, é um exemplo de produtores. Os atuns, raias e tubarões são consumidores. Comem de tudo e aproveitam 10% do que ingerem, devolvendo ao meio o restante. Suas excreções serão aproveitadas pelos decompositores, as bactérias, que as transformam em sais de fósforo e de nitrogênio para a água, que passa a ser fértil. “Se a população de consumidores é menor, o ecossistema se torna pobre. Se formos comparar com um solo, sem equilíbrio ele perde a fertilidade”.
Tem a assinatura do professor Vooren muitos dos trabalhos que servem de base para classificar 10 espécies de tubarão no do Livro Vermelho das Espécies Ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente. Os tubarões representam mais da metade das 19 espécies de animais marinhos ameaçados. A pesca industrial, em especial por redes que arrastam o que tiver pela frente, é a responsável pelo massacre.
O equilíbrio natural, em geral, prevê que animais grandes tenham uma gestação maior. A fêmea desse predador sem adversários naturais no meio marinho passa meses com o filhote antes do parto. O número de meses pode variar de acordo com a espécie e a temperatura da água, conforme estudos de Fábio Hazin. Cada fêmea tem poucos filhotes por ano, de quatro a quinze. É por esta razão que a pesca deste grande peixe preocupa. A reposição do estoque da espécie é lenta.
O Projeto Tubarões no Brasil (Protuba), dentro de sua campanha contra o consumo de barbatana, realizou a Pesquisa Nacional de Comportamento e Percepção do Consumidor de Cação. A estratificação de 1.400 questionários revela como a carne do tubarão é popular, sendo apreciada por 37% dos entrevistados.
Os moradores de São Paulo (diferentes de moradores de outros estados do país) são apontados na pesquisa como maiores consumidores de da carne de cação (69%), apreciadores de barbatana de tubarão (17%) e da cartilagem do animal (10%).
* Celso Calheiro é jornalista em Recife.
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