Décadas de atraso em regularização fundiária ampliam a pressão para que limites do Parque Nacional de São Joaquim sejam reduzidos no Congresso Nacional. A presença humana na reserva cresceu desde a sua criação. O Governo abriu espaço político para cortes semelhantes em outras unidades de conservação ao congelar mecanismos para regularização fundiária de áreas protegidas.
O Parque Nacional de São Joaquim foi criado há 60 anos. Até hoje não foram regularizados seus quase 50 mil hectares distribuídos na serra catarinense. Proprietários ou ocupantes legítimos de terras não foram totalmente indenizados para deixar seus limites e posseiros ilegais não foram removidos. Parques Nacionais são Unidades de Conservação de Proteção Integral onde a presença permanente de pessoas é vetada pela legislação.
Via Lei de Acesso à Informação, levantamos que 13,2 mil hectares de São Joaquim estão regularizados. Outros 5,2 mil hectares estão em regularização, especialmente via negociações com Santa Catarina. Mas não há clareza sobre a quem pertencem os 31,2 mil hectares restantes, ou 62% do parque nacional.
Fontes da sociedade civil, do Ministério Público Federal, do parlamento e dos órgãos ambientais reconhecem que a morosidade em passar a limpo as terras de São Joaquim multiplicou as pressões para redução de sua área, abrigo de campos de altitude, matas com araucárias, fontes de água e majestosas paisagens. Iniciativas políticas para recortes ocorrem pelo menos desde os anos 1990.
“Foi o somatório de vários fatores que levaram à situação atual. A União criou o parque sem estabelecer com precisão seus limites. Não promoveu as desapropriações necessárias e não pagou as indenizações. Deixou a população morando e produzindo em área de unidade de conservação sem promover a regularização do parque”, disse o senador Dário Berger (MDB-SC).
O parlamentar reconhece que comunidades como Santa Bárbara do Socorro, em Bom Jardim da Serra, cresceram após a criação do parque. Parecer da Comissão de Assuntos Sociais do Senado conta que produtores foram estimulados “a realizarem significativos investimentos em suas propriedades, inclusive com apoio de organismos financeiros governamentais” nos anos 1980. As ocupações também ganharam força entre 2001 e 2016, ano em que uma lei ajustou o parque para acomodar produtores rurais.
“No caso de São Joaquim, não só não havia demarcação precisa como os governos federal, estadual e municipal estimularam a ocupação da área. Quando foi aprovado (o projeto que tramitou desde 2001), ele já não refletia com precisão a dinâmica das ocupações locais, mas entendeu-se ser mais benéfico aprová-lo, ainda que com erros e desatualizado”, completou o senador.
A proposta convertida em lei em 2016 tramitou por 15 anos no Congresso Nacional, mas demandas dos setores produtivo e de geração de energia seguem ativas. Em outubro passado, Esperidião Amin (PP-SC) e outros senadores pediram urgência para a tramitação de um projeto de lei que remove 10 mil hectares do parque nacional (imagem acima), assinado por Berger e outros dois senadores já sem mandato. Proposta semelhante é analisada na Câmara.
“Acho mais viável que se avance na implantação do parque com uma área um pouco menor do que teimar em não avançar na sua regularização. O Ministério Público Federal não pretende ingressar com uma ação civil pública contra os projetos de lei”, avisa o procurador da República em Lages (SC), Nazareno Jorgealem Wolff.
Recortar e consolidar
Reduzir São Joaquim consolidará a agropecuária e abrirá espaço para geração de energia eólica em terras hoje protegidas. Outra pedra no sapato é a sobreposição com reservas estaduais e municipais delimitadas após a criação do parque nacional. O Ecomuseu da Serra do Rio do Rastro foi criado em 2013 pela Prefeitura de Lauro Müller. Já o Parque Estadual da Pedra Furada foi decretado em 1980.
Por meio de sua Assessoria de Imprensa, o Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina afirmou que negocia com o Governo Federal a gestão compartilhada dos aproximadamente 1.000 hectares (90% da reserva estadual) sobrepostos entre os parques nacional e da Pedra Furada. O sombreamento ocorreu após a revisão de 2016 da reserva federal.
