No início do mês de abril de 2022, o Instituto Trata Brasil, em parceria com a GO Associados, publicou o ranking de saneamento das cidades brasileiras, que objetiva avaliar questões inerentes à infraestrutura urbana, como coleta/tratamento de esgoto e potabilidade das águas. Dentre os cem maiores municípios brasileiros analisados, Manaus aparece entre os 20 piores, na 89ª posição.
A ausência de saneamento básico na cidade está intrinsecamente ligada ao crescimento desordenado que aconteceu a partir da implantação da Zona Franca de Manaus, entre meados do fim da década de 1960 e início de 1970. Com a criação da área industrial, a cidade recebeu milhares de novos moradores, principalmente do oeste paraense e da região Nordeste, que enxergavam na capital do Amazonas a possibilidade de ascender na pirâmide social.
No presente, mais de cinquenta anos depois, a cidade tem mais de 2 milhões de habitantes e milhares de pessoas estabelecidas em situação de risco, como Lindete de Sousa, 58, que mora às margens de um dos braços do igarapé do Mindu – o maior da cidade. Natural de Santarém (Pará), Lindete mora há 25 anos em Manaus, onde criou os seus três filhos, que chegaram ainda pequenos no bairro Jorge Teixeira, localizado na periferia da cidade.
“A gente se acostuma (citando a convivência com o igarapé poluído)… não tem para onde correr. Já perdemos muitas coisas por conta da subida da água em períodos de chuva. […] “Vem muita gente aqui, mas resolver que é bom, não resolvem”, conta a senhora sentada no pátio de sua casa referindo-se ao abandono por parte dos governantes. Lindete fala, ainda, sobre as promessas feitas aos moradores: “No final de fevereiro prometeram que iriam tirar a gente daqui – através de um novo programa do Governo –, porque parece que o Prosamim [Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus] acabou. Estamos esperando, mas até agora nada”.
Em resposta ao contato estabelecido pela equipe de reportagem, a Secretaria de Comunicação Social do Amazonas (Secom) afirmou que o programa em questão é realizado pelo Governo do Amazonas e segue em franca execução. Já a Unidade Gestora de Projetos Especiais, a UGPE, que é a responsável pelo Prosamim, informou que o local em questão (Mindu) não é área de abrangência do programa (Leia a nota da UGPE na íntegra).
Criado em 2003 pelo governo do Estado do Amazonas com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população que mora nos Igarapés, o Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus) trabalha para deslocar os cidadãos das margens dos igarapés. Em quase duas décadas de existência, mais de 78 mil pessoas foram retiradas de áreas alagadiças. No entanto, segundo a própria UGPE, ‘’o programa não trata da cidade como um todo’’.
A professora Adoréa Rebello, doutora em Geografia Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comenta sobre o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus. “A proposta foi boa, mas me parece que não vingou. Ele, o Prosamim, não possui sustentabilidade ambiental. O modelo é um desrespeito ao cidadão, poderia ser mais digno. Os parques [urbanos], provenientes do Prosamim, estão sem função urbana. Infelizmente, é isso, o programa não resolveu muito. Mas, pelo menos, algumas pessoas foram retiradas das situações de risco de inundações, incêndios e doenças de veiculação hídrica”, aponta a professora, que ministra aulas de Geografia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“O Prosamim é um desrespeito ao cidadão, poderia ser mais digno”, diz a Profª. Adoréa Rebello.
A equipe de reportagem constatou no local que o igarapé contaminado resvala em outro grave problema: a insegurança pública. Os criminosos, conhecedores da ausência da administração municipal e estadual na região, utilizam o córrego como abrigo e ponto de tráfico de drogas. Vale ressaltar que somente em 2021, de acordo com levantamento divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP/AM), aconteceram mais de mil homicídios na capital amazonense, sendo a maioria deles relacionados ao narcotráfico. Ainda no ano de 2021, Manaus registrou o maior número de assassinatos no país, com aumento em relação ao ano anterior de quase 39%.
É como disse um dos moradores entrevistados, que não iremos identificar por questão de segurança, “[…] o tráfico incomoda muito mais que o igarapé, porque a água sobe, mas uma hora para. O tráfico não. Esse aí nunca para”.
Problema ambiental crônico
Os igarapés são canais de pequena dimensão, compondo uma complexa malha hidrográfica fazendo parte do importantíssimo ecossistema amazônico. São partes que constituem um grande sistema de drenagem denominado Bacia Amazônica. Obviamente, esses pequenos cursos de águas, além de abrigarem tipos específicos de flora e fauna locais, também ajudam na manutenção de um meio ambiente saudável.
Ainda de acordo com a professora Adoréa Rebello (Ufam), desocupar às margens dos igarapés é necessário e deve ser um movimento pensado junto à moradia digna. “Permanecer nessas áreas é construir uma situação de risco. A ação erosiva da água não é brincadeira. Água destrói o que vê pela frente. É questão de tempo. Ainda, temos a questão do terreno, que é íngreme e argiloso. Eu sou a favor da retirada, mas as pessoas precisam morar com dignidade. O local de transferência precisa ser dotado de toda uma infraestrutura. Têm os imóveis desocupados do centro que podem ser utilizados, mas o Estado precisa ter pulso e dinheiro para as indenizações”, diz a pesquisadora, que suscita a possibilidade de proliferação de doenças decorrentes da contaminação dos córregos, como as dermatites de contato, a leptospirose e a hepatite, além da dengue, da malária e do zika.
