Reportagens

Tiro pela culatra

Proibição da caça amadora no Sul aquece debate sobre o financiamento de pesquisas com dinheiro das licenças de abate. Biólogos defendem a prática, mas ambientalistas vêem ameaças.

Aldem Bourscheit ·
11 de julho de 2008 · 16 anos atrás


O Rio Grande do Sul era o único estado onde o Ibama autorizava temporadas de caça. Isso vinha desde 1980, quando o antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF proibiu a prática no restante do País. Nos últimos anos, ambientalistas pressionaram e a Justiça interrompeu os disparos, desde 2005. A questão aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal.

Mas silenciar os rifles teve efeitos colaterais, dizem biólogos e caçadores. Um deles é o fim dos repasses da Federação Gaúcha de Caça e Tiro – FGCT. Eles financiavam pesquisas sobre populações de marrecas, perdizes e outras espécies. Além disso, fazendeiros que arrendavam áreas para caça perderam a renda extra e agora têm nas mãos o destino de inúmeros banhados. O estado perdeu mais da metade das áreas úmidas que tinha há um século. Tudo para se tornar o maior produtor nacional de arroz.

Fazendeiro na região de Mostardas, no litoral sul gaúcho, Mauro Velho alugava banhados e conta que o dinheiro representava quase 10% dos rendimentos anuais. Questionado sobre o que acontecerá aos banhados gaúchos com a suspensão da caça, foi enfático. “Só Deus sabe, mas temos que manter. O Ibama nos controla. Enquanto isso as populações de aves têm crescido. Podem virar uma praga”, comentou o arrozeiro.

Banhados de aluguel


O estudo atingiu quase 300 caçadores de oito municípios e revelou que 11% deles arrendaram áreas formalmente. Em poucos casos, até contratos eram firmados, onde o fazendeiro se comprometia a não degradar os alagados e afastar atiradores ilegais. Mais comum era o “achego”, uma “troca de favores” ou aluguel informal. Áreas úmidas naturais foram utilizadas por 65% dos entrevistados. “Isso mostra que há oportunidades para se conduzir as caçadas de forma voltada à conservação. Isso alivia a pressão da caça ilegal e do avanço do agronegócio sobre os banhados”, disse o biólogo Luís Perello.

“O caçador que arrenda paga pela conservação. Nos Estados Unidos, quem preserva áreas úmidas, inclusive para caçadas, tem desconto em impostos. Mas no Brasil há muito preconceito para se falar sobre isso”, comenta o biólogo e diretor da empresa Sigeplan – Sistemas de Gerenciamento Ambiental. Ele tem pesquisas apoiadas pela FGCT.

Banhados extensos eram arrendados por até US$ 15 mil (cerca de R$ 24 mil atualmente) durante três anos, diz o caçador Álvaro Mouawad. Ele alugava áreas úmidas há mais de duas décadas e costumava caçar na região de Mostardas, vizinha ao Parque Nacional da Lagoa do Peixe. Vendo de perto a realidade das fazendas, coloca em xeque o futuro dos banhados. “O fato de ter uma lei publicada (protegendo áreas úmidas) não significa que ela seja implementada. Quem garante que (os fazendeiros) não drenarão os alagados?”, questiona o empresário.

Ambientalistas lembram que banhados são áreas protegidas por lei e afirmam que a caça não contribui em nada para sua preservação. De acordo com a coordenadora da ONG União pela Vida – UPV, Maria Elisa Dexheimer da Silva, resta menos de 25% do Banhado de São Donato, o maior que havia no Rio Grande do Sul, e mesmo banhados cedidos à caça foram degradados. Também há o problema da contaminação por agrotóxicos e lixões. “Banhados são áreas de preservação permanente e protegidas por lei. Não é verdade que a caça tenha colaborado para protegê-los”, diz a assessora de Fauna Silvestre do Movimento Gaúcho de Defesa Animal. “Uma boa maneira de se evitar mais degradação é proibir a caça esportiva”, arremata.

