Reportagens

Cacos do litoral sulista

Levantamento conservacionista em 89 municípios revela inexistência de ecossistemas íntegros, além de descaso institucional para tentar salvar remanescentes.

Andreia Fanzeres ·
17 de fevereiro de 2010 · 14 anos atrás

A zona costeira dos três estados do Sul brasileiro passaram pelo olhar crítico do médico veterinário Adalberto Eberhard, fundador da organização Ecotrópica e uma das maiores referências sobre conservação no Pantanal. Depois de décadas se dedicando às áreas alagadas do centro do país, o gaúcho Eberhard voltou a locais que fizeram parte de sua formação conservacionista esperando encontrar não só remanescentes da natureza no litoral sulista, mas sinais do então próspero movimento ambientalista do qual fez parte nos anos 70 e 80, ao lado de José Lutzemberger. Não encontrou nenhuma coisa nem outra.

Entre 2005 e 2007, percorreu sozinho em seu gol vermelho 89 municípios no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul em onze mil quilômetros de andanças, para realizar um levantamento encomendado pela Fundação Avina. Há um ano, finalizou o inventário dos esforços de conservação da natureza no litoral sul do Brasil, com a intenção de mostrar, sem rigor científico, como se encontrava a costa desses três estados em termos de gestão do meio ambiente e conservação.

Para isso, visitou mais de 200 lagoas, lagunas, banhados e açudes artificiais, e os ecossistemas aquáticos em que esses ambientes estão ou deveriam estar. Não foi uma busca técnica, aliás, esteve longe disso. Havia a limitação do acesso por um carro não tracionado, e uma orientação por imagens de satélite. Mas o levantamento contém descrições minuciosas em suas 178 páginas. Nelas, a conclusão é que, com a honrosa exceção de partes do litoral paranaense protegidas por um mosaico de unidades de conservação, a costa do Sul do país virou um conjunto de zonas mortas.

Pequenas e vulneráveis

Áreas de preservação permanente destruídas ao longo dos rios. Paisagem dominante na região. Fonte: Google Earth.
Áreas de preservação permanente destruídas ao longo dos rios. Paisagem dominante na região. Fonte: Google Earth.

Tecnicamente, zonas mortas são áreas consideradas por autores como Robert J. Diaz e Rutger Rosenberg, como deficientes em oxigenação da água, ao ponto de inviabilizar a vida, temporária ou permanentemente. A partir de sua observação, Eberhard resolveu incluir outros fatores nessa análise, e levou em consideração não apenas a falta de oxigenação nos corpos d’água, mas indícios como perda de vegetação no entorno das lagunas, o despejo de biocidas, e outras ameaças que podem ser tão ou mais prejudiciais ao futuro da biota desses ambientes. “Nenhum ambiente visitado está 100% íntegro”, constatou.

Na busca por remanescentes, Eberhard foi esperançoso. Mas percebeu em campo que as áreas em condições razoáveis de conservação, listadas pelo Ministério do Meio Ambiente, são em sua maioria pequenas, vulneráveis, ilhadas e em processo de degradação por efeitos de borda, avanço da agropecuária, alterações hídricas, poluição ou ocupação urbana, sem exemplares representativos da fauna nativa. “As manchas de remanescentes dos ambientes costeiros não são viáveis, a menos que medidas urgentes sejam tomadas para reconectá-las”.

Os corpos aquáticos, de modo geral, são encarados como áreas de onde a agricultura pode retirar água ou despejar resíduos. Isso faz de importantes e belos locais, ambientes cada vez mais doentes. Segundo Eberhard, a Estação Ecológica do Taim (RS), que protége legalmente as maiores extensões de banhados do sul, sobrevive articificialmente graças a um bombeamento de água, cada vez mais escassa em função da pressão de lavouras de arroz no entorno da unidade de conservação gaúcha.

Casos emblemáticos

O gol vermelho sobre a ponte sobre o rio Chuí. Retrato do Brasil (Foto: Adalberto Eberhard)
O gol vermelho sobre a ponte sobre o rio Chuí. Retrato do Brasil (Foto: Adalberto Eberhard)

O Chuí está vergonhosamente destruído. “Quem vem do Uruguai e passa pela ponte sobre o rio Chuí não precisa nem entrar no Brasil para ver como está a situação do meio ambiente no restante do país. Basta olhar para o rio, cheio de lixo, esgoto, com cabeceiras desmatadas e seco em boa parte do ano porque os arrozeiros tiram dali água para suas lavouras”.

Uma das constatações mais dramáticas foi observar o estado de conservação dos butiazais gaúchos. Este tipo de palmeira (Butia capitata) colonizava restingas, com registros também em áreas de campos onde hoje servem de pasto para animais. “Estamos assistindo pela primeira vez a extinção de um ecossistema inteiro”. As florestas de araucárias também são um ecossistema em vias de extinção, mas por menores que sejam, ainda há fragmentos protegidos por unidades de conservação. Os butiazais, nem isso.

Como os pinheiros-do-brasil, o butial em si não está em extinção. Por fazer parte da cultura sulista, e com diversos usos conhecidos — como o aproveitamento da palha para alimentar rebanhos em invernos rigorosos, forrar telhados ou apenas apreciar a fruta — ele é encontrado em praças, quintais, estradas ornamentando a zona costeira gaúcha. Mas, como ecossistema, foi destruído. Um forte indicativo de que as populações de butiais não estão saudáveis é a ausência de exemplares jovens. “O que vemos são fósseis vivos. Eles perderam a capacidade de se reproduzir por causa do permanente pastoreio do gado. Quando as árvores adultas morrerem, não haverá outras para substitui-las”, explicou o ambientalista.

Compromisso institucional

Velhos butiazeiros, últimos testemunhos da antiga paisagem tradicional de Santa Vitória do Palmar (RS).
Velhos butiazeiros, últimos testemunhos da antiga paisagem tradicional de Santa Vitória do Palmar (RS).

A dificuldade de encontrar organizações da sociedade civil atuantes na área ambiental foi um capítulo à parte na viagem de Eberhard. “Estive numa cidadezinha chamada Palmares do Sul, próxima a Porto Alegre, onde encontrei um professor de geografia que me contou que queria criar uma ONG, e foi ameaçado a ser expulso da cidade pelos arrozeiros, se levasse essa idéia adiante”. Mas não foi mais desolador do que constatar que o próprio poder público, especialmente nas cidades menores, sequer tinha conhecimento do que havia em termos de natureza em sua própria extensão territórial, muito menos estratégias para conservá-la.

Com base em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente (MMA) disponibiliza em seu site informações do censo ambiental nos municípios de 2002, Eberhard buscou as prefeituras para saber o que elas estão fazendo e o que podem melhorar em sua gestão ambiental. “Nenhum município conhecia o material que era dele mesmo. Eu fazia perguntas, e não obtive nem 1% de retorno. Apesar disso, entre os técnicos, vi muita gente bem intencionada, mas nada de concreto como postura dos municípios. É preciso criar mecanismos de fortalecimento dessas iniciativas pontuais”.

Esse primeiro e vasto olhar sobre a zona costeira do sul brasileiro gerou uma série de recomendações objetivando a realização de uma expedição científica em que cada um dos ecossistemas visitados tivesse os padrões físico-químicos e biológicos checados, no mínimo. “Uma força-tarefa deveria ser criada urgentemente para percorrer esses locais e tentar identificar os remanescentes de ecossistemas e possíveis conexões entre os fragmentos. É preciso dar sequência a esse trabalho”, diz Eberhard.

Censo ambiental nos municípios (MMA, IBGE)

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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