Reportagens

O xerife de Corupá

O físico Germano Woehl ganha a vida nos laboratórios do CTA e dá todo seu tempo livre a uma ONG minúscula, mas está comprando brigas de gente grande.

Marcos Sá Corrêa ·
11 de janeiro de 2005 · 19 anos atrás

O físico Germano Woehl Júnior (foto) é o primeiro a se espantar com sua repentina popularidade. Aos 44 anos, tendo passado a maior parte da vida entre o laboratório de Fotônica do Instituto de Estudos Avançados do Centro Técnico Aeroespacial de São José dos Campos e as trilhas onde estuda sapos, rãs e pererecas no meio do mato, ele se surpreendeu outro dia com a recepção que lhe deram em Corupá, no norte de Santa Catarina.

Estava lá para “fotografar anfíbios”. E foi reconhecido pelos agricultores da região, que tinham acompanhado “pelo rádio, pelos jornais e pela televisão” sua luta contra o projeto de uma hidrelétrica na Bruaca, a cachoeira de 96 metros que coroa o município, nas faldas da Serra do Mar. Na semana passada, assim que a Fundação do Meio Ambiente do governo estadual cancelou a licença para as obras da usina, Germano descobriu que naquela “localidade rural” também existe opinião pública. E que agora essa opinião pública torce por ele.

“Fiquei impressionado”, diz Germano. A 50 quilômetros dali, em Guaramirim, ele toca com a mulher, a professora de educação física Elza Nishimira Woehl (foto), o Instituto Rã-Bugio, pequena organização ambientalista que investiu de personalidade jurídica o trabalho voluntário que o casal fazia desde 1998. A ONG cabe nos bancos dianteiros do jipe Toyota em que Elza e Germano percorrem as serras de Santa Catarina. Mas desde a luta pela preservação da Bruaca seu endereço eletrônico recebe mensagens de “admiradores” que antes não tinha ou, se tinha, desconhecia. Por exemplo: “Terei que agradecer a você e ao Rã-Bugio pelo resto de meus dias, quando me deparar com a cachoeira na montanha. Marcial M. Gozer”.

Parece que Germano chegou aonde ninguém esperava. Mas, aos 44 anos, ele deveria estar acostumado. Não é a primeira vez em seu currículo que isso acontece. Ele nasceu no ramo seco de uma família que, pelo menos para os padrões locais, estava muito bem de vida. Era filho temporão de um pequeno empresário que, viúvo aos 45 anos, viveu sem se casar com uma segunda mulher, 26 anos mais moça. Quando o pai morreu, os herdeiros do primeiro casamento levaram tudo o que o velho tinha. As duas casas da mesma família ficavam na mesma rua, mas seus moradores não se falavam. Sua mãe acabou o dias num hospício. Germano cresceu entregando leite de porta em porta. E, adolescente, trabalhando na enxada, botou na cabeça que queria ser “pesquisador”.

O projeto, além de implausível, era vago. Mas o levou, pelo atalho do ensino público, a se formar em Física como o melhor aluno de 1983 na Univeridade Federal do Paraná. Doutorou-se pela Universidade de Campinas em 1998 com uma tese sobre o átomo de cálcio congelado a laser. Daí para a frente, publica textos em revistas científicas têm títulos que tratam de “avidade óptica passiva para geração de segundo harmônico com um laser de diodo de baixa potência” ou “cavidade dobrada e incidência rasante para sistemas oscilador e amplificador de lasers de corante pulsados”.

C.Q.D. Germano ganha a vida trabalhando nessas altitudes rarefeitas. Ganha R$ 5 mil líquidos como pesquisador do CTA. Investe as horas vagas e o que sobra do salário para comprar retalhos de mata atlântica em Santa Catarina. Foi assim que nasceu o Rã-Bugio, instalado nos sete hectares de floresta nativa mais ou menos conservada que comprou em meados da década passada por pouco mais de 17 mil reais, ao pé da serra de Dona Francisca.