Um grupo de trabalho com governistas e parlamentares criado pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) para debater os limites de São Joaquim se reuniu apenas três vezes desde sua criação, em março de 2019. Até o momento, não apresentou qualquer proposta. Via Lei de Acesso à Informação, se sabe que há movimentos para sua reativação desde o início de fevereiro deste ano.
Atas de suas reuniões obtidas pela reportagem mostram que uma gestão federal-municipal também pode ser encaminhada para o Ecomuseu e que a Prefeitura de Lauro Müller vê jazidas de carvão mineral abrigadas também no parque nacional como uma oportunidade para o desenvolvimento econômico dos municípios regionais.
Enquanto isso, o projeto tramitando no Senado ora afirma que “milhares de famílias vivem há muitos anos sobre aquela terra e tiram o sustento de seus familiares sobre aquele pedaço de chão”. Em outro momento, destaca que “2.500 pessoas destas terras tiram seu sustento através dos mais variados segmentos econômicos”. Mas os parlamentares favoráveis aos recortes não informam quantas pessoas realmente sobrevivem da produção rural nos limites de São Joaquim.
O presidente da Associação dos Moradores do Morro da Igreja também não crava um número, mas afirma que desapropriar produtores para manter o desenho atual de São Joaquim pode ter impactos sociais severos. Erionei Mathias afirma que não quer engrossar conflitos com a área ambiental, mas pede que seja encaminhada uma solução que não exclua atividades produtivas que, em sua visão, não prejudicaram a conservação da natureza. A entidade pressiona por recortes na reserva federal desde 2016.
“Os limites do parque nacional são um grande problema para várias famílias que dependem da atividade rural. Em Santa Catarina e na região de São Joaquim predomina a agricultura familiar. Retirá-los de lá pode engrossar a fila de desempregados e pobres do país. Muitas famílias até hoje não podem sequer ter energia elétrica pelas restrições do órgão ambiental”, disse Mathias.
Já o coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica, João de Deus Medeiros, lembra que não há um levantamento fundiário das ocupações ou da quantidade de pessoas nos limites do parque e afirma que a grande maioria dos ocupantes não depende economicamente da atividade rural em terras de São Joaquim.
“Ao invés de propor recortes no parque nacional, os políticos deveriam mobilizar recursos para indenizar proprietários legítimos de terras e garantir a implantação do parque nacional, beneficiando a região e a conservação da natureza brasileira”, completou Medeiros, professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Ao mesmo tempo, expandir a geração de eletricidade com a força do vento também ameaça encolher e impactar São Joaquim. O Complexo de Geração Eólica Cânion do Funil é licenciado pelo governo estadual. Com potência de 58,8 MegaWatts, fica em Bom Jardim da Serra e a na vizinhança imediata do parque nacional, como mostrou reportagem de O Eco. No mesmo município está a segunda maior central do estado, com capacidade de 93 Megawatts.
“Na serra catarinense o potencial eólico está imerso em unidades de conservação. Neste caso, (projeto de geração dentro de área protegida), o parque eólico não é licenciado e seu desenvolvimento é suspenso. A reversão de UCs é um processo muito difícil, principalmente na esfera federal, quando se dá por alteração de lei”, avaliou Rodrigo Nereu dos Santos, diretor da RDS Energia e membro da Associação dos Produtores de Energia de Santa Catarina.
Fundos sem destinação
São Joaquim recebe em média 120 mil visitantes anuais. Número caiu nos últimos 3 anos devido à pandemia e obras na estrada de acesso ao seu principal atrativo, o Morro da Igreja e a Pedra Furada (imagem acima). A atividade faz circular cerca de R$ 8 milhões nas economias local, nacional e regional, e ajuda a manter mais de 200 empregos, aponta a Fundação SOS Mata Atlântica.
Regularizar suas terras pode melhorar a infraestrutura para receber até 200 mil visitantes ao ano, estimam fontes da área ambiental. O parque foi incluído num plano nacional de desestatização para que a operação de serviços como turismo seja concedida ao setor privado.