Pesquisas em baixa


O biólogo Marcelo Duarte, da Fundação Zoobotânica – FZB, conta que este ano não haverá dinheiro para estudos de fauna. Ele busca levantar fundos ao menos para avaliar a situação das perdizes, mas o coordenador das pesquisas estaduais revela pouca esperança. “A FZB não tem recursos e, se for depender do estado, a tendência é de que o dinheiro não saia. O risco é perder a série histórica de monitoramento de fauna”, lamenta.

A pesquisa feita pelo estado era validada pelo Ibama, que publicava uma portaria com a quantidade de animais, espécies, regiões e períodos das caçadas. As temporadas se estendiam normalmente de maio a setembro. Os estudos envolviam dois sobrevôos pelo litoral gaúcho e fronteira oeste. Cada um custava em média R$ 35 mil. “Um censo a cada estação dava mais segurança às estimativas de fauna. Tudo era pago pelas taxas da Federação de Caça, sobrevôos, deslocamentos por terra, tudo”, comenta João Dotto, biólogo da Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam.

Segundo o pesquisador Luís Perello, os estudos realizados durante as caçadas avaliavam sexo, idade e taxas de renovação das espécies. “Muito mais poderia ter sido feito, principalmente para descobrir sobre deslocamentos e migrações”, reconhece

Conforme Duarte, da FZB, as pesquisas poderiam servir a outras situações, como no avanço das lavouras de eucaliptos na Metade Sul do estado, onde vive a perdiz e circulam outras espécies. “As informações ajudariam a medir o impacto na fauna com a introdução dessas lavouras. Serviria como um indicador ambiental pelo acúmulo de dados ao longo dos anos”, argumenta.

Mas os repasses dos caçadores e as pesquisas para cada temporada são o alvo principal dos ambientalistas. Segundo Maria Dexheimer, coordenadora da UPV, a Federação de Caça nunca foi a única fonte de financiamento da FZB e a verba destinada só cobria o monitoramento da fauna que interessava à caça, como marrecões, perdizes, marrecas caneleira e piadeira e duas espécies de pombas. “Não eram pesquisas de fauna, eram censos de aves cinegéticas (caçáveis) para cumprir um preceito legal. Os pesquisadores também se queixavam das verbas minguadas”, diz.

A ambientalista também comenta que a Fundação Zoobotânica participou, em 2006, da publicação da obra Áreas Importantes para a Conservação de Aves no Brasil, em parceria com a SAVE Brasil e com apoio da Birdlife International. “Na publicação, a caça aparece como responsável pelo desaparecimento e diminuição de muitas espécies”, afirma.

Ao longo dos anos, as cotas para abate e o número de caçadores registrados caíram vertiginosamente. Em 1976 eram seis espécies na lista de caça e a cota era de 160 animais por semana. Em anos mais recentes, foram de duas a três espécies autorizadas, com abate de 31 exemplares semanais. Já o número de caçadores caiu de 17 mil (1974) para 1,2 mil (2005). A debandada, segundo a FGCT, se deve às taxas em alta e à complexidade crescente para se adquirir licenças e equipamentos, além da pressão ambientalista.

Na Justiça

Maria Elisa Dexheimer comenta que a precariedade dos estudos para caça, na avaliação de ecologistas, levou o Movimento Gaúcho de Defesa Animal a recolher assinaturas e promover uma pesquisa de opinião no fim de 2003. “O trabalho nos convenceu de que a maior parte da população execrava essa prática”. A pressão verde cresceu com a estiagem no Verão de 2003/2004, quando vários banhados secaram e mais uma temporada de caça se aproximava. Ações judiciais foram impetradas, apontando falhas na metodologia das pesquisas. A pressão levou a Justiça a suspender as caçadas, até uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

“Tínhamos a convicção de que não havia excedente de aves e a ameaça de superpopulação de algumas espécies, sempre tão propalada, não tinha cabimento, pois as aves que eventualmente causam algum tipo de problema não são as cinegéticas. Outra questão envolve as aves compartilhadas com Argentina, Uruguai, Chile, notadamente o marrecão. Em mais de 30 anos de pesquisa, apenas duas entre mais de 17 espécies comuns com outros países foram mencionadas nos relatórios finais do Programa de Pesquisa e Monitoramento da fauna Cinegética do Rio Grande do Sul”, comenta a ambientalista.

