Reportagens

Biólogo usa imagens de satélite e inteligência artificial para mapear quaresmeiras na Mata Atlântica

A detecção é possível por meio da coloração das flores da quaresmeira, cujos tons variam do magenta ao roxo. Para isso, utilizou imagens de satélite de acesso gratuito e o chamado deep learning, um recurso de inteligência artificial

Karina Ninni ·
27 de janeiro de 2022 · 2 anos atrás

O biólogo Fabien Hubert Wagner conseguiu determinar a ocorrência e a distribuição de quaresmeiras (árvores do gênero Pleroma) por meio de sua floração em todo o domínio da Mata Atlântica. Para isso, utilizou imagens de satélite de acesso gratuito e o chamado deep learning, um recurso de inteligência artificial.

A detecção é possível por meio da coloração das flores da quaresmeira, cujos tons variam do magenta ao roxo. Capturadas por imagens de satélite disponíveis gratuitamente, cobrindo o período de junho de 2016 a julho de 2020, as manchas roxas foram posteriormente identificadas e diferenciadas de outras árvores com o auxílio de recursos de uma rede neural (deep learning).

Segundo Wagner, que é pesquisador na Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais (Funcate) de São José dos Campos, mapear a distribuição espacial de uma planta é um desafio atual em ecologia e trata-se da primeira vez que se utiliza essa metodologia no Brasil para tal fim. Hoje, ainda se quantifica a ocorrência espacial de plantas por estatística, com base em informações sobre o clima e a precipitação, entre outras.

“O método que aplicamos é bastante novo, há duas ou três pessoas publicando sobre isso hoje em dia. Existem estudos no Panamá e na Costa Rica, mas em florestas pequenas. Aqui no Brasil, desenvolvi [a técnica] em 2018 para mapeamento de manacás-da-serra, num primeiro trabalho feito com imagens de muito alta resolução. Neste estudo com as quaresmeiras, foram usadas imagens de resolução média, nas quais um pixel representa 10 metros quadrados. Nesse caso, o que pude ver foram grupos de árvores da mesma espécie. Nossa sorte é que a Pleroma ocorre em agrupamentos, sendo uma árvore muito comum, bem conhecida.”

Foram usadas 33.798 imagens dos satélites Sentinel-2 para detectar e mapear a ocorrência das quaresmeiras. O artigo foi publicado na revista Scientific Reports.

“São imagens que, juntas, cobrem a área que precisamos. Lembrando que há dois lados a se considerar: o temporal, pois as imagens são feitas a cada cinco dias, e o lado da área que se pode cobrir com as imagens gratuitas. Eu pensei muito nessa questão da gratuidade, porque as imagens com maior resolução são caras. Já os dados que embasam este artigo podem ser baixados por qualquer pessoa”, diz Wagner.

O trabalho teve o apoio da FAPESP por meio de projeto de Auxílio à Pesquisa – Apoio a Jovens Pesquisadores, e de bolsa de Apoio a Jovens Pesquisadores, ambos recebidos por Wagner.

Deep learning

Mesma cena de uma floresta dominada por Pleroma pulchra tomada de diferentes pontos de vista: do solo (a), do satélite WorldView-2 em uma resolução espacial muito alta de 50 cm (b) e do satélite Sentinel-2 (c), com uma resolução espacial de 10m. Imagens: Fabien Hubert Wagner/Scientific Reports

O cientista explica que treinou a rede neural para reconhecer as flores da quaresmeira e outras ocorrências parecidas, como o ipê-roxo, por exemplo. “O ipê-roxo tem flores mais ou menos da mesma cor das flores da quaresmeira, mas esta projeta um rosa muito uniforme, porque é uma árvore pequena que ocorre em grupo, e não se consegue diferenciar as copas individuais das árvores. Já os ipês são muito altos e geralmente ocorrem solitariamente, em florestas muito sombreadas.”

Após detecção pelo algoritmo, o olho humano consegue distinguir os ipês das quaresmeiras durante a análise dos resultados.

Ele optou por técnicas de deep learning, que conseguem realizar tarefas que um humano pode realizar, mas de forma mais rápida e mais consistente.