Mas recursos e processos para regularização fundiária de áreas protegidas estão emperrados. O dinheiro até hoje aplicado na regularização de terras de São Joaquim veio de um termo de ajuste de conduta para a construção da Hidrelétrica de Barra Grande, em 2004, e do fundo federal de compensação ambiental. Mas desde 2020 “nenhum processo de regularização foi finalizado”, informou o ICMBio via Lei de Acesso à Informação.
Abastecido com recursos oriundos de obras licenciadas, o fundo de compensação ambiental tinha R$ 1,8 bilhão em março de 2020, aponta tese da servidora federal Flávia Gomes de Oliveira junto ao Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. O mecanismo amparado na legislação federal prevê que a verba sirva sobretudo à regularização fundiária de unidades de conservação. Do total, R$ 665 milhões poderiam ser usados naquela época.
Mas os recursos não têm sido aplicados, elevando o risco de que outros parques nacionais percam áreas até hoje não indenizadas. Em meados de 2019, o Estado de S. Paulo já informava que o sistema político para regularização fundiária de reservas ambientais havia sido paralizado pelo governo de Jair Bolsonaro. Informações sobre a situação das terras em áreas protegidas federais também sumiram de páginas na Internet.
Balanço de janeiro deste ano de organizações não governamentais brasileiras e internacionais aponta que não se sabe a quem pertencem 19 milhões de hectares em parques nacionais e outras reservas federais que exigem desapropriações de terras privadas. Imóveis privados em desapropriação somam quase 6 milhões de hectares. O balanço fundiário completo pode ser conferido aqui.
“Recursos do fundo agilizariam processos de regularização, mas neste governo não há interesse, apoio ou reforço para processos voltados à consolidação territorial de unidades de conservação. Ao mesmo tempo, forças políticas do Executivo e no Parlamento contrárias às áreas protegidas querem seguir aprovando leis que ameaçam o Sistema nacional de Unidades de Conservação”, ressaltou Cláudio Maretti, ex-presidente do ICMBio.
Parques nacionais como dos Lençóis Maranhenses (MA), das serras da Canastra (MG) e do Itajaí (SC), do Iguaçu (PR) e do Jamanxim (PA) e outras reservas federais têm limites contestados em projetos no Congresso. Proposta de lei do deputado federal Pinheirinho (PP-MG) impede a criação de unidades de conservação sem previsão orçamentária para a indenização de proprietários de terras.
Atenta à defesa da Mata Atlântica e à operação do fundo de compensação ambiental, a procuradora do Ministério Público da Bahia, Aline Archangelo Salvador, questiona porque os recursos da compensação ambiental foram travados pelo Governo Federal e pede atenção para que não sejam desviados para outros fins.
“Essa caixa preta tem que ser aberta. Também temos que atentar para eventuais mudanças legislativas que possam alterar a destinação técnica dos recursos, hoje prioritariamente para a regularização e efetivação de áreas protegidas. Os regramentos devem ser respeitados e aprimorados para garantir a efetividade do Sistema Nacional de Unidades de Conservação”, destacou.
Ministério do Meio Ambiente e ICMBio não atenderam aos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem. Enquanto isso, a inércia na regularização fundiária só aumenta pressões sobre áreas que deveriam ser protegidas pelo poder público, como pede a Constituição Federal.
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Quando o parque nacional foi criado por decreto, não abrangia o município de Lauro Muller. Nem no decreto, nem no mapa.
Foi aí que o município de Lauro Muller estabeleceu em 2008 no plano diretor participativo as encostas da Serra geral como área de preservação permanente e em 2013 a criação do Ecomuseu Municipal Serra do Rio do Rastro.
Agora que o município se preocupou com a preservação, a união quer se apossar desta área protegida, uma vergonha.
É impressionante… Antes de pegar a opinião do Maretti, era só pedir as informações de quantos hectares ele regularizou quando era diretor justamente da área que cuidava disso. E o cara não tem vergonha de cobrar.
Isto sem falar nas áreas que ele trabalhou pra entregar a invasores dentro de unidades de proteção integral. Não reduziu o tamanho mas anulou o status de proteção delas. Este foi de longe o pior presidente do mal acabado ICMBio.