Nove em cada dez estudos de impacto ambiental recebidos pelo Ibama precisam ser complementados ou refeitos. O principal motivo é a sua má qualidade, dizem fontes ligadas ao licenciamento federal. Resolver falhas nos documentos que devem reduzir os danos à natureza exige mais tempo e dinheiro, atrasa empreendimentos e eleva pressões governistas e privadas sobre o setor ambiental. Em um país que planeja pouco, o licenciamento se tornou a Geni do desenvolvimento econômico.
Para o professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP e membro da Associação Internacional para Avaliação de Impacto – Iaia (sigla em inglês), Luis Enrique Sanchéz, a qualidade dos estudos sobre danos ambientais (EIA/Rimas) provocados por empreendimentos e outras atividades influi diretamente na velocidade de sua avaliação. “O licenciamento ainda é visto como mera formalidade a ser cumprida no menor prazo e com menor custo possível, e que de preferência não interfira em nada nos projetos. Mas EIA/Rimas mal feitos exigem complementos e levam a atrasos, enquanto estudos qualificados economizam tempo, evitam ações judiciais e podem até reduzir taxas para compensação ambiental”, avalia.
Cada retrabalho retarda a liberação de licenças federais entre três e seis meses. Casos mais complexos exigem novas viagens a campo e prazos mais longos. “Quando o órgão ambiental pede complementações para estudos, é visto como chato, um entrave ao desenvolvimento”, comenta um servidor do Ibama, que não quis se identificar.
O leque de problemas nos estudos feitos por consultorias ou empreendedores é vasto. Inclui cópia de textos, inclusive da Internet, troca de nomes de animais e plantas, estudos sem autorização, dados desatualizados ou mal colhidos, “camuflagem” de espécies raras ou ameaçadas, falta de mapas e gráficos, araucárias avistadas na Caatinga e até turbinas para geração de energia projetadas sobre rodovias. Nos estudos sobre a Usina de Barra Grande (SC/RS) foram “esquecidos” mais de dois mil hectares de matas com ameaçadas araucárias. A obra foi consumada.
“O problema é converter diagnósticos mal feitos em análises de impacto ambiental, onde quase todos os efeitos são negativos e irreversíveis. Muitos (estudos) são feitos em gabinetes e não fornecem elementos adequados para decisões técnicas”, conta Glenn Switkes, diretor para América Latina da ONG International Rivers.
Entrave freqüente é o desrespeito aos termos de referência (TRs), uma espécie de guia para os EIA/Rimas. O Ibama já tem termos para os setores de petróleo e gás, geração de energia e outros. Cada obra tem seu próprio TR, montado a partir dos procedimentos básicos e debatido entre Ibama e empreendedores. Mesmo assim, diz uma fonte do Ibama, estudos são feitos sem esses documentos ou desrespeitando suas diretrizes. “Depois, alguns empreendedores tentam ajustar os termos aos EIA/Rimas, fazendo o caminho inverso”, revela.
Contratações tortas
Com mais de 50 pareceres técnicos elaborados para o Ibama sobre obras de infra-estrutura no currículo, o biólogo e consultor Marcelo Gonçalves de Lima afirma que o desrespeito aos termos de referência é comum e ligado ao modo como os estudos são elaborados. Também há equipes inexperientes, pequenas e com prazo reduzido para atuar. “Há influências pessoais, políticas e econômicas (nos estudos). Existem casos onde doutores e PhDs contratados por consultorias apenas assinam o trabalho feito por estudantes e estagiários”, diz.
De início o drible pode ser mais barato, mas análises grosseiras sempre cobram um preço. Lima também informa que estudos feitos a toque de caixa podem não colocar na balança dados sobre floração, frutificação e migrações de fauna, que variam ao longo do ano. “Se o estudo não é feito corretamente e, por exemplo, surge uma espécie rara, a obra pode ser paralisada. O melhor é sempre elaborar os EIA/Rimas da melhor maneira possível”, ressalta.
No caso da Usina de Ipueiras, no Tocantins, o estudo de impacto foi bem feito e o empreendimento mostrou-se inviável do ponto de vista ambiental e energético. Maior lago de barragem projetado, alagaria quase mil quilômetros quadrados de Cerrado para gerar apenas 480 Megawatts. A obra não saiu, mas evitaram-se mais investimentos e perdas ambientais. “Com termos de referência de qualidade, boa fé dos empreendedores e das consultorias, sempre se economiza tempo e dinheiro”, comenta Lima, doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília.
De acordo com Luis Sánchez, da Iaia, uma visão “fechada e burocrática” leva empreendedores a não observar o valor estratégico dos EIA/Rimas e a contratar consultorias pelo menor preço. “Estudos bem feitos valorizam a imagem da empresa, reduzem prazos e economizam em embargos, ações judiciais e paralisações dos empreendimentos”, diz o professor da USP.