É o que restou de uma paisagem que ele conheceu numa viagem do planalto catarinense, onde morava, para o litoral, onde o pai o levou pela primeira vez à praia quando era menino. Desde que se formou, Germano junta dinheiro para conservá-la. Gastou em terras deliberadamente improdutivas até agora 40 mil reais. Ele e a mulher não gastam sequer com cinema. Escolhem restaurante não pelos pratos, mas pelos preços. Usam roupas sem o menor sinal de grife. Fazem de ônibus, porque sai mais em conta, os 680 quilômetros de estrada que separam o CTA em São José dos Campos da sete do Rã-Bugio em Guaramirim. Em outras palavras, contam trocados. Mão aberta, para eles, só com a “biodiversidade da mata atlântica na Serra do Mar e adjacências”, como informa – em papel reciclado – o prospecto do Rã-Bugio.

O que chamam de lazer, desde que se meteram nessa empreitada ecológica, é a prerrogativa de trabalhar de graça no instituto. Elza é hoje ambientalista em tempo integral. Fixou-se em Guaramirim. Germano, dedica ao Rã-Bugio todas as folgas, indo e vindo entre as duas cidades. Seus fins-de-semana são reglados pelo calendário das viagens. Podem cair duas vezes por mês. Ou só uma. Tudo porque, ao comprar o primeiro pedaço de vegetação nativa, ele achou lá dentro um “tesouro” que não constava da escritura.

Era uma riqueza incalculável em anfíbios. Já identificou em sua propriedade 41 espécies de sapos, rãs e pererecas, “algumas raras, duas desconhecidas”. Para classificá-las sem tirar os animais da natureza, aprendeu a fotografá-los. Levando as imagens aos especialistas, voltava com seus nomes científicos. Com o tempo, juntou milhares de imagens. Suas fotos já ilustraram os cartões telefônicos da Telesc, a operadora da Brasil Telecom no estado. E decoraram a fachada inteira da Fundação O Boticário, em Curitiba. Nas vésperas do lançamento, quando o departamento de marketing da Brasil Telecom viu os anfíbios associados à marca, temeu pela reação dos clientes. Mas, na semana de lançamento, em 2001, saíram 300 mil cartões, sem o menor sinal de rejeição pelo público.

Estava testada a fórmula do Rã-Bugio para a educação ambiental das gerações que, com muita sorte, herdarão os últimos 7% da mata atlântica brasileira. Ela consiste em reconciliar os alunos das escolas públicas com os anfíbios, que são os bichos mais difamados da fauna silvestre, tradicionalmente chamados de feios, peçonhentos e repelentes. Por que as escolas públicas? Porque foi através delas que Germano saiu da lavoura para o laboratório. Além disso, “os brasileiros costumam associar os anfíbios a doenças e feitiçarias”, diz Germano. Logo, se as criançcas aprenderem a gostar deles, farão as pazes com o resto da natureza. 

Cinco anos atrás, ele montou a primeira exposição de suas fotos em São José dos Campos. Cinco mil pessoas foram vê-la. “E a maioria saiu dizendo que os sapos eram bonitos”, conta Germano. Os painés fotográficos passaram a viajar por Santa Catarina, transportados de graça por uma empresa de ônibus. Foram expostos em mais de 100 cidades e visitados por 500 mil pessoas. De quebra, com patrocínio da Fundação O Boticário e da Avina, os anfíbios deram forma ao Rã-Bugio.

Pelo terreno de Guaramirim, passaram até agora 11 mil alunos de escolas e universidades, além de 500 professores e outros mil adultos. A entrada é gratuita. O espaço se resume a duas trilhas curtas, calçadas a mão com lajotas de concreto, para evitar o pisoteio do solo. Mas o passeio dura mais de uma hora. E pode dirr horas. Depende do tempo que Elza e Germano tiverem para oferecer aos visitantes, pois eles sabem tirar proveito de tudo o que existe naqueles sete hectares, dos animais que o leigo não vê às plantas que ele ignora. Se a turma for de crianças, Elza aproveita para contar longas histórias sobre os hábitos e os direitos dos bichos, como fábulas ambientais encenadas num palco a céu aberto.

Funciona? Parece que sim. Há lavradores que procuram o Rã-Bugio para pedir ao casal orientação e conselhos, depois que seus filhos voltaram de uma visita à reserva querendo que eles também passassem a conservar banhados em seus sítios, em vez de transformá-los em arrozais ou pesque-pague. Com os banhados, salvam-se os anuros que neles vivem. Aprender a pegar num corpo frio que todo mundo acha repulsivo pelo visto faz milagres.