“Eu sou a favor da retirada, mas as pessoas precisam morar com dignidade”, diz a Profª. Adoréa Rebello.
Mudanças climáticas e efeitos catastróficos
Entre pontes de madeira e tubulações irregulares, os moradores da periferia de Manaus são os principais atingidos pelas mudanças climáticas. Durante o período de chuvas na Amazônia, que ocorre entre os meses de novembro até meados de maio, as margens dos córregos ficam mais úmidas e se tornam, literalmente, terreno fértil para os deslizamentos de terra.
“Quando a chuva é forte, o barranco cede e leva tudo o que ele vê pela frente”, diz Lindete (no início desta reportagem) apontando para o outro lado do igarapé.
Há poucos metros da casa de Lindete mora Aline da Silva, que relembra o cotidiano dos moradores antes da poluição do córrego: “Não era tão poluído. As pessoas pescavam e tomavam banho. Tínhamos acesso a vários tipos de peixes”.
Dentro das áreas periféricas, os mais impactados são os moradores das margens, que vêm enfrentando nos últimos anos cheias recordes. Nos últimos dez anos foram várias cheias extremas, sendo a de 2022 a maior já registrada em 119 anos de monitoramento, de acordo com dados provenientes do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). O curto intervalo de tempo entre essas cheias extremas está relacionado, segundo alguns pesquisadores, às mudanças climáticas, que tem se intensificado devido à interferência do ser humano no meio ambiente.
Para os moradores das áreas próximas aos igarapés, chuva intensa também é sinônimo de perda de bens. “Enche tão rápido que não dá tempo sequer de pensar”, aponta Carlos Fernandes, o Carlito, morador de outro trecho do igarapé do Mindu, ainda no bairro Jorge Teixeira.
É fundamental, portanto, dizer que para além das cheias acentuadas, o problema também é climático. Ainda segundo a pesquisadora Adoréa, “os igarapés são verdadeiros sistemas de arrefecimento das elevadas temperaturas em grandes áreas urbanas”. Logo, a contaminação desses córregos pode ser um dos fatores por detrás do aumento da sensação de calor em Manaus nos últimos anos. Com muitos edifícios e fábricas, a cidade praticamente aniquilou a sua mata nativa, sobrando somente fragmentos florestais, como a Reserva Florestal Adolpho Ducke, onde bem próximo está localizada a nascente do igarapé do Mindu, que torna-se poluído ao entrar em contato com o ambiente urbano da cidade.
“Quando chove, o barranco cede e leva tudo o que ele vê pela frente”
Essa população existe antes e depois das eleições
Os moradores dos igarapés, ao longo desses anos de convivência com o meio ambiente poluído, têm passado por ameaças latentes à sua integridade, tanto física quanto moral. A eles, é negado direitos humanos básicos, como direito à saúde de qualidade e ambiente ecologicamente saudável. Os políticos da cidade, de acordo com os próprios moradores, só aparecem às margens dos igarapés em ano de eleição, onde discursam em nome de “morros” e “vielas”, mas deixam a população periférica ao léu. População que, por sua vez, é composta principalmente por pretos e pardos, de acordo com dados provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.
Programas socioambientais, como o Prosamim, visam somente a retirada dos cidadãos das áreas alagadiças e não a plena recuperação de trechos ecológicos, como no caso dos igarapés da cidade. A segregação socioespacial gerada pela ocupação dos igarapés, como constatamos acima, é imensa. Pois a população não possui pleno gozo de direitos políticos e civis, quando se há o risco iminente de morte, seja a curto ou longo prazo.
Sobre as menções ao Prosamim, a Prefeitura de Manaus diz ser de responsabilidade do Governo do Estado. Já sobre as questões relacionadas ao saneamento básico, consultamos a concessionária Águas de Manaus que, segundo o site oficial, é responsável pelos serviços de água, coleta e tratamento de esgoto da cidade. Em nota, a concessionária Águas de Manaus afirma que atua na cidade há menos de 4 anos no “abastecimento de água tratada, coleta e tratamento de esgoto doméstico na zona urbana de Manaus”. E aponta que o saneamento básico engloba ainda outros serviços como o “manejo de resíduos sólidos, drenagem de águas pluviais e limpeza urbana”, atividades associadas à administração pública, de maneira geral. A empresa enfatiza ainda que, para que o abastecimento de água e o tratamento de esgoto sejam regularizados em locais como as margens de igarapés, seria necessário o avanço nas regularizações fundiárias, do contrário, estariam incentivando ocupações desordenadas. Leia a nota da Águas de Manaus na íntegra.
Equipe do programa Jornalismo e Território
Formação: Danila de Jesus e Sanara Santos
Edição e mentoria: Camila Simões
Coordenação: Jessica Mota
Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais.
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oi eu queria saber se posso utilizar o material aqui postado, pq eu tenho um trabalho de faculdade sobre poluição dos igarapés então gostaria de saber se posso utilizar os dados, imagens e os relatos para a apresentaçao, nos slides e possivelmente em um vídeo.
Olá Harison,
Fique à vontade para utilizar o texto desta reportagem, sendo necessário apenas citar a fonte e link.
Abs
Reportagem excepcional! É imoral deixar de olhar para o lado de Manaus que sofre por muitos anos, sendo silenciado e esquecido por quem deveria, ao menos, ter a decência de lembrar. Infelizmente, os programas sociais não tem sido pensados para quem deveria mais importar. O papel jornalístico é sempre evidenciar e cutucar. Parabéns, Caio, Beatriz e a galera do Eco!