Atuando nesse mercado desde 1989, o engenheiro Ivan Telles de Sousa, vice-presidente da consultoria Ecology Brasil, afirma que contratar assim pode ser uma armadilha. “Muitas empresas buscam só o menor preço e contratam problemas”, comenta.
Curiosamente, mesmo com a ficha suja, várias consultorias seguem ligadas ao Cadastro Técnico Federal, prontas para novos EIA/Rimas. Não há previsão legal para que deixem a listagem oficial, que tem 2,8 mil empresas regularizadas. Por isso, o governo pensa em veicular na Internet um sistema de pontuação sobre o desempenho desses escritórios. Também há um número muito grande de empresas com atuação local e regional. “Na prática, ninguém sabe quantas dessas consultorias existem no País”, comenta Sánchez, da USP.
Tema de casa
O atraso na liberação de licenças é influenciado pela qualidade dos EIA/Rimas, mas não só por isso. A degradação do Ibama e burocracias também pesam na balança. As deficiências internas incluem falta de condições de trabalho, de capacitação, de planos de carreira, equipes reduzidas e bancos de dados incompletos. O órgão tem hoje 1.150 processos de licenciamento espalhados nos escaninhos de aproximadamente 140 pessoas. Poderia ter quase o dobro, não fosse a evasão de servidores.
Na última semana, mesmo com a promessa de não perder trabalhadores, o Ibama viu oito técnicos pedirem demissão. Muitos se qualificam e seguem para o setor privado ou outros órgãos de governo. “Os concursos realizados até hoje só compensaram perdas nos quadros”, diz uma fonte do licenciamento federal.
A falta de investimentos em recursos humanos mereceu um capítulo do relatório divulgado em junho pelo Tribunal de Contas da União – TCU. O estudo constatou que o número de servidores está muito abaixo do necessário, sem falar na falta de capacitação. O recado do tribunal foi claro: falta concurso público especializado para o licenciamento. Nessas condições, a satisfação do servidor também vai para o ralo, carregando sua produtividade em serviço. O TCU concluiu que a remuneração na área é menor do que a de servidores em carreiras semelhantes, como na Agência Nacional de Águas – ANA.
Como se não bastasse, o espaço físico para o trabalho de rotina é insuficiente e nem todos os processos em papel têm lugar para serem armazenados corretamente. A situação nos estados e nas outras unidades do Ibama também não é muito diferente, razão pela qual não tem sido possível transferir demandas de licenciamento de Brasília. Sem falar de alguns efeitos colaterais da “descentralização”, como os verificados em Rondônia.
A análise do tribunal também revela falta de articulação entre órgãos de governo na hora de processar licenças e estudos ambientais. Constatou até que a comunicação entre Ibama, Fundação Nacional do Índio – Funai e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan depende de canais informais.
A papelada de um licenciamento circula por vários órgãos governamentais. O processo de uma hidrelétrica, por exemplo, pode percorrer escaninhos no Ibama, Funai, Iphan, Empresa de Pesquisa Energética, Aneel, Fundação Palmares, Incra, secretarias estaduais de meio ambiente, prefeituras, ONGs, ministérios públicos Federal e estaduais, organismos de Saúde e ICMBio. Além disso, há o debate com populações atingidas, tradicionais ou não. Quando essa maratona ocorre sem planejamento, sem prazos definidos e seguros e de forma atabalhoada, o resultado é a “inclusão de obras em programas de governo sem o necessário cuidado com a proteção ambiental”, diz o TCU.
Conforme Ivan Sousa, da consultoria Ecology Brasil, o licenciamento de uma linha de transmissão, de uma rodovia ou gasoduto leva em média 18 meses, de uma pequena central hidrelétrica cerca de um ano. O mesmo vale para uma termelétrica a gás natural, mas se ela for a carvão, o tempo sobre para dois anos. Já uma grande barragem exige de três a quatro anos para ser licenciada. “Pr isso o Brasil precisa planejar melhor seus empreendimentos. Não pode fazer obras por espasmos”, recomenda o engenheiro.
Pela frente
O governo promete tirar em breve da cartola medidas que tornarão o licenciamento mais ágil e eficiente, sem aliviar a proteção ambiental. As primeiras propostas podem chegar esta semana à mesa do ministro Carlos Minc (Meio Ambiente). Isso se as polêmicas internas do Ibama permitirem. Técnicos e analistas não querem acelerar seu trabalho sem mudanças na legislação, que fixa prazo de um ano para a emissão das licenças prévias. Cada retrabalho tranca o relógio. Mesmo assim, vale lembrar que, desde 2003, a emissão de licenças pelo Ibama só cresce (gráfico abaixo). Este ano já foram 187 processos assinados pelo órgão ambiental.
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