Enquanto a causa tramita no Judiciário, o tiroteio continua. Ano passado foram registradas 121 autuações em 52 municípios gaúchos por crimes como caça e transporte ilegal de animais, segundo o Ibama. As multas somam quase R$ 1 milhão. Não esquecendo que caçadores clandestinos raramente são pegos em flagrante. “A caça foi proibida, mas é óbvio que as pessoas estão caçando. Em todo o lugar se ouvem os estampidos”, ressalta o biólogo Luís Perello.

Há oito anos na Patrulha Ambiental da Brigada Militar, o capitão Rodrigo Gonçalves dos Santos diz que a caça amadora contribuía com a fiscalização. “Pessoalmente não aprecio a prática, mas os caçadores legalizados não gostavam de concorrência e nas temporadas as autuações e prisões de ilegais eram maiores”. “Hoje estão caçando mais do que antes. A caça controlada era um reforço para a fiscalização”, conta.

Biólogo da Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam que acompanhava fiscalizações a cada temporada, João Dotto acredita que a fiscalização perde sem as barreiras em estradas e rodovias. “Até no bagageiro de ônibus de turismo encontrávamos caça ilegal. As barreiras representavam a presença do Estado”, comenta.

“Vamos brigar até o fim. Proibir a caça não é um ganho para a fauna. É mais fácil manter uma espécie atribuindo-lhe um valor econômico, assim como para florestas e outros recursos naturais renováveis”, diz o presidente da FGCT, Lúcio Sesti Paz.

Chumbo livre

Legais ou ilegais, as caçadas deixam rastros de chumbo no ambiente. A intoxicação pelo material pode causar Saturnismo e outras doenças. Segundo Maria Dexheimer, uma quantidade imensa do metal já foi despejada em banhados e outras formações no estado pelos tiros desperdiçados. “Tanto caçadores quanto a Fundação Zoobotânica não gostam de lembrar do assunto”, afirma.

Conforme a ambientalista, nos Estados Unidos é proibido caçar com chumbo em áreas úmidas e na Espanha e Portugal estima-se em 70 mil mortes anuais de aves causadas pela ingestão direta e indireta do poluente. “Proteger os banhados pede ações mais efetivas”, ressalta.

Admitindo a falta de estudos sobre os problemas causados pelo chumbo, o biólogo Luís Perello relativiza o tamanho do impacto. “Desde 1890 a literatura internacional mostra casos de aves contaminadas, mas no Rio Grande do Sul não sabemos o tamanho disso”, diz.

Para ele, a munição de caça é menos relevante que outras fontes de chumbo, como as indústrias. Sobre os Estados Unidos, o pesquisador conta que só em 2006 foram emitidas mais de 12 milhões de licenças de caça, quase três milhões para aves aquáticas. No Rio Grande do Sul, a última temporada (2005) tinha 1,2 mil caçadores. “O número de atiradores é muito maior que no Brasil”, argumenta. Ele recomenda a troca do chumbo por aço e outros materiais.

Mas a polêmica, pelo visto, não tem hora para acabar. “Se há mesmo problema de superpopulação de alguma espécie, foi criado pela própria ação humana. Criam um problema e vendem uma solução, pela caça. Eles (caçadores e governos) precisam achar outras alternativas”, ressalta Maria Dexheimer, da UPV.

º Leia entrevista com o engenheiro agrônomo e zoólogo João Carlos Carvalho, caçador experimentado e defensor de legalização da prática

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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