“As técnicas tradicionais de machine learning consideram um pixel só. O deep learning considera o pixel e também os seus vizinhos. Ele permite entender melhor o contexto, traz informação a mais. Consegue diferenciar o que é e o que não é informação de interesse para a pesquisa. É mais potente, pois é capaz de realizar tarefas humanas, aquelas que conseguimos realizar com o sentido da visão.”

Para treinar o modelo ele usou mais de 100 mil imagens como amostras. “Mas são muito pequenas, recortes que representam um pouco mais de 1 quilômetro quadrado. Como eu já tinha feito um trabalho antes e coberto a região da Serra do Mar, já tinha imagens mapeadas e já sabia onde encontrar as amostras.”

O método desenvolvido por Wagner poderia ser usado para detectar a ocorrência de outros tipos de árvores que dão flores coloridas. “Seria possível mapear também as árvores que têm flores amarelas. Não escolhi essa cor porque é um pouco mais difícil de observá-la no meio do verde da mata. Mas seria possível.”

Floração

Foto: Wikimidia Commons

Os resultados do trabalho mostram que em 13,2% dos pixels da Mata Atlântica brasileira (139.960 pixels) foram encontradas árvores com flores rosa ou magenta, compostas principalmente por quaresmeiras e, em menor proporção, por ipês-roxos.

De acordo com Wagner, a floração da quaresmeira acontece em momentos diferentes nos diversos locais que compõem o bioma, o que dificulta um pouco o trabalho. “Eu estava esperando uma floração só, tudo perfeito. É bem interessante, porque há vários padrões diferentes de floração e eu não esperava isso.”

Ele esclarece que a ideia do trabalho, no início, era estudar a floração para o efeito das mudanças climáticas e da precipitação. “Se houvesse floração mais ou menos ao mesmo tempo, mas em ambientes com climas diferentes, eu poderia entender mais sobre a biologia do gênero. Mas não, é muita diversidade. Há outras coisas interessantes a investigar, mas correlacionar a floração com aspectos climáticos ainda não é possível.”

A quaresmeira é o que se chama de planta pioneira: na ocorrência de desmatamento, ela é a primeira a chegar à área devastada.

“Ela tem tendência de se espalhar em áreas degradadas. E o fato de termos identificado sua ocorrência em determinados locais pode significar que são zonas que estão se recuperando. Isso eu já tinha observado, junto a outros colegas, no trabalho com a imagem de alta resolução, porque tínhamos fotos aéreas da Serra do Mar na década de 1960 e, por meio delas, foi possível ver que essas árvores ocorriam principalmente onde havia pastagem.”

Serras e planaltos

Wagner explica que as serras são locais de maior ocorrência das quaresmeiras. “O padrão de detecção observado parece estar relacionado às elevações no lado da costa atlântica, ou seja, às cadeias montanhosas conhecidas como serras, pois 26,6% das detecções foram feitas nas cinco principais serras brasileiras.” As proporções de detecção nas serras foram: Serra do Mar (9,3%), Serra da Mantiqueira (Caparaó: 7,5% e Itatiaia: 6,6%), Serras do Leste Catarinense (1,2%), Serras do Quadrilátero Ferrífero (1,1%) e Serras do Espinhaço Meridional (1%). Além disso, 17,9% das detecções foram feitas em planaltos nas proximidades das serras, como o Planalto de Paranapiacaba (6,2%), o Planalto dos Campos das Vertentes (5,7%), o Planalto do Alto Rio Grande (3%) e o Planalto de Poços de Caldas (3%).

Locais com alta densidade de detecção, maiores que 100 quilômetros, foram observados ao norte da cidade de Curitiba (PR) e ao sul da cidade de São Paulo, regiões formadas pela Serra do Mar e pelo Planalto de Paranapiacaba.

Os próximos passos, para Wagner, incluiriam diferenciar as espécies que ocorrem por quilômetro quadrado. “Há mistura de espécies dentro do mesmo quilômetro quadrado, florações diferentes e, nesse caso, seria preciso separar exatamente cada árvore, o que seria feito pixel a pixel. É possível fazer, mas é muito trabalhoso e leva tempo. Seria o próximo passo.”

O artigo The flowering of Atlantic Forest Pleroma trees pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s41598-021-99304-x.

  • Karina Ninni

    Graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Karina tem mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA), e doutorado em Ciências (Energia), pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE/USP). Atua como pesquisadora na área de Energia e também como repórter, neste caso especializada em Meio Ambiente e Ciência.

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