Anos atrás, uma praga ia acabando em Corupá com uma espécie de sapo, o grande e pacato Bufo ictericus, em Corupá. Os Woehl foram à luta. Recrutaram nas escolas das redondezas os voluntários para examinar os sapos. Puseram a estudantada em campo. E constataram que os sapos morriam exangues, infestados por um carrapato de origem amazônica chamado Amblyoma rotundatum.

O carrapato se alastrara na região com o patrocínio dos bananais. Porque a banana virou, há muitos anos, o prato forte da economia local. Com ela os roçados passaram a avançar pelos morros acima, tirando da frente, junto com o mato, os predadoes capazes de manter o Amblyoma sob controle. O inseto teve que ser enfrentado, literalmente, a unha. Ou, como diz Germano, “por extração mecânica”. A guerra dos meninos de Corupá para livrar o Bufo ictericus do carrapato parar em publicações especializadas, como a inglesa Froglog e a portuguesa Folha Herpetológica.

O Rã-Bugio tinha, portanto, alguma experiência em mobilização comunitária, antes de meter no caminho da hidrelétrica. Além da reserva de Guaramirim, o casal andava comprando terras m Itaiópolis, nas margens do rio Hercílio. Novamente, para deixá-las entregues à floresta. São, como aconteceu em Guaramirim, minifúndios ecológicos. Mas estão estrategicamente colocadas.

O município de Itaiópolis foi um dos campeões de desmatamento em Santa Catarina, entre as décadas de 80 e 90. Mas ali escaparam da motosserra 800 hectares de florestas de araucária, nas mãos de uma madeireira que, em crise financeira, perdeu o fôlego para explorá-los. Germano comprou dois retalhos dessas matas. E passou a tomar conta do resto como se tudo aquilo fosse seu.

“Como isso me consome energia”, exclama. Levou ao Ministério Público Federal várias denúncias contra desmatadores da vizinhança. Às vezes, com bons resultados. Ou seja, multas para os desmatadores. Às vezes, com frustrações. Há um proprietário que devastou sete quilômetros na beira do rio Hercílio, a 500 metros de um local conhecido com Ponte do Ruthes. Seu nome é João Tavares. É um político do PFL que já foi superintendente regional do Ibama. Sua mulher concorreu na última eleição municipal à prefeitura de Santa Therezinha, ali perto, pelo PT.

A dupla deve ter costas quentes, porque até agora a fiscalização do Ibama não roçou em suas cercas. Mas Germano, que é um tímido obstinado, nunca teve cargo público, desconhece gabinetes importantes e faz conta dos litros de diesel que consome em cada visita a Itaiópolis, instalou-se em sua nova jurisdição ecológica como um xerife nomeado pelas sussuaranas, macucos e arapongas que descobriu naquelas matas. Em outras palavras, por tudo o que corre o risco de sumir para sempre.

Foi mais ou menos assim que ele tropeçou na história da Bruaca. Em 2003, enfiara-se nas matas que cercam a cachoeira para – como não poderia deixar de ser – “fotografar anfíbos” . Lá, topou com “várias estacas coloridas ao longo de uma das margens do rio” e ouviu de um morador a primeira notícia sobre a hidrelétrica, aprovada discretamente pela Fatma – ou Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina.

Germano ficou de olho. Em novembro do ano passado, mal soube que as obras começariam nesta virada do ano, disparou denúncias, do Ministério Público Federal e aos jornalistas de Jaraguá do Sul, a cidade mais mais próxima de Corupá. Era uma parada desigual. De um lado, um franco-atirador, falando em nome de uma ONG que vive da mão para a boca. Do outro, uma empreitada de 28 milhões de reais, bancada pelo BNDES e defendida por seis empresários catarinenses. Mas em duas semanas de esperneio, a licença caiu. Foi revogada pelo diretor de Controle de Poluição da própria Fatma, Luiz Antônio Garcia Corrêa. No duelo de Corupá, Germano foi tiro e queda.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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